• 23/08/2017

    Nota Pública APIB: Jaraguá é Guarani – Não ao projeto de morte de Michel Temer


    Foto: Comissão Guarani Yvirupa

    A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) vem a público manifestar o seu repúdio à decisão do governo Temer de publicar, por meio de seu Ministro da Justiça Torquato Jardin, a Portaria No. 683 de 15 de agosto de 2017, que anula a tradicionalidade – o direito de posse permanente do povo Guarani – declarada pela Portaria 581 em 2015 sobre uma extensão de 512 hectares. A Portaria 683, confina 700 guarani a apenas 1,7 hectare de terra, contrariando a lógica da progressividade do direito, os princípios basilares do direito originário e o entendimento recente da Suprema Corte sobre a ocupação tradicional dos territórios indígenas.

    A APIB denuncia mais esta flagrante violação dos direitos indígenas por parte do governo Temer que busca atender interesses particulares de distintos segmentos do capital, que lhe sustentam, entre eles os ruralistas, determinados a expulsar os povos indígenas dos seus territórios a fim de tomarem conta dos bens naturais preservados milenarmente por esses povos.

    A APIB manifesta a sua solidariedade ao povo Guarani de Jaraguá e alerta as suas bases, a sua rede de apoiadores, nacionais e internacionais, sobre o risco desse governo generalizar medidas dessa natureza que poderão impactar inúmeras terras indígenas regularizadas Brasil afora e chama a somarem forças contra este projeto de morte do governo golpista de Michel Temer.

    Brasília – DF, 22 de agosto de 2017.
    Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB

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  • 22/08/2017

    Governo Temer Condena os Guarani por Crimes do Estado Brasileiro – Nota do Cimi sobre a Portaria 683/17 do Ministério da Justiça


    É injusta, discriminatória, vergonhosa e genocida a iniciativa do governo Temer, por meio do Ministro da Justiça Torquato Jardin, de anular a declaração de tradicionalidade Guarani da terra indígena Jaraguá, no estado de São Paulo. Ao anular a portaria 581/15, que reconhece como de posse permanente dos Guarani uma área aproximada de 532 hectares, por meio da Portaria 683/17, publicada neste 21 de agosto, o governo Temer condena mais de 700 Guarani a viverem confinados em 1,7 hectare de terra, espaço flagrantemente insuficiente para os mesmos viverem de acordo com seus usos, costumes, crenças e tradições.

    Ao tentar justificar a anulação da Portaria 581/15 afirmando que a mesma só teria legalidade e validade se publicada no máximo 5 anos após a demarcação de 1,7 hectare, em 1987, o governo Temer pune os próprios Guarani pela omissão e morosidade do Estado brasileiro. Com a Portaria 683/17, o governo Temer anula o direito dos Guarani à sua terra pelo fato deste direito não ter sido reconhecido há, pelo menos, 25 anos pelo Estado brasileiro. Ao culpar e punir as vítimas, Temer eleva ainda mais o nível de cinismo e de injustiça do seu governo. Tamanho é o desconhecimento do governo sobre o assunto, que conforme o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) a portaria erra as quantidades de hectares da demarcação de 1987 (afirma ser 3, mas na verdade foi apenas 1,7) e da portaria declaratória de 2015 (são 532 hectares, não 512). 

    Não restam dúvidas de que o governo Temer é o mais anti-indígena desde a ditadura militar. Além de não ter publicado portarias declaratórias e decretos de homologação de terras indígenas, Temer agride os povos originários e seus direitos com radicalismo e recorrência. Dentre outras iniciativas, neste sentido, podemos citar: a Portaria 80/17, que institui um Grupo de Trabalho para rever procedimentos de demarcação de terras indígenas no âmbito do Ministério da Justiça; o Decreto 9010/17, que eliminou mais de 300 cargos do quadro de pessoal da Fundação Nacional do Índio (Funai); o Parecer 001/17 da AGU, aprovado pelo Presidente Temer, que, em total desrespeito às decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), obriga toda a administração pública a aplicar a tese do Marco Temporal e condicionantes em todos os processos de demarcação de terras indígenas no Brasil.

