30/08/2024

Direitos indígenas no Brasil não se negociam

No artigo Luis Ventura e Marcelo Chalréo discorrem sobre a ‘crônica que atravessa o capitalismo’ e seus impactos nos territórios indígenas no Brasil

Manifestação indígenas na Praça do Três Poderes durante o 20º Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília. Foto: Tiago Miotto | Cimi

Manifestação indígenas na Praça do Três Poderes durante o 20º Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília. Foto: Tiago Miotto | Cimi

Por Luis Ventura e Marcelo Chalréo, para o Jornal Prensa Latina

A crise internacional e crônica que atravessa o capitalismo, permanentemente gerada por ele mesmo, agudizada a partir de 2008 à conta da devastação provocada pelo fenômeno das “subprime”, trouxe, como uma das suas consequências, a acentuação da espoliação de terras e territórios em todo o planeta onde grassam os interesses da burguesia agrária, nacional – transnacional e do capital financeiro internacional. Para tanto, objetivando o (re)acúmulo contínuo e recomposição das suas taxas de lucro, os agentes do capital não têm medido esforços. As expressões políticas neofascistas com suas múltiplas e diversas formas de incidência, presentes em várias partes do mundo como temos visto recentemente, são também um produto dessa quadra histórica. Afinal, regimes e formas autoritárias de governo sempre foram caminho para contenção da luta política, social e popular. Nesse contexto, o profundo rebaixamento de direitos sociais e humanos é regra, e, para tanto, o (neo)liberalismo sem peias e barreiras acelera o passo.

Na parte que nos cabe desse latifúndio, dessa barbárie, toda ela sob os auspícios do que se intitula como Estado Democrático de Direito, a conta tem sido extremamente salgada e vem sendo paga pela classe trabalhadora, populações tradicionais, quilombolas, indígenas e as vastas camadas em situação de miserabilidade permanente da nossa sociedade que se espraia por nossas periferias urbanas, onde negras/os e pardas/os são expressiva maioria. O perdimento de direitos sociais fundamentais, reitera-se, tem sido rotina, atravessando governos liberais, de centro, centro-esquerda e de corte fascista. Para tanto, agem em sintonia os chamados poderes da República, leia-se, o Executivo, o Legislativo e Judiciário, que, por suposto, se põem (como sempre se puseram, salvo espasmos de baixa duração e intensidade) a serviço dos interesses da burguesia nativa e internacional à qual está associada a primeira até a medula. Obviamente, se há quem perde há quem ganha nessa maquiavélica equação de aprofundamento da nossa histórica desigualdade social, aumentando exponencialmente a miséria do povo o que se traduz em uma ainda maior concentração de riqueza e renda nas mãos de poucas/os.

“Objetivando o (re)acúmulo contínuo e recomposição das suas taxas de lucro, os agentes do capital não têm medido esforços para avançar sobre as terras indígenas”

Para consecução dos seus objetivos, o capital nacional e internacional vale-se de governos nacionais, submissos que são ao imperialismo, executores políticos públicos e sociais de ordem meramente assistencialista, distribuindo   migalhas de direitos, as que sobram e caem das mesas onde se banqueteiam os vários estratos da burguesia.

Não há praticamente limites para o curso destrutivo perpetrado pelos agentes políticos e privados do capital, este se dá por terra, ar ou água. Nesse contexto, o agronegócio, a mineração e a vertente do capitalismo financeiro internacional, intrinsecamente relacionada aos dois primeiros, exercem papel fundamental quando se trata de solapar e desconstituir direitos (sociais e humanos), ainda que fixados constitucionalmente e por tratados e convenções internacionais. Aqui se incluem os direitos de ordem originária, ou seja, de pertencimento a povos e populações desde sua origem, antecedendo, assim, os arcabouços jurídicos que estruturam os estados modernos a ocidente e oriente e que, por serem originários, deveriam ser interpretados e respeitados como de sobreposição antecedente àqueles direitos que foram erigidos pelas sociedades que brotaram do colonialismo. Às classes dominantes pouco importam se há eventuais limitações convencionais, constitucionais ou legais aos seus interesses de acúmulo e expansão; se existentes, precisam ser derrocados, desfigurados, relidos à luz dos modelos vários de privatização das terras, das águas e do ar (o modelo de execução dos parques eólicos Brasil afora e em outras partes do mundo se põe como exemplo no último caso).

