Maioria dos deputados federais insiste em inviabilizar demarcação de terras indígenas por meio de projeto de lei
Às vésperas da retomada do julgamento do caso de repercussão geral, no STF, deputados aprovam requerimento de urgência do PL 490, que inviabiliza demarcação de territórios
Enquanto os povos originários resistem para manter as florestas em pé, os rios limpos e, até mesmo, para proteger as próprias vidas, parlamentares da bancada ruralista tentam, sistematicamente, legalizar todo o histórico de violação contra os indígenas e seus territórios por meio de proposições que caminham na contramão do mundo.
Esse é o caso do Projeto de Lei (PL) 490/2007, de autoria do deputado Homero Pereira (PR/MT) – parlamentar já falecido –, que teve a urgência de votação aprovada na noite da última quarta-feira (24) pela Câmara Federal. A previsão é de que o mérito do projeto seja apreciado na próxima semana pelos deputados.
O projeto, amplamente inconstitucional, prevê uma série de modificações nos direitos territoriais garantidos aos povos indígenas na Constituição Federal de 1988, inviabilizando, na prática, a demarcação de terras indígenas. Além disso, altera o Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973) e incorpora medidas da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, uma das principais ameaças aos direitos originários que já passou pelo Congresso.
“O projeto prevê uma série de modificações nos direitos territoriais garantidos aos povos indígenas na Constituição Federal de 1988″
O PL 490/2007 ignora, ainda, a consulta livre, prévia e informada, assegurada aos povos originários na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), escancarando terras já demarcadas para diversos empreendimentos predatórios, como agronegócio, mineração e construção de estradas e hidrelétricas.
O projeto já tramitou pelas comissões de Agricultura, de Direitos Humanos e de Constituição e Justiça (CCJ). Agora, o projeto aguarda apreciação do plenário da Câmara Federal para que, posteriormente, seja analisado também pelo Senado.
Câmara Federal
Com um placar de 324 votos contra 131 e duas abstenções, a urgência de votação do PL 490/2007 foi aprovada pelo plenário da Câmara Federal na noite do dia 24 de maio. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) fez um levantamento de como votaram partidos e parlamentares.
Num dos extremos, fechando posição unificada contra os direitos indígenas, seis dos 21 partidos que participaram da votação deram 100% de seus votos a favor da urgência do PL 490: Republicanos (38 votos), PSDB (14), PSC (3), Patriota (4), Avante (4) e Novo (3).
Outros seis partidos garantiram a maioria de seus votos a favor do requerimento que atribuiu urgência à tramitação do PL anti-indígena. São eles o PL, PSD, União Brasil, PP, MDB e Podemos. Juntos, esses partidos somaram 269 a favor do projeto e apenas 19 contra.
Desse conjunto, quatro partidos deram mais de 90% de seus votos a favor da urgência: PL (85 votos a favor), PSD (33 a favor), União Brasil (46 a favor) e PP (40 a favor). MDB (34 votos a favor) e Podemos (10 a favor) também tiveram posição majoritariamente anti-indígena, com mais de 80% de seus votos contra os direitos indígenas.
O Cidadania e o Solidariedade, por sua vez, dividiram meio a meio seus poucos votos, que somam seis no total, três dos quais foram a favor do projeto.
A maioria dos parlamentares de PDT e PSB, por outro lado, votou contra a urgência do PL 490, contrariando a orientação do bloco que ambas as legendas compõem na Câmara. Na prática, o PDT deu 12 de seus 17 votos contra a urgência do PL, enquanto o PSB deu 85% de seus votos – 11 de 13 – contra o projeto anti-indígena.
Na ponta oposta, cinco partidos firmaram uma posição coesa contra o PL 490 e deram a totalidade de seus votos contra a urgência do projeto e, portanto, a favor dos direitos indígenas. São eles o PT (62 votos), PSOL (11), PCdoB (7), PV (5) e Rede (1).
Entre as orientações de voto, chamou atenção a postura da liderança do governo na Câmara. Apesar de indicar que, na votação de mérito, terá uma “nova orientação”, o governo liberou sua bancada na votação da urgência do PL 490.
As disputas atualmente em curso no Congresso e as próprias divergências internas dentro do governo, por sua ampla composição, tornam difícil estimar a efetiva posição do Executivo em relação à defesa dos direitos indígenas e o alcance prático de sua orientação.
É possível identificar que cinco dos nove partidos que possuem cargos de primeiro escalão na Esplanada dos Ministérios deram votos a favor do PL 490: PSB, PDT, PSD, MDB e União Brasil somaram um total de 120 votos contra os direitos dos povos originários.
Mesmo se considerarmos todos os nove partidos que possuem ministérios no governo Lula – o que inclui também PSOL, Rede, PCdoB e o próprio PT – o placar ainda é desfavorável aos povos indígenas: as nove legendas somaram 120 votos a favor da urgência PL 490 e apenas 114 contra.
