Após nova paralisação do julgamento sobre o marco temporal, no STF, indígenas do Maranhão participam de agendas em Brasília
Entre os dias 12 e 15 de junho, lideranças de sete povos do Maranhão participaram de encontros com representantes da Sesai, da Funai, do Senado Federal, do STF e do MPI
Indígenas do estado do Maranhão desembarcaram em Brasília na última semana para acompanhar o julgamento do caso sobre direitos originários, no Supremo Tribunal Federal (STF). Apesar de mais um pedido de vista, desta vez do ministro André Mendonça, os indígenas seguiram mobilizados na capital federal para uma série de agendas com os Três Poderes.
Entre os dias 12 e 15 de junho, lideranças de sete povos – Kanela-Apãnjekrá, Kanela-Memortumré, Kariu Kariri, Phycop Cati Ji/Gavião, Akroá Gamella, Krepym Katiji e Tremembé de Engenho – participaram de encontros com representantes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) – do Ministério da Saúde –, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), do Senado Federal, do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e do STF. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Regional Maranhão acompanhou as reuniões ao longo da semana.
Sesai
Na última terça-feira (13), os indígenas foram recebidos pelo secretário de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, Weibe Tapeba. Na ocasião, as lideranças denunciaram ao secretário as precárias condições de acesso à Saúde no estado do Maranhão – como a falta de medicamentos, de veículos e gasolina para transportá-los aos hospitais, de água potável e saneamento básico, de infraestrutura e de profissionais da área – dentistas, enfermeiros e médicos.
Além dessas questões, há um agravante frisado pelos indígenas em diversos momentos: o racismo. Durante a reunião, uma liderança do povo Tremembé de Engenho lembrou da dificuldade que os indígenas tiveram no início da vacinação contra a Covid-19, no Brasil. Alguns não conseguiram se vacinar, inicialmente, porque funcionários da Saúde alegaram que eles “não eram indígenas”.
“Alguns não conseguiram se vacinar inicialmente, porque funcionários da Saúde alegaram que eles ‘não eram indígenas'”
Ao final da reunião, as lideranças entregaram um documento ao secretário Weibe Tapeba com os pedidos de melhorias de cada povo, que prometeu atender as demandas – apesar das dificuldades.
“Não sei em quanto tempo conseguirei dar uma devolutiva, mas irei me comprometer com as demandas. A mudança de chave não é rápida, temos dificuldades nos próprios distritos”, afirmou Weibe Tapeba.
STF
No mesmo dia, lideranças do povo Apãnjekra-Canela compareceram ao STF para denunciar aos ministros que, em razão da anulação de uma Portaria Declaratória referente à Terra Indígena (TI) Porquinhos, em 2014, está ocorrendo um aumento significativo dos casos de desmatamento e invasões no território.
“Nosso território está sendo devastado em função da anulação da demarcação em 2014, mesmo pendente recursos e pedidos de ingresso do nosso povo como parte no processo que tramita no STF. Estão se aproveitando da decisão da 2ª turma para invadirem e derrubarem a mata nativa, nos deixando sem meios de subsistência”, diz um trecho do documento protocolado nos gabinetes dos ministros da Suprema Corte.
“Estão se aproveitando da decisão da 2ª turma para invadirem e derrubarem a mata nativa, nos deixando sem meios de subsistência”
Ainda em documento, os indígenas dizem não haver nenhuma fiscalização e proteção por parte da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e da União em razão da anulação da portaria declaratória, o que fez aumentar muito os crimes ambientais na TI Porquinhos. “Ninguém fiscaliza e pune pelos crimes ambientais cometidos”.
“Ninguém fiscaliza e pune pelos crimes ambientais cometidos”
Em setembro de 2014, a 2ª Turma do STF atendeu a um pedido dos municípios do estado do Maranhão e anulou a Portaria Declaratória 3.508/2009, do Ministério da Justiça, que declarou a TI Porquinhos como de posse permanente do povo Apãnjekra-Canela e resultou na ampliação da área demarcada em 1979 – data anterior à promulgação da Constituição Federal.
O caso foi tratado na Justiça com base em uma das condicionantes aplicadas no caso da TI Raposa Serra do Sol (RR) – condicionante nº 17 –, que veda a ampliação de terras indígenas já demarcadas. Desde então, os indígenas reivindicam a anulação do processo que tramita na Suprema Corte.
Essa é mais uma tentativa de derrubar a demarcação de um território por meio da aplicação do marco temporal: para ruralistas e setores econômicos interessados na exploração dos territórios, os Apãnjekra-Canela não estavam ocupando a área reivindicada – a aldeia Travessia – na data da promulgação da Constituição Federal, no dia 5 de outubro de 1988, e por isso não deveriam ter direito ao território em questão.
Mas, conforme defendem os indígenas e indigenistas, o cenário de violência e esbulho enfrentado por eles, especialmente em 1979 – quando o processo de demarcação da terra indígena dos Apãnjekra-Canela foi finalizado –, derruba a falaciosa tese do marco temporal.
Senado Federal
No Senado, na quarta-feira (14), parte da delegação do Maranhão teve a oportunidade de dialogar com parlamentares e mostrar a angústia perante o Projeto de Lei 2903/2023 – antigo PL 490/2007 –, proposição que tem como objetivo inviabilizar a demarcação dos territórios originários por meio da aplicação do marco temporal. Na ocasião, os indígenas pediram aos senadores que barrem o projeto na Casa.
