01/10/2024

Em processo de demarcação, terra indígena ocupada por fazendas de gado arde em chamas no Pantanal

Mais de 90% dos focos de incêndios que atingiram a TI Cachoeirinha, do povo Terena, entre julho e agosto ocorreram em área ainda não regularizada e tomada por fazendas de gado

Mais de 15 mil hectares do território de Cachoeirinha foram fustigados pelo fogo, o equivalente a quase metade do território Terena. Foto: Jean Carlos

Por Maiara Dourado e Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação do Cimi

Há meses, o povo Terena tem convivido cotidianamente com o fogo em seu território. “A fumaça cobre totalmente a aldeia e tem pessoas, idosos e crianças, que não aguentam isso. Fora o calor excessivo”, relatou Jean Carlos, liderança jovem do povo Terena da Terra Indígena (TI) Cachoeirinha, localizada entre os municípios de Miranda e Aquidauana, no Mato Grosso do Sul, entre os biomas do Cerrado e do Pantanal.

A situação na TI Cachoeirinha evidencia os impactos sociais e ambientais da morosidade na demarcação de terras indígenas – e, inclusive, na grave crise de queimadas que atinge direta ou indiretamente todo o país.

Os relatos da comunidade da TI Cachoeirinha são de que o território tem sido cada vez mais afetado pelo fogo, que advém, em sua maioria, de focos de incêndio iniciados fora da área tradicionalmente ocupada e em grandes fazendas da região.

“O Pantanal está sendo desmatado. Isso tem que ser visto como uma catástrofe ambiental real. Não podemos negar que isso acontece mesmo”

“Nós sabemos que o fogo ocorre por questões climáticas, mas o fogo que se inicia ao redor do território se dá de forma criminosa”, denunciou Fernando, comunicador da juventude Terena, que atribui ao agronegócio a destruição do território.

“Sempre está entrando monocultura, a abertura de campo para pecuária, para criação de gado. O Pantanal está sendo desmatado. Isso tem que ser visto como uma catástrofe ambiental real. Não podemos negar que isso acontece mesmo” , considerou Fernando.

Parte da TI Cachoeirinha encontra-se hoje sobreposta por fazendas de gado, que incidem sobre uma parcela importante do território indígena ainda em processo de demarcação.  Além de uma área regularizada de 2.660 hectares, atualmente ocupada pelos indígenas e reservada ainda em meados do século XX, o território inclui uma área de 36.288 hectares ainda não regularizada. No caso, trata-se de uma revisão dos limites da terra, que já está oficialmente delimitada e declarada como de ocupação tradicional dos Terena, mas ainda espera pela homologação e regularização.

Segundo um levantamento feito pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), por meio do cruzamento de dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) e do Sistema Nacional de Certificação de Imóveis (SNCI), ambos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), é sobre esta área não regularizada que os incêndios têm incidido de forma mais arrasadora.

No período mais crítico de queimadas no território, foram registrados pelo satélite de referência do Inpe 57 focos de incêndio na TI Cachoeirinha

Brigadistas da TI Cachoeirinha tentam conter o avanço do fogo em seu território. Foto: Jean Carlos

No período mais crítico de queimadas no território, referente aos meses de julho e agosto deste ano, foram registrados pelo satélite de referência do Inpe 57 focos de incêndio na TI Cachoeirinha, dos quais mais de 90% ocorreram na área não regularizada da terra indígena. Isto é, 52 deles. Destes focos, a imensa maioria, 50, ocorreu em fazendas certificadas pelo Incra sobre a TI, registrados em seis propriedades sobrepostas a ela.

Dentre elas, destacam-se as fazendas Vazante, Capão Verde e as estâncias Caiman e Portal Do Miranda. Elas reuniram 47 dos 57 focos de incêndio registrados pelo Inpe sobre o perímetro da TI entre julho e agosto. Estas quatro propriedades sobrepõem mais de 22 mil hectares da terra indígena.

