06/09/2023

Nova normativa da Funai abre caminho para reverter danos e insegurança causados por IN 09, do governo Bolsonaro

Funai anulou medida da gestão bolsonarista que acirrou conflitos com certificação de fazendas em terras indígenas. Nova normativa, contudo, deixa de fora as terras em estudo e reivindicadas

Placa registrada em novembro de 2020, na entrada de uma fazenda sobreposta à TI Porquinhos dos Canela-Apãnjekra. Certificada por uma empresa, a área é utilizada para o plantio de soja. Foto: Cimi Regional Maranhão

Placa registrada em novembro de 2020, na entrada de uma fazenda sobreposta à TI Porquinhos dos Canela-Apãnjekra. Certificada por uma empresa, a área é utilizada para o plantio de soja. Foto: Cimi Regional Maranhão

Por Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação do Cimi

No Dia Internacional dos Povos Indígenas de 2023, 9 de agosto, a atual presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), chefiada por Joenia Wapichana, abriu caminho para reverter um dos legados mais danosos da gestão anterior do órgão. A Funai publicou nesta data a Instrução Normativa (IN) 30/2023, que substituiu a IN 09, publicada em 2020, durante o governo Bolsonaro.

A IN 09 permitia a certificação de fazendas sobre terras indígenas não homologadas e vulnerabilizou, na prática, centenas de terras cuja ocupação tradicional indígena já era reconhecida pelo Estado brasileiro. Como consequência, centenas de propriedades privadas, com milhares de hectares, foram certificadas sobre terras indígenas em todo o país, acirrando conflitos e gerando insegurança jurídica para diversos povos e comunidades.

A IN 09, sob o governo Bolsonaro, teve o efeito prático de estabelecer uma diferenciação entre as terras indígenas homologadas e não homologadas, desprotegendo todas as terras que, mesmo com procedimento demarcatório avançado, ainda não obtiveram sua homologação

Mudanças nas certificações

A principal alteração da nova normativa da Funai é o restabelecimento da proteção legal contra a certificação de propriedades privadas sobrepostas não apenas às terras indígenas homologadas, mas também àquelas que, mesmo sem decreto presidencial de homologação, já foram identificadas e delimitadas pela Funai ou declaradas como de ocupação tradicional indígena pelo Ministério da Justiça.

É o processo de identificação e delimitação, por meio de estudos antropológicos e multidisciplinares realizados por um grupo técnico da Funai, que delimita oficialmente o perímetro de uma terra indígena, indicando seus contornos, localização e limites – ou seja, dando à terra indígena um “mapa” oficial.

A fase seguinte do processo administrativo de demarcação, após a conclusão do estudo e a publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID), é a emissão da Portaria Declaratória pelo Ministério da Justiça. Depois, a terra indígena é homologada e, por fim, registrada como patrimônio da União.

A IN 09, sob o governo Bolsonaro, teve o efeito prático de estabelecer uma diferenciação entre as terras indígenas homologadas e não homologadas, desprotegendo todas as terras que, mesmo com procedimento demarcatório avançado, ainda não obtiveram sua homologação – muitas vezes por razões políticas, e não técnicas ou jurídicas.

Além das certificações de propriedades privadas, que são realizadas por meio do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), sob responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a IN 09 também havia permitido que proprietários de áreas incidentes sobre terras indígenas não homologadas obtivessem da Funai Declarações de Reconhecimento de Limites (DRLs) atestando que suas propriedades não estariam sobrepostas a nenhuma terra indígena. Essa prática também foi encerrada pela nova normativa.

A atual normativa, apesar de reverter grande parte dos retrocessos instituídos pela IN 09, não retoma completamente o grau de proteção às terras e demandas territoriais indígenas garantido pela normativa de 2012

 

Manifestação indígena em Brasília contra o marco temporal, em junho de 2022. Foto: Hellen Loures/Cimi

Manifestação indígena em Brasília contra o marco temporal, em junho de 2022. Foto: Hellen Loures/Cimi

Proteção mais restrita

A IN 09/2020 havia substituído outra normativa, publicada em 2012: a IN 03. Em análise técnica das medidas, a Assessoria Jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) aponta que, além das terras já identificadas, a normativa de 2012 permitia uma proteção ainda mais ampla às terras e demandas territoriais indígenas.