“A nossa realidade não é diferente de nenhuma comunidade indígena do país. Sofremos na pele a violência do racismo e da expropriação de nossas terras tradicionais e exclusão dos espaços políticos, para o benefício do agronegócio. Além disso, também vivenciamos, enquanto indígenas do Nordeste, de forma ainda mais aguda, o questionamento de nossa tradicionalidade e o apagamento de nossas identidades”, diz um trecho de um documento entregue aos parlamentares.
“Vivenciamos, enquanto indígenas do Nordeste, de forma ainda mais aguda, o questionamento de nossa tradicionalidade”
“Diante da realidade do Nordeste, a aprovação do marco temporal significará danos ainda mais graves para as comunidades aqui representadas. Nos acusam de não sermos indígenas, porque, por vezes, não correspondermos ao estereótipo do imaginário popular racista. Além disso, muitas comunidades que hoje se reestruturam e retomam sua identidade foram obrigadas a se esconder por décadas em virtude da violência sofrida. Diante disso, não teriam condições de estar na terra na data da promulgação da Constituição Federal. […] Contamos com a sua combatividade para barrar o PL 2903/2023, que busca regulamentar a tese do marco temporal”, completa.
“Diante da realidade do Nordeste, a aprovação do marco temporal significará danos ainda mais graves para as comunidades aqui representadas”
O documento foi entregue a senadores do estado do Maranhão, Eliziane Gama (PSD/MA) e Weverton Rocha (PDT/MA), e ao senador e presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participava do Senado, Paulo Paim (PT/RS).
Funai
No dia 14 de junho, parte da delegação que não foi ao Senado Federal, compareceu à Funai. Na ausência da presidenta Joênia Wapichana, que estava em agendas fora de Brasília, os indígenas foram recebidos pela diretora de proteção territorial da Funai, Maria Janete Albuquerque de Carvalho.
Na oportunidade, uma das lideranças disse que os povos “estão com pressa para tudo”. “O nosso território não é demarcado, por isso não oferecem Educação e Saúde para nós. O inimigo faz o que quer. Quando nós, povos indígenas, fazemos a nossa defesa, não somos discriminados, somos incriminados mesmo. Nunca deixamos de lutar pelos nossos direitos, mas é tudo muito demorado”, relatou a liderança.
“Quando nós, povos indígenas, fazemos a nossa defesa, não somos discriminados, somos incriminados mesmo”
Outra liderança – que também não será identificada por questão de segurança –, denunciou que os invasores estão “acabando com tudo”.
“Os posseiros estão acabando com tudo. Então, estou correndo atrás do meu direito e do direito do meu povo. Não quero perder a nossa terra, não quero que tomem a nossa terra. Meu tronco era desse Brasil. Minha avó morava nesse lugar, ela comandava esse lugar. Fazendeiros estão explorando o nosso território. Tem uma pessoa que está tomando conta da nossa terra, e já está até morando perto de nós. Está crescendo boi ao nosso redor”, denunciou.
“Nossa história é antiga, essa terra é antiga. Então a gente quer demarcar para trabalhar, para ficar alegre, para cuidar da vida. Eu quero que nos acudam [Funai e outros órgãos competentes pelos direitos originários], porque não podem acabar com a vida dentro da nossa terra. Estão acabando com a caça, com as árvores. Estão colocando veneno na água”, finalizou.
“Nossa história é antiga, essa terra é antiga. Então a gente quer demarcar para trabalhar, para ficar alegre, para cuidar da vida”
Ao final, a diretora Maria Janete Albuquerque recebeu os documentos com os pedidos de melhorias dos indígenas para realizar o protocolo.
MPI
Como parte da extensa agenda de reuniões em Brasília, os indígenas foram recebidos também pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI) na tarde da última quinta-feira (15). A secretária de Direitos Ambientais e Territoriais Indígenas, Eunice Kerexu, foi quem se reuniu com as lideranças no ministério.
“Reafirmamos, com mais força, o nosso compromisso com os povos indígenas, pois a urgência nas demarcações e na proteção territorial é gritante. Não temos mais tempo de esperar ou planejar, as ações devem ser agora”, afirmou a secretária.
“Não temos mais tempo de esperar ou planejar, as ações devem ser agora”
À Kerexu, os indígenas apresentaram as principais demandas territoriais: no Maranhão, há terras indígenas em processo de demarcação sendo invadidas por atividades relacionadas ao agronegócio. Exemplo disso é o episódio que ocorreu no mesmo momento em que acontecia a reunião no MPI: o povo Tremembé do Engenho, de São José de Ribamar (MA), foi surpreendido com a invasão de um trator no território na manhã do dia 15 de junho.
A máquina – propriedade daquelas pessoas que se autointitulam como “donas do território” – limpou parte da terra indígena, retirando a vegetação local. Em agosto do ano passado, a Funai publicou uma portaria que institui o Grupo de Trabalho (GT) para demarcação do território do povo Tremembé do Engenho. Em março deste ano, a Funai iniciou os trabalhos de identificação e delimitação da terra indígena, o que deveria ser um impeditivo para qualquer tipo de invasão.
A secretária Kerexu se comprometeu a atender as demandas e deslocar uma equipe do MPI aos territórios dos povos Kanela-Apãnjekrá, Kanela-Memortumré e Guajajara para fazer um levantamento mais aprofundado sobre as invasões por posseiros, madeireiros, entre outros, nessas áreas.