Ministro Fachin indica ao presidente do STF urgência em concluir julgamento sobre marco temporal
Vácuo causado pela demora tem prejudicado povos indígenas e contribuído para manutenção da Lei 14.701 em vigor. Povo Xokleng, organizações indígenas e amigos da Corte pedem prioridade na análise
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin solicitou ao presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, que tenha prioridade na pauta de julgamentos da Corte a análise dos recursos que faltam para a conclusão do processo de repercussão geral sobre demarcações de terras indígenas e o marco temporal.
A indicação feita pelo ministro em dezembro de 2024 reconhece a relevância e a urgência da questão, após solicitação feita pelo povo Xokleng e por diversas organizações indígenas. A posição foi apoiada, no dia 23 de janeiro, por um conjunto de organizações da sociedade civil que atuam como amigas da Corte (“amici curiae”) no processo, também conhecido como Tema 1031.
O caso, que tem no centro da disputa a Terra Indígena (TI) Ibirama La-Klãnô, do povo Xokleng, em Santa Catarina, teve seu mérito analisado em setembro de 2023. Naquela ocasião, por nove votos a dois, o STF reconheceu o direito do povo Xokleng à posse de sua terra e fixou a tese em que rejeitou de forma definitiva o chamado “marco temporal” – uma expressiva vitória dos povos indígenas, que lutam há anos contra esta e outras tentativas de restringir seus direitos territoriais.
Mais de um ano depois, contudo, a situação dos povos indígenas no Brasil se transformou e essa importante vitória foi colocada em risco. Em reação à decisão do Supremo, em dezembro de 2023 a lei 14.701 foi promulgada pelo Congresso Nacional, estabelecendo o “marco temporal” como critério para as demarcações e uma série de outras restrições aos direitos territoriais indígenas.
“Há mais de um ano, a Lei se encontra em vigor sem que nenhum pronunciamento acerca de sua inconstitucionalidade tenha sido proferido por esta Corte”, afirmam 14 organizações indígenas, indigenistas, socioambientais e de direitos humanos que atuam como amigas da Corte no processo de repercussão geral. “Seus efeitos nem sequer foram suspensos, o que vulnerabiliza ainda mais a situação dos povos indígenas no Brasil”.
A lei 14.701/2023 “ressuscita questões já superadas” pelo STF e “cria parâmetros não previstos no texto constitucional para demarcação de terras indígenas”, que geram “entraves e obstam os procedimentos administrativos que há décadas estão em andamento”, avaliam as organizações.
Elas solicitam urgência na análise dos embargos – tipo de recurso utilizado para esclarecer contradições, suprir omissões ou mesmo corrigir erros materiais identificados na redação de uma decisão judicial – e de outros pedidos pendentes no processo de repercussão geral. Um deles, apresentado pelo povo Xokleng, trata diretamente da lei 14.701.
“Até o momento, mais de um ano se passou, e não houve nem a suspensão dos efeitos de forma preliminar e nenhum julgamento sobre eventuais inconstitucionalidades que a lei traz”
Próximos passos
Agora, cabe ao presidente do STF, Luís Roberto Barroso, a decisão sobre o momento em que incluirá o Tema 1031 na pauta para a análise final das questões pendentes de apreciação. Como explica Paloma Gomes, assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que atua como amigo da Corte, e advogada do povo Xokleng neste processo, a indicação de preferência feita pelo relator, ministro Edson Fachin, tem peso nessa decisão.
“Há uma previsão regimental que permite ao relator de casos específicos indicar junto à presidência da Corte se aquele é um caso urgente ou não. Quando há essa indicação de preferência, como ocorreu, os presidentes da Corte devem levar isso em consideração”, explica.
“Esse é um julgamento de alta relevância para o Brasil. Por isso, durante o processo foram admitidos diversos Amigos da Corte, que puderam contribuir com o STF na análise das implicações, dos limites, dos desafios que estão postos para que se cumpra efetivamente a Constituição Federal, que determina não apenas a demarcação, mas a proteção dos territórios indígenas do Brasil pela União”, prossegue Paloma.
Foram admitidos quase 80 amigos da Corte, explica a advogada. “Quando foi publicado o acórdão no início do ano passado, não apenas as partes diretamente envolvidas, mas muitos desses amigos da Corte apresentaram embargos de declaração”, diz.
“Esses embargos têm por objetivo ajudar que a decisão da Corte seja o mais clara possível, que não haja margem de dúvidas em relação ao que os ministros definiram, ainda mais quando se trata de um caso com repercussão geral, onde teses foram fixadas”, esclarece Paloma.
“A gente não sabe se todos esses embargos, que são dezenas, vão ser apreciados. Isso vai ficar a critério dos magistrados”, explica a advogada. “Mas os principais embargos de declaração, que são aqueles opostos pelas partes, vão necessariamente ser apreciados pela Corte”.
Além das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) que questionam no STF a lei 14.701, o povo Xokleng também apresentou, no caso de repercussão geral, um pedido para que a Corte declare inconstitucionais os artigos da lei que afrontam o que foi fixado pelo próprio STF no Tema 1031.
“Até o momento, mais de um ano se passou, mas não houve a suspensão dos efeitos da lei de forma preliminar e nenhum julgamento sobre eventuais inconstitucionalidades que ela traz”, contextualiza Paloma.
No dia 31 de janeiro, a relatora da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Defensores de Direitos Humanos, Mary Lawlor, recomendou que o STF dê prioridade à análise da lei 14.701. Em outubro de 2024, o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) também recomendou ao STF que “declare imediatamente a inconstitucionalidade” da medida.
A recente suspensão do processo demarcatório da TI Toldo Imbu, do povo Kaingang, no Paraná, pelo ministro do STF André Mendonça, é um exemplo das consequências negativas causadas aos povos originários pela demora na conclusão da análise do Tema 1031 (saiba mais).
“Comunidades indígenas que aguardam há mais de 35 anos a demarcação e a proteção de seus territórios estão à mercê da lei 14.701”
Insegurança jurídica, conciliação e violência
No ano passado, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) decidiu se retirar da “Comissão Especial de Conciliação” criada pelo ministro Gilmar Mendes para debater as ADIs que questionam a constitucionalidade da lei 14.701 e que estão sob sua relatoria.
Com a lei em plena vigência, a Comissão passou a discutir uma ampla gama de assuntos relacionados à demarcação de terras e, mesmo com a saída dos povos indígenas, teve seu prazo prorrogado para 28 de fevereiro de 2025, com novas rodadas de discussão previstas.
As organizações amigas da Corte apontam que a vigência da lei 14.701 promove um “contexto de completa insegurança jurídica” e que a prorrogação da Comissão Especial “adia uma resolução legítima da situação, em detrimento dos direitos das comunidades indígenas brasileiras”.
O povo Xokleng e as organizações indígenas ressaltam que a lei está impondo “à União e também à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) a revisão de seus atos administrativos” de demarcação de terras indígenas, resultando em mais morosidade, mais conflitos e mais violência contra os povos afetados.
“Comunidades indígenas que aguardam há mais de 35 anos a demarcação e a proteção de seus territórios estão à mercê da lei 14.701, enquanto não suspensos seus efeitos ou declarada sua inconstitucionalidade”, argumentam os indígenas no pedido ao STF.
O povo Xokleng e as demais organizações apontam que a lei 14.701 tem um impacto “perverso” sobre as demarcações, “já que atinge 100% dos processos em curso, gerando enormes prejuízos financeiros à União”. Em muitos casos, apontam os indígenas, a lei impõe “a reanálise de procedimentos já avançados, além de discussões judiciais sem fim e mais violência aos povos indígenas”.
As organizações amigas da Corte também chamam atenção para uma série de pedidos de particulares, como fazendeiros e empresas, solicitando a suspensão de procedimentos demarcatórios e a abertura de conciliações.
“Do teor dos pedidos é possível notar uma associação direta entre a lei 14.701, a suspensão de procedimentos demarcatórios, a abertura de conciliações e a expectativa de recebimento de indenizações por particulares pela terra nua”, alertam as organizações.
Nhanderu Marangatu
Essa expectativa de indenização foi fortalecida pelo resultado da Mesa de Conciliação realizada em setembro do ano passado acerca da demarcação da TI Nhanderu Marangatu, no Mato Grosso do Sul. O processo foi retomado pelo STF, a pedido da União, após o assassinato do jovem Neri Ramos da Silva, Guarani Kaiowá de 23 anos, durante uma operação da Polícia Militar contra uma retomada na fazenda Barra, sobreposta à TI.
A mesa de conciliação estabelecida pelo ministro Gilmar Mendes, relator do caso, resultou na concessão de uma indenização milionária para os proprietários da fazenda Barra e de outras propriedades sobrepostas à TI, incluindo benfeitorias e a “terra nua”, sem qualquer avaliação sobre a boa-fé dos títulos de propriedade. A Aty Guasu – Grande Assembleia Guarani e Kaiowá caracterizou a decisão como uma “verdadeira armadilha para os povos indígenas de nosso país”.
O acordo foi confirmado pelo plenário do STF, mas o ministro Edson Fachin, a ministra Cármen Lúcia e o presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, fizeram ressalvas. O presidente garantiu que a questão das indenizações será “objeto de exame e julgamento” nos embargos de declaração opostos pelo povo Xokleng e pela Funai no Tema 1031.
Os indígenas afirmam que uma decisão da Suprema Corte é urgente “para que não haja prêmio econômico a grileiros” ou pessoas que não teriam direito à indenização
Risco de prêmio a grileiros
A indenização pelo valor da terra – a chamada “terra nua” – a proprietários rurais de áreas localizadas dentro de terras indígenas tem sido uma das principais bandeiras ruralistas na última década, utilizada como instrumento para questionar e barrar demarcações.
Quando uma terra indígena é demarcada, se houver propriedades rurais sobrepostas a ela, a Constituição Federal prevê a indenização pelo valor das “benfeitorias” – construções, moradias e quaisquer edificações ou alterações que agreguem valor à propriedade. Não é permitida, contudo, a indenização pelo valor da terra a particulares.
“A Constituição estabelece que são nulos e extintos os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse ou exploração das terras indígenas”, explica Paloma. “Isso porque as terras de posse tradicional indígena são terras que compõem o patrimônio da União. Por isso, a Constituição não permite a indenização pela terra nua nestes casos, como pretendem os ruralistas. Tal hipótese faria com que a União pagasse por algo que já lhe pertence, o que não faria sentido”.
Em setembro de 2023, nas teses fixadas no Tema 1031, o STF admitiu a possibilidade também de indenização pelo chamado “evento danoso”, nos casos em que um título de propriedade foi concedido pelo Estado sobre uma área indígena. Ou seja, nos casos em que houve um erro do Estado ao reconhecer uma propriedade privada sobre uma terra indígena.
“Essa indenização não se confunde com indenização pela terra nua”, explica a advogada. O STF estabeleceu uma série de parâmetros para definir quem teria direito à indenização por evento danoso, mas ainda há pontos que não estão definidos e que, posteriormente, deverão ser regulamentados pela União.
“Dentre os critérios fixados pelo Supremo estão a comprovação de que a comunidade indígena não estava na posse ou reivindicando a posse da área na data da promulgação da Constituição, a demonstração da existência de justo título ou posse de boa-fé do particular, a inviabilidade de reassentamento do particular e a comprovação da existência de dano causado pelo Estado”, lista Paloma.
Embora seja diferente da indenização pela “terra nua”, vedada pela Constituição, o valor da indenização pelo “evento danoso” será correspondente ao valor da terra, conforme fixado pelo STF. “No julgamento dos embargos de declaração, o Supremo certamente se debruçará sobre o texto a fim de torná-lo mais claro”, avalia a advogada.
O povo Xokleng e as organizações indígenas argumentam que o caso de Nhanderu Marangatu é um “exemplo claro da insegurança jurídica” causada pela ausência de um pronunciamento definitivo da Corte acerca dos embargos de declaração no Tema 1031 e da constitucionalidade da Lei 14.701.
Os indígenas afirmam que uma decisão da Suprema Corte é urgente “para que não haja prêmio econômico a grileiros” ou pessoas que não teriam direito à indenização.
Agora, o pedido foi reforçado pelas organizações amigas da Corte, que consideram necessário que a União, por meio da Advocacia-Geral da União (AGU), estabeleça o procedimento para as indenizações. Elas salientam que, embora a União já pudesse determinar este rito, “é crível que somente o faça após o julgamento dos embargos de declaração opostos nestes autos”.
“Do contrário”, prosseguem as entidades, “a mora administrativa em relação aos processos de demarcação só aumenta e os povos indígenas continuam submetidos à violências, situações de grave vulnerabilidade, sofrimento e assédio para submissão a acordos inconstitucionais”.