    O governo Temer funciona como um escritório avançado de latifundiários e de grandes corporações empresariais, muitas delas multinacionais, ligadas ao agronegócio no Brasil. Enquanto estes espalham o terror no campo e nas florestas por meio de assassinatos em série e grilagem em massa de terras públicas, o governo Temer os premia e os ajuda estruturalmente na tentativa de eliminarem os povos indígenas, quilombolas, pescadores e pescadoras artesanais, demais comunidades tradicionais, pequenos agricultores, posseiros, campesinos e trabalhadores rurais sem terra no Brasil.

    A exportação de commodities agrícolas é o combustível que abastece e legitima o funcionamento dessa máquina da morte Brasil afora. A sociedade brasileira, a comunidade internacional e os governos cujos países importam essas mercadorias precisam estar cientes disso e devem tomar medidas efetivas para colocar um freio nessa situação.

    Diante dos golpes e agressões em curso contra os povos originários, cumpre-nos fazer ressoar as palavras do Papa Francisco que interpela o mundo ao afirmar que  “Com efeito, para eles, a terra não é um bem económico, mas dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela descansam, um espaço sagrado com o qual precisam de interagir para manter a sua identidade e os seus valores. Eles, quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuida”. (Laudato Si 146).

    Repudiamos com veemência a publicação da Portaria 683/17 e cobramos sua imediata revogação. Por fim, manifestamos irrestrita solidariedade aos Guarani e com eles afirmamos: o Jaraguá é Guarani.

    Brasília, DF, 22 de agosto de 2017
    Conselho Indigenista Missionário-Cimi

    Atualizada às 11h50 de 22 de agosto corrigindo informações equivocadas do Ministério da Justiça, na Portaria 683/17, quanto ao número de hectares das demarcações.

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  • 21/08/2017

    ArpinSul e Comissão Guarani Yvyrupa repudiam anulação de demarcação da TI Jaraguá pelo MJ



    Por Assessoria de Comunicação – Cimi

    O Ministério da Justiça publicou nesta segunda-feira, 21, uma medida no Diário Oficial da União onde anula a demarcação da Terra Indígena Jaraguá, do povo Guarani Mbya e localizada na região metropolitana de São Paulo. A portaria declaratória havia sido publicada em 29 de maio de 2015 com 532 hectares, reparando os erros da primeira homologação, oficializada em 14 de abril de 1987, que então garantiu menos de dois hectares do território tradicional aos indígenas – desde então vivem "numa situação de confinamento".

    De acordo com a portaria de anulação assinada pelo ministro Torquato Jardim, o reconhecimento do erro administrativo da homologação ocorreu cinco após o ato jurídico inicial: "(…) ou seja, após o prazo legal para a anulação dos atos jurídicos pela própria administração conforme a Lei 9784, de 29 de janeiro de 1999, e a súmula 473 do Supremo Tribunal Federal". Cita ainda decisões do STF e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) contra a demarcação. Os Guarani Mbya se revoltaram com a decisão tratando-a como "um tiro, disparado pelos mesmos bandeirantes" que os perseguiam – e hoje são considerados heróis paulistas – assista aqui.

    "Enquanto a Constituição Federal diz expressamente que nossos direitos sobre nossas terras tradicionais são originários e imprescritíveis, o Ministro da Justiça diz que nossos direitos prescreveram", afirma em nota a Comissão Guarani Yvyrupa. Para a organização, Jardim "admite que no passado, por culpa do próprio governo federal, nossos direitos foram ignorados e fomos confinados em uma área de 1,7 hectare, onde vivem hoje espremidos 700 dos nossos parentes. Porém, para ele, se novamente o governo federal falhou ao ignorar o seu próprio erro por mais de 5 anos, quem deve ser punido somos nós, o povo guarani, novamente!".

