05/04/2023

Novo coordenador da Univaja eleito prioriza segurança, proteção territorial e autonomia na TI Vale do Javari

Representantes dos povos Kanamari, Matis, Mayoruna/Matsés, Kulina Pano, Marubo e Korubo elegem nova diretoria, debatem seus desafios e recebem Ministra presidenta do STF e do CNJ, Rosa Weber

Novo coordenador da Univaja, Bushe Matis. Foto: José Medeiros /Agência Pública

Novo coordenador da Univaja, Bushe Matis. Foto: José Medeiros /Agência Pública

Gilmara Fernandes, Coordenação Cimi Regional Norte I e Lígia Apel, Assessoria de Comunicação Cimi Regional Norte I

“Queremos que o mundo continue vendo que no Vale do Javari existe problema, existe falta de segurança e de políticas públicas nas áreas indígenas. Queremos contar com as mídias para que o mundo não desassista o Vale do Javari”. Essa é uma das prioridades de trabalho do novo coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Bushe Matis, eleito na 7ª Assembleia da organização, realizada nos dias 18 a 20 de março, na aldeia Paraná, alto rio Ituí, uma aldeia Marubo, Terra Indígena Vale do Javari.

Bushe toma posse no dia 06 de abril e já está com o plano de gestão alinhado. Segurança, visibilidade, políticas públicas, proteção aos povos isolados e autonomia são as frentes de ação que o Matis elegeu como prioridades.

“Queremos que o mundo continue vendo que no Vale do Javari existe problema, existe falta de segurança e de políticas públicas nas áreas indígenas”

“Continuamos sendo ameaçados, solicitamos a presença da Força Nacional e equipes de segurança, Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], Procuradorias federal e estadual, para atuarem junto com as lideranças indígenas. Queremos contar com as mídias para que o mundo não desassista o Vale do Javari. Saúde, educação, desenvolvimento, sustentabilidade e proteção territorial, toda a questão do manejo, etnomapeamento… Os povos do Javari que são contatados precisam de mais atendimento, diferente dos povos isolados que precisam de proteção e monitoramento, para barrar e coibir os invasores”, enumera o novo coordenador da Univaja.

A expectativa é grande e está refletida nos rostos das lideranças presentes, como Alfredo Marubo, que logo no início da assembleia animou os participantes dizendo que a Univaja é o espaço dos povos da região. “Nós somos parte da Univaja, lutamos por nossos direitos e por nossas vidas, nossa organização luta por isso”, disse com orgulho.

“Nós somos parte da Univaja, lutamos por nossos direitos e por nossas vidas, nossa organização luta por isso”

7ª Assembleia da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Foto: Almério Alves Wadick / Cimi Regional Norte 1

7ª Assembleia da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Foto: Almério Alves Wadick / Cimi Regional Norte 1

Após um período muito duro vivido com a pandemia, que impediu os encontros presenciais, a Univaja realiza sua assembleia com muita festa, alegria e debates importantes. Participaram 87 representantes dos povos Kanamari, Matis, Mayuruna/Matsés, Kulina Pano, Marubo e, pela primeira vez, a assembleia contou com a presença de três representações do povo Korubo, indígenas de recente contato.

Além dos delegados indígenas participaram os parceiros Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Conselho Indigenista Missionários (Cimi) e os órgão do governo como a Fundação dos Povos Indígenas (Funai), Fundação Amazônia Sustentável (FAS), Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação (SEDECTI), atuando no Núcleo Estadual de Fronteiras (NIFFAM). Ao total estiveram presentes 120 participantes. Todos com a determinação de contribuir com a proteção dos povos do Vale do Javari.

“Após um período muito duro vivido com a pandemia, a Univaja realiza sua assembleia com muita festa, alegria e debates importantes”

A Univaja é composta pelas nove organizações de base dos povos indígenas que vivem no território: Mayoruna/Matsés, Kanamary, Marubo, Korubo, Matis, Kulina e Tsohom Diapá. Também vivem ali povos isolados.