Hoje, existem 47 propriedades certificadas pelo Incra em sobreposição à área não regularizada da TI Cachoeirinha. Essas propriedades cobrem 29,4 mil dos 36,3 mil hectares da TI, o equivalente a 87,6% de sua área.

A maioria das certificações foram feitas no Sigef entre 2020 e 2023, durante a vigência da Instrução Normativa (IN) 09/2020, publicada pela Funai sob o governo Bolsonaro e revogada em agosto de 2023, já sob o governo Lula.

Imagens aéreas da TI Cachoeirinha dois dias após o incêndio mais crítico que acometeu o território este ano. Foto: Jean Carlos.

Origem do fogo

No dia 03 de agosto, considerado o dia mais drástico das queimadas na TI este ano, mais de 15 mil hectares do território de Cachoeirinha foram fustigados pelo fogo, o equivalente a quase metade do território Terena. A informação obtida pela organização Caianas, que monitora os focos de calor dentro do território tradicional, coloca a TI Cachoeirinha entre uma das áreas indígenas mais afetadas pelas queimadas e pela seca na região do Pantanal. A TI Cachoeirinha se soma à TI Kadiwéu, que teve 70% de seu território devastado pelo fogo.

“No dia desse incêndio [na TI Cachoerinha], eu estava na comunidade. Estava ventando muito e em poucas horas, entre 8h30 e 14h, o fogo percorreu 30 km”, relatou Klenner Antônio da Silva, missionário do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Mato Grosso do Sul.

O fogo chegou a adentrar a reserva de Cachoeirinha, uma área de 2.660 hectares composta majoritariamente de mata, ilhada por pasto, e que atualmente abriga cerca de 3000 indígenas. A origem do incêndio, no entanto, se deu em áreas exteriores à terra do povo Terena, advindas de grandes fazendas que ocupam predominantemente a região. São propriedades que possuem imensas áreas desmatadas, dominadas por pasto, que facilitam o alastramento do fogo.

Os focos que deram início ao incêndio que tomou parte da TI Cachoeirinha adentraram o território pela parcela ainda não regularizada do território, hoje ocupada por propriedades de gado

Não por acaso, os focos que deram início ao incêndio que tomou parte da TI Cachoeirinha adentraram o território pela parcela ainda não regularizada do território, hoje ocupada por propriedades de gado.

No mapa produzido pelo Cimi, é possível ver o alastramento do fogo em direção à TI Cachoeirinha. Os dados mostram o avanço do fogo entre os dias 19 de julho e 13 de agosto, período no qual os incêndios tomaram maior proporção na região.

No dia 27 de julho, o fogo adentrou a parte ainda não regularizada da TI Cachoeirinha pela Fazenda Caiman, que possui cerca de 32,4 mil hectares sobrepostos à terra indígena, avançando sobre a área de reserva já regularizada após passar pela Fazenda Vazante, que toma 13, 6 mil hectares da TI.

O início do incêndio, no entanto, teria se dado no dia 23 de julho após um caminhão de frete ter pegado fogo nas proximidades da Fazenda Tupaceretã, localizada fora da TI Cachoeirinha, e atingido dezenas de fazendas dos municípios de Corumbá, Aquidauana e Miranda.

Apesar do caráter acidental atribuído pelo governo do estado do Mato Grosso do Sul ao início do incêndio que afetou a TI Cachoeirinha, indígenas da comunidade Cachoeirinha não descartam a responsabilidade dos proprietários rurais da localidade. Isso porque as práticas agrícolas e as condições físicas das áreas ocupadas pelas fazendas de gado podem também ter propiciado sua disseminação.

Manejo do fogo

O incêndio do dia 3 de agosto foi contido pela brigada Prevfogo da TI Cachoeirinha, composta integralmente por integrantes Terena, apoiada também por brigadas de outras regiões. Apesar de contida, a situação segue preocupante no início de outubro, uma vez que os focos de incêndio persistem no território, ainda que em menor escala.