    Um outro ponto ressaltado pelo ministro é o fato do Parque Estadual do Jaraguá se sobrepor à terra indígena, o que para efeitos de demarcação Jardim afirma que o Governo do Estado de São Paulo deveria ter participado "na definição conjunta das formas de uso da área". Afirma ainda que a demarcação não obedece a "legalidade estrita", a "razoabilidade" e a "proporcionalidade". Para a Yvyrupa, o parágrafo 4º do Artigo 231 da Constituição é cristalino: “As terras indígenas são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”.

    Desse modo, no entendimento dos indígenas, "a mensagem do Governo Temer também não deixa dúvidas: para eles, a Constituição Federal é letra morta, as leis que os brancos mesmos criam, só valem quando lhes convém". Os Guarani Mbya afirmam que não vão desistir da demarcação da Terra Indígena Jaraguá, "e de nenhuma das nossas terras".  

    Para a Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (ArpinSul), que representa povos indígenas localizados em São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, se trata de mais uma ação do governo federal contra "os povos indígenas do país" e inserida no contexto do parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) sobre o marco temporal, utilizado por Michel Temer para instaurar a tese inconstitucional em todo o espectro do Poder Executivo.

    Na última semana, no entanto, o governo sofreu uma derrota: os ministros do STF demonstraram durante sessão do dia 16 o entendimento de que o marco temporal está restrito às condicionantes da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, não se estendendo às demais terras indígenas do país. Na tarde seguinte, uma manifestação dos povos indígena e quilombolas percorreu o Ministério da Justiça e o Palácio do Planalto exigindo que Temer revogue a medida que impõe o marco temporal nos procedimentos administrativos.

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  • 21/08/2017

    Comissão Guarani Yvyrupa lança o Relatório de Violações de Direitos Humanos no Oeste do Paraná


    Tekoha – lugar onde se é – Guarani Mbya na região de Guaíra e Terra Roxa (PR). Crédito Renato Santana/Cimi

    Com apoio do Centro de Trabalho Indigenista, a Comissão Guarani Yvyrupa lançou na última semana, no Dia Internacional dos Povos Indígenas (9/8), Guaíra & Terra Roxa – Relatório sobre Violações de Direitos Humanos contra os Avá Guarani do Oeste do Paraná (Acesse o PDF AQUI). Apresentado na aldeia Marangatu, a publicação revela diversos casos que vão desde a falta de acesso a direitos básicos como água encanada, energia elétrica, saúde e educação, até a discriminação e a violência física contra os Avá Guarani.

    Reunindo mais de 500 pessoas, entre membros das comunidades Guarani, autoridades públicas e convidados de universidades da região Oeste do Paraná, a programação do lançamento começou cedo com apresentações de danças e rezas tradicionais.

    Ainda na aldeia Marangatu, na sala de aula da Escola Estadual Mbja Porã, o relatório foi apresentado por Gilberto Benites Tupã Karaí, cacique do Tekoha Pohã Renda em Terra Roxa, e Ilson Soares Karai Rokadju, cacique do Tekoha Y’Hovy em Guaíra.

    “As pessoas que ainda não conhecem a realidade dos Avá Guarani no Oeste do Paraná poderão conhecer. Nós sofremos muita discriminação justamente pela falta de conhecimento do que estamos vivendo”, comenta Gilberto Tupã Karaí.

    Os dois caciques participaram de toda a elaboração do relatório acompanhando as visitas para a realização de entrevistas.

    “O processo de elaboração do relatório se deu através das visitas nas aldeias. A Comissão Guarani Yvyrupa e as lideranças locais acompanharam todo o processo de pesquisa e levantamento das histórias contadas pelas próprias vítimas da violência que a gente passa todos os dias. Não é uma história que eu conto do fulano, mas sim a própria pessoa que passou”, conta Ilson Karai Rokadju.

    Em seguida, os presentes saíram em caminhada para o centro de Guaíra. Com o relatório em mãos, a intenção era de formalizar a entrega nos órgãos públicos da cidade. A primeira parada foi na prefeitura, onde as comunidades Avá Guarani tiveram de esperar a chegada de Heraldo Trento (DEM) enquanto seguiam dançando e rezando nas ruas do município. O relatório foi também entregue no Ministério Público Federal.