Na assembleia, as organizações apresentaram seus trabalhos ao longo dos últimos anos e um dos principais desafios apresentados, que se mostrou comum a todos os representantes, foi o problema da fiscalização e monitoramento da Terra Indígena (TI) Vale do Javari. Os relatos apontaram para a presença de caçadores, pescadores, narcotraficantes na região de fronteira (rio Jaquirana, médio Javari), perfazendo limite fronteiriço com o país vizinho, o Peru.

“Na assembleia, as organizações apresentaram seus trabalhos ao longo dos últimos anos e um dos principais desafios apresentados”

Terra Indígena Vale do Javari. Foto: Almério Alves Wadick /Cimi Regional Norte 1

Terra Indígena Vale do Javari. Foto: Almério Alves Wadick /Cimi Regional Norte 1

“Ocorre uma pressão na TI Vale do Javari, principalmente por pescadores, em especial de pirarucu e animais de caça. Além desses invasores e saqueadores, as aldeias sofrem com ameaças constantes de narcotraficantes, que circulam livremente pela região. Essas atividades ilícitas estão associadas com as práticas ilegais de pesca e caça”, afirmam.

Diante dessa situação, os povos indígenas do Javari montaram estratégias de organização, monitoramento e vigilância próprios. A Equipe de Vigilância da Univaja, conhecida como ‘EVU’, faz esse trabalho. Um dos colaboradores da EVU foi Bruno Pereira, o ambientalista assassinado em 2022 por pescadores invasores e narcotraficantes. Bruno contribuiu com ações de fiscalização, prisão de invasores e apreensão de recursos naturais saqueados da floresta.

“Ocorre uma pressão na TI Vale do Javari, principalmente por pescadores, em especial de pirarucu e animais de caça”

Na assembleia, houve solicitação de mais capacitações em segurança. “Precisamos que cada vez mais indígenas sejam capacitados em proteção territorial e que as aldeias tenham mais segurança, equipamentos e fiscalização”, foi um pedido unânime dos participantes.

Políticas públicas de saúde e educação específicas estão entre os outros desafios apresentados durante a assembleia. Na saúde enfrentam diversos problemas tanto nas comunidades como quando precisam de tratamento na cidade. A educação escolar indígena, esse ano, sofre o descaso do poder público. O ano letivo já começou há dois meses e, ainda, existem comunidades que estão sem aula.

“Políticas públicas de saúde e educação específicas estão entre os outros desafios apresentados durante a assembleia”

7ª Assembleia da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Foto: Almério Alves Wadick / Cimi Regional Norte 1

7ª Assembleia da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Foto: Almério Alves Wadick / Cimi Regional Norte 1

Algumas comunidades contam com o ensino fundamental, mas a ausência do ensino médio provoca um êxodo da juventude, dos diferentes povos (Marubo, Kanamari, Matis e Mayoruna/Matsés), para concluir o ensino médio na cidade, em Atalaia do Norte. “Sem um acompanhamento adequado e específico, esses estudantes têm muita dificuldade no aprendizado, justamente, porque precisam se manter na cidade e enfrentam várias dificuldades”, problematiza a assembleia.

Mesmo com tantos desafios de um Estado ausente, principalmente nos últimos anos, pois sofreram ataques sistemáticos e de toda ordem pela política anti-indígena do ex-presidente Jair Bolsonaro, a Univaja mostrou que a sua luta para defender a vida e o direito dos povos indígenas não esmorece e não para. A organização, apoia e incentiva a formação e estruturação de outras organizações que possam estar atendendo as comunidades nas diversas calhas dos rios que banham a Terra Indígena Vale do Javari.