“O fogo por hora está controlado, mas o clima seco e a falta de chuva nos preocupa muito, porque ainda existem alguns focos”, explica Jean, que integra como voluntário a brigada da TI Cachoerinha e monitora, também como comunicador da juventude Terena, as áreas e os focos de incêndio na região.

Existem hoje  57 Brigadas Federais atuando em terras originárias, sendo mais da metade dos brigadistas do Prevfogo indígenas

Imagens aéreas da TI Cachoeirinha dois dias após o incêndio mais crítico que acometeu o território este ano. Foto: Jean Carlos.

Na área de reserva do território, já regularizada e tradicionalmente ocupada pelos Terena, foram identificados apenas 5 focos de incêndio no período de julho e agosto deste ano. O baixo índice de queimadas na área indígena se deve, segundo a comunidade da TI Cachoeirinha, ao conhecimento tradicional do povo Terena no manejo do fogo e à atuação intensiva das brigadas indígenas no território.

De acordo com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), existem hoje  57 Brigadas Federais atuando em terras originárias, sendo mais da metade dos brigadistas do Prevfogo indígenas.

Impacto espiritual

Para Jean, há uma nítida diferença do território invadido por fazendas de gado, das áreas indígenas tradicionalmente ocupadas pelos Terena. “O nosso território ocupado é o que está mais preservado, que tem matas, rios. Enquanto ali no território dos chacreiros, dos fazendeiros, praticamente é só pasto, não tem nada de floresta”, relata a liderança.

Mas não é só a paisagem do território Terena que tem sido impactada pela ação de fazendeiros e recentes queimadas na região pantaneira. Há também uma dimensão social e  espiritual importante que tem afetado o modo de vida do povo.

Com as queimadas e o desmatamento, os animais buscam refúgio nas matas existentes na reserva de Cachoeirinha ou nas roças cultivadas pela comunidade. “Os animais entram nas nossas roças e comem as nossas plantações. Então a gente fica prejudicado também”, explica Jean.

"Na nossa cosmologia a gente acredita muito nos sinais da natureza. A gente não pode cruzar com tamanduá e anta porque significa que algo ruim vai acontecer"

Brigadista da TI Taunay-Ipegue encontra ninho com ovos de ema em meio ao incêndio que consumia a terra indígena, localizada em Aquidauana (MS). Foto: Brigada Taunay-Ipegue

Os prejuízos, no entanto, não implicam apenas na segurança alimentar da comunidade. “Na nossa cosmologia a gente acredita muito nos sinais da natureza. A gente não pode cruzar com tamanduá e anta porque significa que algo ruim vai acontecer, e ver cobras para nós é uma maldição”, definiu a jovem liderança sobre as interdições que equilibram o mundo Terena e quando violadas desestabilizam sua cosmologia.

Em termos simbólicos, a morte desses animais é ainda mais impactante. A ema, por exemplo, possui uma significação importante na cultura Terena. Não à toa, a imagem registrada na última quinta-feira (12) pela brigada da TI Taunay-Ipegue, no território do povo Terena, em Aquidauana (MS) de um ninho com ovos de ema em meio ao incêndio que consumia o território, comoveu e chocou os indígenas.

“A ema está no céu para os Terena. A dança sagrada dos homens é a dança da ema, os pajés (koixomuneti) usam as penas de ema para benzer. As penas fazem parte dos trajes e são quem protege o povo”, explicou Klenner sobre a importância e impacto da morte desses animais na cosmologia desse povo.

Imbróglio judicial

Desde 1982, o povo Terena da TI Cachoeirinha luta pelo reconhecimento da tradicionalidade de sua terra de forma integral. A reserva de 2.660 hectares, delimitada ainda na primeira década do século XX por Marechal Cândido Rondon, excluiu a maior parte do território do povo, apropriado por fazendeiros. Por isso, o povo passou a reivindicar a revisão de limites da reserva, para que sejam demarcados também os 36.288 hectares excluídos da delimitação feita por Rondon.