“Não há praticamente limites para o curso destrutivo perpetrado pelos agentes políticos e privados do capital, este se dá por terra, ar ou água”

Apib decidiu se retirar da Mesa de Conciliação no STF sobre a Lei 14.701. Foto: Tiago Miotto | Cimi

Apib decidiu se retirar da Mesa de Conciliação no STF sobre a Lei 14.701. Foto: Tiago Miotto | Cimi

Nesse cenário, destaca a permanente e acirrada disputa política e jurídica instalada no Brasil em torno da natureza dos direitos dos povos indígenas aos territórios que tradicionalmente ocupam. O reconhecimento destes direitos na Constituição Federal de 1988 como sendo originários, indisponíveis e alienáveis, nunca aquietou as forças econômicas, nacionais e internacionais, que ao longo destes 35 anos se utilizaram de sua posição privilegiada no controle das instâncias do Estado e da violência continua contra os povos e contra seus lugares de vida, para inviabilizar, mitigar ou desconstruir qualquer efetivação à garantia desses direitos. Esta disputa desigual nas entranhas do Estado adotou, nos últimos dez anos, a forma da defesa, por parte das oligarquias de sempre, da falaciosa tese do “marco temporal”. Pretende o poder econômico, a burguesia nacional, associada à internacional, com esta tese limitar fatalmente o direito originário dos povos indígenas a seus territórios, determinando que esse direito só será reconhecido se os povos demonstrassem estar na posse, ou na disputa, dos territórios na data de 05 de outubro de 1988. A mal chamada tese confronta, radicalmente, a natureza de origem dos direitos dos povos indígenas, anteriores à própria existência do Estado, fruto, repise-se, do processo colonial imposto, legaliza a absoluta impunidade a todos os crimes e atrocidades cometidos contra os povos indígenas antes de 1988 que resultaram no extermínio e no espólio de seus territórios.

Só a permanente e audaz mobilização político – social, e com a consequente incidência jurídica, dos povos indígenas e seus aliados conseguiu que em setembro de 2023 o Supremo Tribunal Federal reafirmasse o caráter originário e indisponível dos direitos territoriais, afastando, ainda que parcialmente, a tese em disputa, que do marco temporal. Sem dúvida, uma vitória crucial dos indígenas, se consideramos a desigual correlação de forças com o poder econômico. Por outro lado, como dito, vitória parcial e limitada, porque a própria Corte, nesse mesmo julgamento, em equivocada, larga e excessiva interpretação do direito à propriedade privada, reconheceu direito indenizatório e de retenção àqueles que historicamente usurparam ilegal e violentamente, em conluio com o Estado, os territórios dos povos, comprometendo, assim, a efetividade plena da posse das terras por seus legítimos donos.

“A permanente e acirrada disputa política e jurídica instalada no Brasil em torno da natureza dos direitos dos povos indígenas aos territórios que tradicionalmente ocupam”

Todavia, o golpe, o garrote, não decorreu apenas da decisão assaz limitadora da Corte Superior, ele viria também do Congresso Nacional brasileiro, espaço historicamente hegemonizado por representantes das oligarquias nacionais internacionais, onde inúmeras iniciativas dão azo à continuidade do projeto fascista do governo passado. O Congresso, em suas duas Câmaras, à revelia da Constituição Federal e da própria (já mitigada) decisão do Supremo Tribunal, promulgou no final de 2023 a Lei 14.701/23, que além de pretender reestabelecer inconstitucionalmente a plenitude, sem qualquer limitação, do marco temporal para a demarcação das terras indígenas, viabiliza a disponibilidade destas para a exploração econômica de terceiros e inviabiliza os projetos autônomos de vida dos povos indígenas. Desta forma, o Brasil convive hoje com duas decisões, uma judicial e outra legislativa, estabelecedoras de marcos normativos opostos, contraditórios entre si. O aparente paradoxo reflete, na verdade, a intencionalidade política de segmentos que controlam o Estado brasileiro de impedir a efetiva garantia dos direitos dos povos indígenas, explicitam o acordo entre agentes políticos e vários setores da elite econômica nacional e internacional. Esta lei, pois, é meritoriamente inconstitucional.