“Sem um acompanhamento adequado e específico, os estudantes têm muita dificuldade no aprendizado, porque enfrentam várias dificuldades”

A assembleia dinâmica e participativa, deliberativa e legítima, é um dos resultados dessa luta. Walclei Araújo Kulina, presidente da Associação Indígena Kulina do Vale do Javari (Aikuvaja), diz que a assembleia foi emocionante e que apesar da disputa, foi um momento de união e interação. “Foi emocionante mesmo, pela primeira vez uma eleição disputada entre parente e parente. Foi muito legal a nossa reunião. Muito discurso, muito bom porque os parentes interagiram, os caciques interagiram”, disse, animado com os resultados e aprendizados.

A assembleia, que foi eletiva escolheu Bushe Matis para a coordenação, por meio de um processo eleitoral democrático, mostrando representatividade e autonomia em todo o pleito. Almério Alves Wadick, mais conhecido como Kell, é um dos missionários do Cimi no Vale do Javari que atua na região, há quase 30 anos, acompanhou o processo eleitoral da Univaja e avalia que as lideranças alcançaram uma posição soberana de atuar sem interferências de pessoas ou instituições não indígenas.

“A assembleia dinâmica e participativa, deliberativa e legítima, é um dos resultados dessa luta do povos do Vale do Javari”

7ª Assembleia da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Foto: Almério Alves Wadick / Cimi Regional Norte 1

7ª Assembleia da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Foto: Almério Alves Wadick / Cimi Regional Norte 1

“A assembleia foi propositiva no sentido de que os indígenas conseguiram ‘driblar’ algumas interferências da política local, no sentido da escolha do coordenador. Estamos percebendo que eles perceberam isso e não deixaram acontecer. Mostraram que estão agindo com autonomia. Ficamos satisfeitos com isso porque essa é nossa luta: que os indígenas caminhem com seus entendimentos e donos dos seus processos”, afirma.

Para Urbano Muller, também missionário do Cimi que atua na equipe Vale do Javari há vários anos, a articulação entre as organizações de base foi um ponto importante da assembleia, assim como a presença dos parceiros que apoiam os povos indígenas. “Todos tiveram a oportunidade de apresentar seus projetos e atividades”, salientou, dizendo que o olhar sobre as demandas gera fortalecimento da organização. “Com maior articulação a nível da coordenação da Univaja com os povos indígenas, com as aldeias, com os caciques, é possível ver e conhecer as demandas das bases e se fortalecer para buscar mais resultados. Há esperança de que haja alguma melhoria no movimento indígena”.

“Ficamos satisfeitos com isso porque essa é nossa luta, com os indígenas caminhando com seus entendimentos e donos dos seus processos”

Urbano disse ainda, que há esperança também no novo governo, assim como na realização da assembleia. Reforçando o que os indígenas avaliaram, o missionário também considera muito preocupante as invasões no território. A proteção e vigilância devem ser permanentes e saindo dos anos cruéis do governo Bolsonaro, a perspectiva é de melhorias.

“Predominou [nos debates da assembleia] a discussão sobre as diretrizes da gestão e defesa do território da Terra Indígena Vale do Javari, mas a problemática da gestão territorial, da vigilância, o problema das invasões desse extenso território, é uma questão muito complexa e agora, com o novo governo do Brasil, há esperança de melhores tempos para os povos indígenas. Também com a nova coordenação da Univaja a esperança se renovou. Foi um momento importante para o movimento indígena, que deve realmente se fortalecer”, concluiu.

“A proteção e vigilância devem ser permanentes e saindo dos anos cruéis do governo Bolsonaro, a perspectiva é de melhorias”

7ª Assembleia da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Foto: Almério Alves Wadick / Cimi Regional Norte 1

7ª Assembleia da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Foto: Almério Alves Wadick / Cimi Regional Norte 1

A assembleia agradeceu aos parceiros pela presença e ao Cimi fez um agradecimento especial por ter acompanhado, desde o início, a luta pela demarcação da Terra Indígena. As lideranças solicitaram que a equipe do Cimi continue junto, enfrentando desafios, fortalecendo o trabalho nas aldeias, na formação política e no acompanhamento das bases, das lideranças, na defesa dos direitos e denúncia das violações de direitos.