Mais de 20 anos depois do início da reivindicação, em 2003, o reestudo foi concluído, com a identificação oficial da área pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Em 2007, a TI Cachoeirinha foi declarada terra indígena, mas desde então aguarda sua homologação. Em maio de 2018, o Ministério Público Federal (MPF) chegou a obter, por meio de uma ação civil pública (ACP), decisão judicial determinando que a União e a Funai concluíssem  o processo demarcatório da TI.

Mesmo assim, seis anos após o ingresso da ACP, a demarcação avançou pouco.  Lideranças da terra indígena têm relatado que agentes da Funai têm sido impedidos de realizar a demarcação física do território, etapa subsequente à emissão da portaria declaratória, na qual os marcos que estabelecem os limites físicos do território são fixados. Um desses episódios teria se dado inclusive, na Fazenda Vazante, uma das propriedades mais sobreposta à terra indígena.

“Os fazendeiros não permitem, eles não aceitam [a demarcação]. Há algumas semanas, os agentes da Funai e da Polícia Federal estão colocando os marcos físicos que até então eles [os fazendeiros] haviam tirado do nosso território"

Imagens aéreas da TI Cachoeirinha no dia 3 de agosto, considerado o dia mais drástico das queimadas na TI este ano. Foto: Jean Carlos

“Os fazendeiros não permitem, eles não aceitam [a demarcação]. Há algumas semanas, os agentes da Funai e da Polícia Federal estão colocando os marcos físicos que até então eles [os fazendeiros] haviam tirado do nosso território. Os fazendeiros não deixam os policiais entrarem na propriedade deles. Há essa autorização da Justiça Federal permitindo que a Polícia entre dentro da propriedade, eles querendo ou não, mas é aquela briga”, contou Jean.

No dia 12 de setembro, uma nova decisão judicial atravancou ainda mais o procedimento demarcatório da TI Cachoerinha. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) André Mendonça suspendeu a determinação judicial na ACP com o argumento de que a ordem de demarcação da terra indígena estaria afrontando uma decisão do ministro Edson Fachin.

Na decisão, proferida por Fachin em maio de 2020, o ministro estabeleceu a suspensão nacional de todos os processos judiciais referentes a demarcações em áreas indígenas até o final da pandemia da Covid-19 ou até o julgamento final do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, com repercussão geral, que discute o critério de demarcação de terras indígenas. Em setembro do ano passado, no julgamento do RE, a Suprema Corte rejeitou a tese do marco temporal como base jurídica para demarcação.

“A gente acredita muito que tendo o território de volta, a gente consegue manter a preservação, fazer um replantio de mudas”

Imagens aéreas da TI Cachoeirinha no dia 3 de agosto, considerado o dia mais drástico das queimadas na TI este ano. Foto: Jean Carlos

A decisão de Mendonça, no entanto, distorce a ordem de suspensão nacional expedida por Fachin. Isso porque a medida, em sua origem, busca diminuir os riscos causados a comunidades indígenas por ordens de reintegração de posse que podem agravar ainda mais os conflitos e colocá-las em situações de maior vulnerabilidade. O cumprimento da decisão, porém, como destacado por Fachin, não deve causar “prejuízo aos direitos territoriais dos povos indígenas”.

Para o povo Terena não há outra saída que não a conclusão do processo demarcatório de suas terras para o combate efetivo da destruição que acomete seu território. A área preservada que eles ocupam é mantida isolada em meio ao deserto de pasto que a rodeia. No entanto, “tendo nosso território de volta, logicamente a gente preserva”, garante Jean.

“A gente acredita muito que tendo o território de volta, a gente consegue manter a preservação, fazer um replantio de mudas”, ressalta Jean. Basta, para isso, a homologação de sua terra, atualmente posta em risco pela vigência da Lei 14.701, conhecida como Lei do Marco Temporal, que veda a revisão de limites em terras indígenas já demarcadas. A medida afeta diretamente o processo de reconhecimento da TI Cachoeirinha e, consequentemente, a proteção do povo Terena e de seu território.

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