A IN 03/2012 impunha restrições, inclusive, às propriedades sobrepostas a áreas “formalmente reivindicadas por grupos indígenas”, a “terras ocupadas ou não por grupos indígenas, com procedimentos administrativos iniciados e/ou concluídos” e a áreas ainda em estudo de identificação e delimitação.

“A regra que mais protegia os direitos territoriais indígenas era a IN 03 de 2012”, avalia a Assessoria Jurídica do Cimi. A proteção se estendia inclusive a áreas ainda sem providência do Estado para a demarcação, “contanto que houvesse mera reivindicação formalizada, incluindo as terras em fase de estudo e aquelas ainda não aprovadas pela presidência da Funai”.

Para isso, a IN 03/2012 valia-se de outro instrumento, complementar às DRLs: os Atestados Administrativos. Conforme explicou a Indigenistas Associados (INA) em nota técnica de 2020, na IN 03, “a abrangência do termo ‘terra indígena’ alcançava não apenas as áreas cartorialmente registradas sob essa alcunha, amparadas por decreto de homologação presidencial, mas, em especial no caso dos AAs [Atestados Administrativos], áreas reivindicadas e ainda em processo de identificação, delimitação e de demarcação”.

Estes atestados administrativos eram usados por proprietários de terras, especialmente, para a obtenção de crédito rural junto a bancos e instituições financeiras. Eles serviam para garantir, por meio de um documento oficial da Funai, que a propriedade à qual seria concedido o financiamento não estava sobreposta a uma terra indígena em estudo ou reivindicada.

A atual normativa, portanto, apesar de reverter grande parte dos retrocessos instituídos pela IN 09, não retoma completamente o grau de proteção às terras e demandas territoriais indígenas garantido pela normativa de 2012.

A IN 09, pela data e caráter de sua publicação, foi uma medida emblemática do método adotado pelo governo Bolsonaro para desconstituir direitos indígenas e desmontar a proteção ambiental

Manifestação indígena em frente ao Ministério do Meio Ambiente, em Brasília (DF), em abril de 2021. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Manifestação indígena em frente ao Ministério do Meio Ambiente, em Brasília (DF), em abril de 2021. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Boiada infralegal

A IN 09, pela data e caráter de sua publicação, foi uma medida emblemática do método adotado pelo governo Bolsonaro para desconstituir direitos indígenas e desmontar a proteção ambiental.

A prática foi pedagogicamente explicada pelo então ministro do Meio Ambiente e atual deputado federal (PL-SP) Ricardo Salles, que afirmou que o governo Bolsonaro deveria aproveitar a pandemia de Covid-19 para “passar a boiada” do desmonte por meio de medidas infralegais – ou seja, normativas, portarias e outras iniciativas que são de atribuição do poder Executivo e não precisam ser submetidas à tramitação legislativa.

A reunião em que a afirmação de Salles foi feita, no dia 22 de abril de 2020, ocorreu menos de uma semana depois da efetivação da IN 09, publicada no Diário Oficial da União no dia 16 daquele mesmo mês.

Desde o momento de sua publicação, a normativa foi criticada e denunciada pelo movimento indígena e por organizações indigenistas, e o Ministério Público Federal (MPF) recomendou sua revogação imediata.

Como a orientação foi totalmente ignorada pelo então presidente do órgão, Marcelo Xavier, o MPF ingressou com diversas ações judiciais, e obteve ao menos 24 decisões derrubando a medida em 13 estados.

No final de 2022, o Grupo Técnico responsável por discutir as políticas do novo governo federal para os povos indígenas incluiu a revogação da normativa entre as proposições de seu relatório. Apesar disso, passaram-se oito meses até que a medida fosse efetivada pelo governo Lula.

Neste período, como a medida continuava válida em várias regiões do país, fazendas seguiram sendo certificadas sobre territórios indígenas. Segundo levantamento da Agência Pública, nos três primeiros meses de 2023, pelo menos 30 fazendas foram certificadas sobre terras indígenas não homologadas no Brasil.