Bush Matis coordenará a Univaja para o triênio 2023/2025, com o Varney Todah Kanamari na vice coordenação. “O grande desafio é continuar lutando pela união na diversidade dos povos do Vale do Javari. Na luta de cada dia por seus direitos e por suas histórias”, é uma das premissas consideradas desafiadoras pelas lideranças na assembleia.

“As lideranças solicitaram que a equipe do Cimi continue junto, enfrentando desafios, fortalecendo o trabalho nas aldeias”

7ª Assembleia da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Foto: Almério Alves Wadick / Cimi Regional Norte 1

7ª Assembleia da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Foto: Almério Alves Wadick / Cimi Regional Norte 1

Visita Ministerial

Um dos pontos mais altos da assembleia foi a visita da Ministra Rosa Weber, presidenta do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O objetivo da ida à aldeia, em um momento em que estavam reunidas as lideranças, foi o lançamento de cartazes sobre audiências de custódia nas línguas indígenas do Alto Solimões, na língua Tikuna, e Vale do Javari, para as línguas Kanamari, Mayoruna/Matsés, kulina e Marubo.

“As lideranças relataram à Ministra a situação de violências extremas que enfrentam, principalmente nos últimos quatro anos, quando o governo brasileiro se negou a protege-los”

O material é resultado da parceria entre o Tribunal de Justiça, a Escola da Magistratura do Amazonas e o CNJ, no âmbito do Programa “Fazendo Justiça”, do CNJ. O Cimi teve uma participação especial na parceria específica para os cartazes do Vale do Javari, articulando as traduções junto às lideranças indígenas.

Sentindo-se valorizados pela visita, as lideranças relataram à Ministra a situação de violências extremas que enfrentaram, principalmente nos últimos quatro anos, quando o governo brasileiro se negou a protege-los, tendo como consequência inúmeras situações de ameaças, a vulnerabilidade dos indígenas e territórios, os saques desenfreados aos recursos naturais e o abandono das políticas públicas de saúde e educação.

“Como os mais de 300 povos indígenas do país, defendemos a retomada urgente à pauta da Suprema Corte do emblemático julgamento do marco temporal”

Presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber na Aldeia Paraná, no Vale do Javari (AM). Foto: Fellype Sampaio

Presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber na Aldeia Paraná, no Vale do Javari (AM). Foto: Fellype Sampaio

Entregaram à Rosa Weber uma Carta expondo essas e outras questões e solicitando que seja agendado, com urgência o julgamento do marco temporal, tese inconstitucional e defendida pelos ruralistas, que compromete a existência indígena em solo brasileiro.

Na Carta, a exposição de motivos diz que “assim como os mais de 300 povos indígenas do país, defendemos a retomada urgente à pauta da Suprema Corte do emblemático julgamento do marco temporal. É imprescindível que os Exmos Ministros adotem a correta interpretação do artigo 231 da Constituição Federal que, sob a perspectiva do Indigenato, estabelece que os direitos territoriais indígenas são originários, anteriores à própria Constituição do Estado brasileiro, e, portanto, não estão condicionados a nenhuma espécie de data ou marco temporal, cabendo ao Estado apenas a sua declaração e reconhecimento de direito prévio”.

“A não aprovação da tese do marco temporal é extremamente importante para a manutenção dos direitos históricos conquistados ao longo da história”

Ministra Rosa Weber na Aldeia Paraná, no Vale do Javari (AM). Divulgação / CNJ

E condicionam a não aprovação da tese à continuidade de suas vidas, como elas são.

“A não aprovação da tese do marco temporal é extremamente importante para a manutenção dos direitos históricos conquistados a duras penas pelo movimento indígena ao longo da história. A relação com o território é para nós condição fundamental a garantir a nossa existência, não uma mera propriedade. Acolher essa interpretação [de propriedade] inconstitucional é acolher discurso anti-indígena que prega a nossa extinção”, conclui a Carta.

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