O que deveria ter sido uma reação imediata do Supremo Tribunal Federal pela imediata inconstitucionalidade da Lei 14.701/23 não aconteceu. Esta regra permanece até hoje em vigência, impedindo, na prática, a demarcação dos territórios e alimentando todas as formas de violência contra os povos que, legitimamente, retomam de forma autônoma as terras que por direito de origem lhes pertencem. Ainda se nos afigura inadmissível quando a mesma Suprema Corte, abdicando de sua obrigação de decidir, tenha constituído em junho de 2024 uma “câmara de conciliação” colocando sobre o balcão da negociação – em óbvia atenção aos interesses do capital nacional e internacional – os direitos originários dos povos, sinalizando, assim, praticamente com sua extirpação. Pretende o Supremo Tribunal Federal, em nome de “conciliação” sobre matéria complexa, que vítimas e algozes cheguem a algum tipo de “acordo”, que não será outro se não exigir mais e mais concessões dos povos indígenas, a renúncia aos direitos que historicamente lhes pertence, por quais tanto, lutaram, resistiram, morreram e continuam a morrer. Essa postura do Supremo Tribunal do Brasil se afigura como uma autêntica cilada política (e jurídica), pretende compor o que não pode ser composto, pois, estamos a falar, reitere-se, de direito fundamental, inalienável e indisponível, de caráter originário.

“Nos afigura inadmissível quando a mesma  Corte, abdicando de sua obrigação, tenha constituído uma ‘câmara de conciliação’ colocando sobre o balcão da negociação os direitos originários dos povos”

No dia 25 de abril, os povos indígenas presentes no 20º Acampamento Terra Livre (ATL) realizaram a marcha “Nosso marco é ancestral. Sempre estivemos aqui”. Foto: Hellen Loures/Cimi

No dia 25 de abril, os povos indígenas presentes no 20º Acampamento Terra Livre (ATL) realizaram a marcha “Nosso marco é ancestral. Sempre estivemos aqui”. Foto: Hellen Loures/Cimi

Esse macabro engenho que vem sendo posto em marcha pela Corte Suprema brasileira precisa ser desmascarado e denunciado. Inaceitável que órgãos, agências, organizações que têm ou dizem ter compromisso com os inegociáveis direitos dos povos indígenas tomem assento em uma mesa de “ negociação ” onde se negocia o inegociável, confessa capitulação decorrente de um governo ímpar quanto à conciliação de classes, que, como sabemos, por sua evidente sabujice aos interesses das várias vertentes do capital só produzirá ainda mais e mais perdimento aos povos indígenas, o que, à obviedade, será decorrente para comunidades quilombolas e demais populações tradicionais. Imaginar vitória, acreditar em avanços ante uma institucionalidade que em todos os planos serve essencialmente aos interesses burgueses, é como acreditar em conto de fadas, uma vez que somente a organização ampla dos povos indígenas, quilombolas, populações tradicionais e seus correspondentes de agonia e sofrimento no campo e na cidade poderá de fato encetar a mobilização e a luta necessária para o enfrentamento e barramento dessa sequência trágica e bárbara de destruição de direitos posta em marcha no Brasil.

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*Luis Fernandez Ventura e secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Marcelo Chalréo é advogado e presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB do Rio de Janeiro.

**O Artigo foi publicado originalmente no Jornal Prensa latina, em 28 de agosto de 2024. O link da original é: https://publica.prensa-latina.cu/pub/derechos-de-los-pueblos-indigenas-en-brasil-son-innegociables

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