Na prática, a IN 09 recolocou no mercado da especulação e do agronegócio áreas reivindicadas e até reconhecidas oficialmente como terras indígenas

Situação das certificações de propriedades privadas sobre as TIs Porquinhos, Kanela Memortumré e Bacurizinho em 2021.

Situação das certificações de propriedades privadas sobre as TIs Porquinhos, Kanela Memortumré e Bacurizinho em 2021.

Legado de insegurança

Os mais de três anos em que a IN 09/2020 vigorou, apesar das diversas decisões judiciais obtidas pelo MPF, deixaram um legado de insegurança jurídica para diversas comunidades e povos indígenas em todo o país.

Segundo levantamento da Agência Pública, entre a publicação da medida e julho de 2022, mais de 400 fazendas, somando um total de pelo menos 239 mil hectares, haviam sido certificadas em sobreposição a diversas terras indígenas não homologadas.

Alguns povos foram especialmente afetados pela medida, como é o caso do povo Pataxó, na Bahia, e dos povos Memortumré Kanela, Canela Apãnjekra e Guajajara, no Maranhão.

Levantamento realizado pelo Cimi em 2020 identificou 44 propriedades certificadas sobre as Terras Indígenas (TIs) Barra Velha do Monte Pascoal e Comexatibá, do povo Pataxó, no extremo sul da Bahia, totalizando 11,4 mil hectares de fazendas sobrepostos aos territórios. Nos anos seguintes, os conflitos se intensificaram na região, com ataques e assassinatos de indígenas.

No Cerrado maranhense, outro levantamento do Cimi identificou, em 2021, que 83 propriedades foram certificadas pelo Sigef sobre as TIs Bacurizinho, Kanela Memortumré e Porquinhos, com um total de 171,6 mil hectares sobrepostos diretamente a esses territórios.

As certificações foram acompanhadas por um avanço do agronegócio sobre estas áreas, com abertura de pastagens, grandes lavouras de soja e a instalação de obras de infraestrutura para o escoamento da produção, como estradas e pontes. Também houve aumento do desmatamento e das ameaças contra indígenas nestes territórios.

A maioria das decisões judiciais que anularam ou suspenderam localmente a IN 09 não anulou as certificações já emitidas pelo Sigef sobre terras indígenas durante a vigência da normativa.

Essas certificações servem para indicar que os limites de uma propriedade – cujo “mapa” é inserido no Sigef pelo proprietário – não estão sobrepostos a outras propriedades ou a áreas públicas e protegidas, como unidades de conservação ou terras indígenas.

“De posse dessas certidões negativas”, destaca o MPF numa das ações contra a normativa do governo Bolsonaro, “tal particular poderá comercializar, transferir, dar em garantia e até lotear áreas situadas em terras indígenas, conseguindo, destarte, realizar negócios jurídicos com terras públicas”.

Na prática, a medida recolocou no mercado da especulação e do agronegócio áreas que são reivindicadas e até reconhecidas oficialmente como terras indígenas.

A IN 30/2023 abre um caminho para reverter essa herança de conflitos e insegurança jurídica deixada em aberto pelo governo Bolsonaro. A nova normativa determina à Diretoria de Proteção Territorial (DPT) da Funai a revisão das DRLs emitidas durante a vigência da IN 09, quando houver sobreposição com qualquer terra indígena já delimitada.

Além disso, também estabelece que as propriedades em sobreposição a terras indígenas no Sigef devem ser alvo de processo administrativo. O Cartório de Registro de Imóveis responsável deve ser notificado, para que a situação seja registrada na matrícula do imóvel, assim como o proprietário da área em questão, para que possa exercer “o direito de ampla defesa e contraditório”.

A IN 30, assim, interrompe o avanço das certificações sobre terras indígenas já identificadas e delimitadas – ou seja, com um perímetro oficialmente reconhecido pelo Estado brasileiro – e abre um caminho para invalidar as certificações já expedidas sobre essas terras.

No entanto, “ela não garante proteção às áreas reivindicadas formalmente e em fase inferior à da aprovação do RCID”, destaca a Assessoria Jurídica do Cimi, “o que se reveste em claro prejuízo territorial aos povos indígenas”.

Share this:
Tags: