02/12/2022

Justiça acata demanda dos Guarani e pede averbação da demarcação de terra indígena

União e Funai tem até dia 6 de dezembro para cumprir com a decisão e registrar publicamente em cartório de imóveis a existência do processo de demarcação da TI Morro dos Cavalos

A ACO 2323 é uma ação do estado de Santa Catarina que, no mérito, busca anular a demarcação da TI Morro dos Cavalos com base na tese do chamado “marco temporal”. Crédito: Tiago Miotto/Cimi

A ACO 2323 é uma ação do estado de Santa Catarina que, no mérito, busca anular a demarcação da TI Morro dos Cavalos com base na tese do chamado “marco temporal”. Crédito: Tiago Miotto/Cimi

Por Maiara Dourado, da Assessoria de Comunicação do Cimi

A decisão judicial, dada no último dia 22, “atende a uma demanda dos próprios Guarani”, explica Cleber Buzatto, membro da coordenação colegiada do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Regional Sul. A sentença obriga o Estado a adotar providências para averbar o processo de demarcação da Terra Indígena (TI) Morro dos Cavalos. Isso significa que a União e a Fundação Nacional do Índio (Funai) terão que, em um prazo de dez dias – que termina no próximo dia 6, segunda-feira –,  informar de forma ampla e pública a existência do processo demarcatório da TI Guarani.

Caso contrário, o Estado pode ser penalizado com multa de R$100 mil. A averbação vale até o registro definitivo do território, isto é, após a homologação da demarcação pela Presidência da República, e deverá ser feita no Ofício de Registro de Imóveis de Palhoça (SC).

No entendimento da Justiça e do Ministério Público Federal de Santa Catarina (MPF-SC), que assumiu a demanda do povo Guarani, a publicidade do processo de identificação da terra indígena deve ser ampliada, não só para salvaguardar os interesses dos indígenas, mas também para proteger os interesses de pessoas e empresas de boa fé que venham a negociar com donos de títulos de terras sobrepostas ao território Guarani.

“A falta da averbação gera insegurança jurídica e pode acarretar danos derivados da utilização de títulos declarados nulos e extintos, incidentes sobre a Terra Indígena, por terceiros de boa fé”, afirma a sentença.

Para Buzatto, essa insegurança se deve à possibilidade de comercialização de terras por parte de não indígenas que possuem posse ou título de terras que pertencem ao território Guarani. “Isso cria uma expectativa em quem eventualmente esteja comprando, e recoloca questões de oposição à demarcação”, explica.

Nesse sentido, a averbação “serve como um mecanismo bem objetivo, bem prático a dificultar bastante, senão impedir a compra e venda de propriedades que incidem sobre a TI Morro dos Cavalos”, considera Buzatto. O comércio de terras acontece, inclusive, devido à demora no processo de finalização do procedimento administrativo da demarcação da terra indígena, que se encontra em estágio avançado, faltando apenas a homologação, uma etapa de responsabilidade da Presidência da República.

“A averbação serve como um mecanismo bem objetivo, bem prático a dificultar bastante, senão impedir a compra e venda de propriedades que incidem sobre a TI Morro dos Cavalos”

Desenho TI Morro dos Cavalos. Foto: Arquivo/Cimi

Foram registrados na Terra Indígena Morro dos Cavalos 78 ocupações não indígenas, sendo 69 de boa fé e cinco de má fé. Para três ocupantes, foi solicitada a apresentação de documentação comprobatória e uma ocupação não foi possível identificar o ocupante. Para Rafael Modesto, advogado e assessor jurídico do Cimi, embora a averbação não tenha impacto direto no processo de demarcação, a decisão “é um reconhecimento da omissão do Estado, e busca dar segurança jurídica aos indígenas e não indígenas de boa fé”, que caso venham comprar as terras em litígio podem ser considerados ocupantes de má fé.

A Justiça já havia considerado a omissão do Estado, quando nem a União nem a Funai cumpriram com a liminar concedida e mantida em juízo de primeira e segunda instância que continha o mesmo teor da sentença. “Atualmente, [a Funai] vem sendo omissa em sua missão institucional de proteger e promover os direitos dos povos indígenas, pois protela atos administrativos e cria obstáculos burocráticos desnecessários”, afirma a sentença, que destaca a necessidade de imposição de multa, por conta do desrespeito ao poder judiciário.

