Nota do Cimi: acordo de Nhanderu Marangatu é exceção e não pode ser referência para a demarcação das terras indígenas
Acordo privilegia aqueles que se apropriaram das terras indígenas e evidencia necessidade urgente do STF concluir julgamento sobre marco temporal e decidir sobre a inconstitucionalidade da Lei 14.701
No último dia 25 de setembro, o governo federal, o governo do estado de Mato Grosso do Sul e um grupo de fazendeiros negociaram, na sede do Supremo Tribunal Federal (STF), um acordo de indenização para a saída dos fazendeiros do território tradicional Nhanderu Marangatu, do povo Guarani e Kaiowá. O acordo contempla a transferência de R$ 146 milhões aos fazendeiros pelas benfeitorias e pela terra nua.
Só depois da assinatura do acordo, o Estado cumpriu sua obrigação constitucional com os povos indígenas e restaurou o decreto de homologação da Terra Indígena (TI) Nhanderu Marangatu, que estava suspenso desde 2005, em virtude de uma decisão monocrática proferida pelo ministro Nelson Jobim.
Nhanderu Marangatu sempre foi terra indígena. Por isso mesmo, os fazendeiros sempre foram invasores
A restauração do decreto de homologação confirma o que era óbvio: Nhanderu Marangatu sempre foi terra indígena. Por isso mesmo, os fazendeiros sempre foram invasores. E eles, assim como o Estado, sempre souberam disso.
Ao longo de décadas, os fazendeiros agora indenizados, sustentados pela inércia do Estado, esbulharam, despejaram, ameaçaram e atacaram covardemente famílias indígenas, provocando conflitos nos quais pelo menos sete Guarani Kaiowá foram assassinados.
Em 2005, consequência direta da suspensão do decreto de homologação, Dorvalino Rocha foi morto a tiros. Dez anos depois da morte de Dorvalino, em 2015, o jovem Simeão Vilhalva foi também assassinado em um ataque que contou com a participação direta dos fazendeiros envolvidos na negociação do STF e com a presença de políticos que representam o agronegócio.
Não podemos deixar de lembrar ainda que foi neste território, Nhanderu Marangatu, que foi calado o “banguela dos lábios de mel”. Marçal de Souza, semente de sonho para os Guarani Kaiowá, foi assassinado a tiros em 1983. O último disparo atingiu sua boca, por ter denunciado a situação de seu povo ao Papa João Paulo II.
O último indígena assassinado em Nhanderu Marangatu foi Neri Ramos da Silva, de 23 anos, morto no dia 18 pela Polícia Militar que, sob a justificativa de cumprimento de determinação judicial, atuava a serviço dos fazendeiros (agora já confirmados como invasores de um território indígena homologado). Durante dias angustiantes, o Estado não adotou as medidas de proteção insistentemente solicitadas pela comunidade que poderiam ter evitado a morte de Neri.
Longe de ser uma referência de solução para a demarcação de terras indígenas, o acordo sobre a TI Nhanderu Marangatu, sob o manto de pacificação de conflitos, consegue privilegiar justamente aqueles que se apropriaram e exploraram as terras e as vidas indígenas. Por tudo isso, do ponto de vista ético e moral, o acordo indenizatório do dia 25 é injustificável.
A indenização a ocupantes em territórios indígenas é um tema extremamente complexo e necessita de um amadurecimento que ainda não se deu
A indenização a ocupantes em territórios indígenas é um tema extremamente complexo e necessita de um amadurecimento que ainda não se deu. É fundamental lembrar o princípio de que as terras indígenas são terras da União. Por esse motivo, não é admissível pagar por uma terra que já é pública.
Em setembro de 2023, durante o julgamento do marco temporal (Tema 1031) de repercussão geral, o STF acolheu a tese da indenização por “evento danoso”, prevista na Constituição. Significa que a pessoa que detém título de propriedade dentro de terra indígena decorrente de uma ação do Estado poderá ser indenizada. Mas o próprio STF afirmou que sua aplicação deve estar condicionada por um conjunto de critérios.
Diante da ausência de regulamento e de garantias, qualquer acordo é apresentado ilicitamente como “histórico”, “criativo” ou “exemplar”
Na decisão sobre o marco temporal, a Corte determinou, por exemplo, que a indenização por evento danoso teria que ser discutida em procedimento próprio, fora da discussão da demarcação. Não é o que aconteceu no dia 25. Depois de um ano da decisão do STF, o chamado procedimento próprio ainda não foi regulamentado, o que compete à União por meio da Advocacia-Geral da União (AGU). Diante da ausência de regulamento e de garantias, qualquer acordo é apresentado ilicitamente como “histórico”, “criativo” ou “exemplar”. Mas isso é extremamente perigoso, pois gera insegurança jurídica onde antes havia previsão administrativa certa.
Por outro lado, para falar em evento danoso, é imprescindível que se constate a boa-fé na ocupação e a inexistência de presença indígena e esbulho renitente em 1988, bem como a impossibilidade de outras medidas como o reassentamento dos ocupantes.
“Nos expulsaram incontáveis vezes, gente nossa foi morta. Nunca esqueceremos, quem sente a dor não esquece”
No acordo estabelecido no dia 25, o Estado abdicou de analisar a boa-fé dos ocupantes, bem como outros critérios estabelecidos pela Suprema Corte, o que é um precedente muito grave. Durante os quase 20 anos de negligência do Estado em Nhanderu Marangatu, e ainda nas décadas anteriores, diversos crimes aconteceram. Esbulho, destruição de vegetação nativa, contaminação de solos e fontes de água; intimidações, racismo, ameaças e assassinatos de indígenas por seguranças privados, milícias e policiais militares.
É o que afirma a própria comunidade em carta entregue ao STF: “E isso aconteceu quando eles começaram a dizer que aquelas terras eram deles. O gado chegou e foi nos expulsando, destruíram nossos alimentos e remédios sagrados e tudo virou pasto. O que era antes mandioca, avati e mbacucu deu lugar ao colonhão. Nos expulsaram incontáveis vezes, gente nossa foi morta. Nunca esqueceremos, quem sente a dor não esquece. Mas não saímos totalmente, resistimos e permanecemos onde pertencemos”.
A violência contra os povos parece estar naturalizada nas entranhas do Estado, independentemente de quem ocupe essas entranhas
Na audiência do dia 25, tivemos que assistir a execrável cena em que a advogada, filha de uma das fazendeiras e assessora do governo estadual de Mato Grosso do Sul, pretendia decidir arbitrariamente, diante de um governo tristemente calado, qual era o limite de pessoas indígenas que poderiam ou não participar do ritual pela morte de Neri. Não apenas isso: exigia também que as forças policiais se comprometessem a retirar à força os membros da comunidade indígena, caso não concluíssem os rituais dentro do horário estipulado.
Foi uma das cenas mais violentas, racistas e coloniais acontecidas na sede da mais alta Corte nas últimas décadas. A violência contra os povos parece estar naturalizada nas entranhas do Estado, independentemente de quem ocupe essas entranhas.
Por fim, o Estado precisa garantir, em diálogo com os povos indígenas, medidas imprescindíveis de restauração e não-repetição. Mesmo nos casos de evento danoso, se o Estado errou, foi primeiro e principalmente com relação aos povos indígenas. Danos físicos, morais e patrimoniais devem ser reconhecidos e restaurados. Esse erro do Estado precisa ser reconhecido, bem como os impactos da negligência e da morosidade na definição dos processos – administrativos ou judiciais – de demarcação e homologação.
“Hoje recuperamos quase toda a nossa terra, falta só um pouco onde nosso guerreiro foi morto, Neri Ramos. Ali a fazenda já destruiu tudo. Eles tiraram a mata, árvores sagradas foram derrubadas e retiradas de lá escondido. Já não tem mais mata nesta fazenda Barra. Por isso, quando retomamos nossa terra, o que fazemos é retomar nosso ser, nosso modo de ser, teko porã, nosso jeito sagrado de ser, teko marangatu, pois somente por ele é que vamos conseguir salvar as plantas, a mata, as fontes de água, e os jara poderão voltar a habitá-los novamente”, afirma a carta da comunidade.
O acordo do dia 25 de setembro se aplica exclusivamente a Nhanderu Marangatu e não pode ser tomado jamais como referência para outros territórios
Portanto, fica evidente que o acordo do dia 25 de setembro se aplica exclusivamente a Nhanderu Marangatu e não pode ser tomado jamais como referência para outros territórios. A indenização por evento danoso, e não por terra nua, precisa ser discutida, com definição de procedimento próprio e critérios objetivos.
A natureza de um Estado de Direito é assegurar e preservar os direitos fundamentais. Nem o Poder Executivo nem o Poder Judiciário podem abdicar dessa responsabilidade. O paradigma da “conciliação”, cada vez mais presente no Judiciário, pode ser viável e adequado para resolver outras matérias e divergências. Mas não é legítimo para resolver disputas acerca de direitos fundamentais e indisponíveis, porque exime o Estado de sua função garantista. No caso de Nhanderu Marangatu, tratava-se de um mandado de segurança de quase 20 anos que exigia uma determinação do STF e que não deveria ser decidida por uma audiência entre desiguais, na qual a única forma de garantir direitos seja obrigar à vítima a anuir com o escárnio.
O Cimi reafirma a necessidade de que o julgamento de repercussão geral do Tema 1031 conclua com urgência, com a apreciação dos embargos e da inconstitucionalidade da lei 14.701/2023
Por isso o Cimi reafirma a necessidade de que o julgamento de repercussão geral do Tema 1031 conclua com urgência, com a apreciação dos embargos e da inconstitucionalidade da lei 14.701/2023. Só dessa forma os direitos fundamentais dos povos indígenas poderão ter segurança jurídica.
Não é ético afirmar, como faz o governo, que o acordo do dia 25 é uma vitória dos povos indígenas. A comunidade Nhanderu Marangatu – ainda em luto e traumatizada, pois havia acabado de sofrer ataques e ver dois de seus filhos mortos, um assassinado e outro cuja morte está sob investigação – não pediu esse acordo. Ela foi intimada judicialmente a comparecer em audiência de conciliação convocada pelo STF a pedido da União. A comunidade nem pediu nem participou da negociação. Só queriam que seu direito fosse respeitado e sua terra fosse livre. O resto da cena é responsabilidade única dos governos federal e estadual e dos fazendeiros.
O Cimi manifesta sua profunda solidariedade com a comunidade de Nhanderu Marangatu. O território será liberado. Os Guarani Kaiowá irão deter “a destruição da mata e permitir que a floresta volte, que os animais voltem”. Que volte a festa, o alimento e a reza. Em pouco tempo o território será livre. Não foi pela negociação e o conluio, mas pela resistência e a persistência daqueles que sempre pertenceram a Nhanderu Marangatu.
30 de setembro de 2024
Conselho Indigenista Missionário – Cimi