Para Cleber Buzatto, integrante do Cimi Regional Sul, o resultado da votação “representa uma fotografia da correlação das forças na Câmara dos Deputados”. “Essa fotografia é revelada a partir da posição dos partidos políticos que têm representantes naquela Casa legislativa. É importante destacar quais são os partidos e seus respectivos percentuais de votação. Toda vez que se tem qualquer tipo de eleição e se vota nesses partidos que votaram agora favoráveis ao PL 490, quem vota nesse partido deve estar ciente de que, direta ou indiretamente, está também votando contra os povos indígenas”.
“Quem vota nesse partido deve estar ciente de que, direta ou indiretamente, está também votando contra os povos indígenas”
A aprovação do requerimento de urgência do PL 490/2007 ocorre justamente às vésperas do julgamento do caso que irá definir os marcos constitucionais para a demarcação dos territórios indígenas de todo o país.
Ainda de acordo com Cleber, a votação na Câmara é “um indicador bastante objetivo de que os inimigos dos povos indígenas estão preocupados com o que pode acontecer no julgamento do Supremo Tribunal Federal”.
Em uma nota coletiva, um conjunto de organizações pastorais também alerta para as contradições na atuação do governo.
“Nos causa perplexidade o fato de que o atual governo federal, que se elegeu com o compromisso de salvaguardar os direitos dos povos indígenas e avançar em sua efetivação, tenha liberado os parlamentares da base governista durante a votação da urgência deste gravíssimo projeto de lei”, diz um trecho da nota.
Na contramão da Constituição
Em parecer técnico produzido quando a proposta ainda tramitava na CCJ, a assessoria jurídica do Cimi aponta que o PL 490/2007 é inconstitucional até em sua forma, já que a Constituição Federal não pode ser modificada por meio de um projeto de lei.
Vale destacar também que a proposição pretende aplicar às demarcações o marco temporal, tese defendida por ruralistas e setores políticos e econômicos interessados na exploração das terras tradicionais – de acordo com ela, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988 – data da promulgação da Constituição –, ou que, naquela data, estivessem sob disputa física ou judicial comprovada.
Além de não ser prevista pela Constituição, esta tese não leva em consideração as diversas violências sofridas pelos indígenas ao longo da história do país. Outro ponto que não pode ser esquecido é que, até o fim do período da ditadura militar, os povos indígenas eram tutelados pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) – e pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que antecedeu a Funai. Por isso, não tinham meios para reivindicar seus direitos na Justiça.
“Além de não ser prevista pela Constituição, esta tese não leva em consideração as diversas violências sofridas pelos indígenas ao longo da história do país”
A análise jurídica também aponta que, por tratar de direitos humanos e fundamentais dos povos indígenas, o artigo 231 da Constituição constitui cláusula pétrea e não pode ser alterado. Essa posição também é defendida pelo ministro Edson Fachin, relator do caso de repercussão geral sobre terras indígenas no STF.
Julgamento no STF
No próximo dia 7 de junho, o STF irá retomar o julgamento do caso de repercussão geral que pode definir o futuro das terras indígenas do Brasil. A expectativa de indígenas e de apoiadores da causa é de que a tese do indigenato seja reafirmada pela Corte e o marco temporal seja definitivamente rechaçado, respeitando os princípios da Constituição.
Em 2019, o STF reconheceu a repercussão geral do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 – caso que discute uma reintegração de posse movida contra a Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, do povo Xokleng, em Santa Catarina. Isso significa que a decisão tomada neste julgamento terá consequências para todos os povos indígenas do Brasil.
Dois anos depois, em junho de 2021, indígenas de todo o país se deslocaram até a capital federal para acompanhar o início do julgamento do caso. Na ocasião, foi erguido o acampamento “Levante pela Terra”, maior mobilização indígena pós Constituinte – o movimento contou com a participação de seis mil pessoas e lideranças de 170 povos.
Até o momento, o placar da votação na Suprema Corte está empatado: no dia 9 de setembro de 2021, o relator e ministro Edson Fachin se posicionou contrário ao marco temporal. Por outro lado, o ministro Nunes Marques – indicado pelo governo Bolsonaro – apresentou um voto na direção oposta aos direitos originários. O julgamento está paralisado desde o dia 15 de setembro daquele ano, quando o ministro Alexandre de Moraes pediu vista.
Para acompanhar a nova retomada do julgamento, diversos povos indígenas já estão se organizando para voltar para Brasília no próximo mês – a princípio, entre os dias 5 e 8 de junho.
Na última semana, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) solicitou à Advocacia-Geral da União (AGU) que revogue o Parecer 001/2017 – “Parecer antidemarcação” – e reverta a posição sustentada pelo órgão no julgamento, ainda sob o governo Bolsonaro.
O Parecer, que chegou a ser suspenso pelo STF, é outro instrumento que busca inviabilizar a demarcação de terras indígenas ao determinar, de forma inconstitucional, que toda a administração pública federal adote uma série de restrições à demarcação de terras indígenas. Entre elas, estão as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol e a própria tese do marco temporal.