 

Memória da demarcação

A Terra Indígena Morro dos Cavalos situa-se no município de Palhoça, em Santa Catarina, e é uma área tradicionalmente ocupada por comunidades indígenas Guarani Mbya e Nhandeva. No dia 16 de outubro de 2001, a Funai criou o Grupo Técnico (GT), coordenado pela antropóloga Maria Inês Ladeira, o qual deu início ao processo de identificação e demarcação da TI Morro dos Cavalos.

Após anos de estudos, análises jurídicas e contestações, em 18 de abril de 2008, foi emitida pelo Ministério da Justiça (MJ) a Portaria Declaratória n.º 771. A emissão da portaria é uma das últimas etapas do processo de demarcação de terras indígenas, antecedendo apenas a homologação e o registro da TI. Sua expedição reconhece a tradicionalidade da Terra Indígena Morro dos Cavalos e a posse permanente de grupos indígenas Guarani Mbya e Nhandeva em uma área de 1.988 hectares.

Após a emissão da portaria declaratória, foram muitas as tentativas de invalidação do processo de demarcação. Em 2013, os ocupantes não indígenas da área ingressaram com uma ação judicial na Justiça Federal de Santa Catarina contra o reconhecimento e a conformação do território Guarani.

Sob o argumento do marco temporal, o estado de Santa Catarina pediu a anulação da portaria, alegando a ilegalidade do procedimento administrativo, o que levou a ação, conhecida como Ação Cível Originária 2323 (ACO 2323), ao Supremo Tribunal Federal (STF), cuja relatoria está a encargo do ministro Alexandre de Moraes. O processo de demarcação encontra-se, no momento, suspenso em razão do julgamento do Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE-RG) 1.017.365.

Nessa quarta-feira, 30 de novembro, o grupo de trabalho de povos originários do governo de transição entregou um relatório preliminar pedindo a demarcação imediata de 13 terras indígenas. Segundo o grupo de transição, são terras que estão em via de homologação, como é o caso da Terra Indígena Morro dos Cavalos.

Para a Cacica Eliara, da aldeia Yaka Porã, localizada na TI Morro dos Cavalos, o momento é de esperança. “Como já tinha saído uma ordem judicial no qual o governo Bolsonaro não cumpriu, estamos esperançosos com o atual governo eleito, com o qual participamos do processo de transição. Exigimos que nos 30 primeiros dias de governo a TI Morro dos Cavalos seja homologada, assim como as outras 12 TIs”, reivindica.

“Estamos esperançosos com o atual governo eleito, com o qual participamos do processo de transição. Exigimos que nos 30 primeiros dias de governo a TI Morro dos Cavalos seja homologada, assim como as outras 12 TIs

O Judiciário brasileiro ainda precisa percorrer um longo caminho para que o direito dos povos indígenas de acessar a Justiça seja plenamente respeitado. Crédito: Tiago Miotto/Cimi

O Judiciário brasileiro ainda precisa percorrer um longo caminho para que o direito dos povos indígenas de acessar a Justiça seja plenamente respeitado. Crédito: Tiago Miotto/Cimi

 

Histórico do processo de demarcação da TI Morro dos Cavalos

2001 – Criação de Grupo Técnico, coordenado pela antropóloga Maria Inês Ladeira para estudos de identificação da TI Morro dos Cavalos

2002 – Aprovação do relatório de estudo de identificação pela Funai e publicação em Diário Oficial da União

2003 – Publicação do relatório de estudo de identificação em Diário Oficial do estado de Santa Catarina

2008 – Emissão da Portaria Declaratória n.º 771

2012 – Criação de Comissão responsável pela avaliação das benfeitorias dos ocupantes não indígenas da TI Morro dos Cavalos

2013 –  Criação de Comissão de pagamento para realizar a indenização de benfeitorias consideradas de boa-fé

2013 – Requerimento de nulidade da Portaria Declaratória n.º 771 ao Ministério da Justiça por parte do estado de Santa Catarina

2014 – Requerimento da Ação Cível Originária 2323 (ACO 2323) pelo estado de Santa Catarina junto ao STF

2019 – Reivindicação das comunidades Guarani para serem incluídas como parte da ACO 2323

2022 – Determinação do TR4 para homologação da TI Morro dos Cavalos

2022 – Suspensão homologação da TI Morro dos Cavalos

2022 – Averbação do processo de demarcatório da TI Morro dos Cavalos

 

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