    “Nossas famílias precisam da demarcação de nossas terras, por isso viemos com nossas crianças e os mais velhos pessoalmente entregar o relatório na prefeitura e no Ministério Público Federal”, diz Anatálio Ortiz, cacique do Tekoha Jevy, no município de Guaíra.

    “Para que nossa situação venha de fato a mudar o que precisamos é da demarcação das nossas terras, do reconhecimento de nosso direito às terras tradicionais. Tudo o que está no relatório, todas as violências que sofremos é por falta do reconhecimento do nosso direito à terra que tem aumentado a violência e o preconceito nos municípios de Guaíra e Terra Roxa contra os Guarani”, lamenta Ilson Karai Rokadju.

    Guaíra & Terra Roxa – Relatório sobre Violações de Direitos Humanos contra os Avá Guarani do Oeste do Paraná tem como principal objetivo sistematizar e denunciar as graves violações de direitos humanos sofridas pelos mais de 1.600 Avá Guarani dos municípios de Guaíra e Terra Roxa que reivindicam o reconhecimento de seu território tradicional.

    A publicação revela a negação de direitos básicos fundamentais, tais como o acesso à água, ao saneamento básico e aos serviços de saúde e educação. Além disso, compila os diversos casos de violências físicas, agressões, tentativas de assassinato e os inúmeros casos de preconceito contra indígenas no Oeste do Paraná.

    O relatório mostra como o processo histórico de expulsão dos Guarani de suas terras estimulado com a ocupação do Oeste, promovida pelo estado brasileiro, é reiterado ainda hoje por meio do não reconhecimento das Terras Indígenas Guarani na região.

    As informações foram coletadas principalmente em entrevistas realizadas com os próprios Guarani das 14 aldeias dos municípios de Guaíra e Terra Roxa. Também foram colhidos depoimentos de pessoas que trabalham diretamente com as comunidades e consultados os processos judiciais que envolvem as aldeias e seus membros.

    Realizado pela Comissão Guarani Yvyrupa, organização que representa o povo Guarani no Sul e Sudeste do Brasil, a publicação contou com o apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos (FBDH), do Fundo Socioambiental CASA, da Embaixada Real da Noruega e do Centro de Trabalho Indigenista.


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  • 18/08/2017

    Cerca de 7 mil indígenas ocuparam ruas e rodovias de 13 estados contra o marco temporal

    Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi

    "Nós somos a raiz de vocês. Se morrermos, vocês também morrem porque nós somos a raiz", dizia um cartaz empunhado por crianças Kaingang da Terra Indígena Ventarra, no Rio Grande do Sul. Os indígenas protestavam em trecho da RS-135, no início desta semana, contra a tese do marco temporal – principal argumento da Procuradoria do Estado do RS na Ação Civil Ordinária (ACO) 469 visando impugnar no Supremo Tribunal Federal (STF) a demarcação da TI Ventarra.

     

    Junto aos Kaingang, a estimativa do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) é de que cerca de 7 mil indígenas de ao menos 80 povos dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Brasília, Rondônia, Roraima, Maranhão, Ceará e Bahia foram às ruas e rodovias dizer não ao marco temporal. Confira aqui o mapa interativo das mobilizações Brasil afora.

     

    Leia mais: Por oito a zero, STF reafirma direitos originários dos povos indígenas

     

    Na última quarta-feira, 16, a ACO 469 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) 3239, apresentada pelo Democratas (DEM) contra o decreto que regulamenta a demarcação de terras quilombolas, estavam na pauta do STF, mas acabaram retiradas sem nova data para a apreciação dos ministros. As matérias trazem consigo a tese do marco temporal como principal argumento e desde o Dia Internacional dos Povos Indígenas, 9 de agosto, até esta quinta-feira, 17, mobilizações tomaram conta do Brasil contra o marco temporal.



    Mobilização Kaingang da TI Ventarra (RS). Crédito: Mareci Kaingang

     

    As ações fizeram parte da campanha Nossa História Não Começa em 1988! #MarcoTemporalNão!, que deverá continuar porque o marco temporal segue na pauta, mesmo depois do STF ter reafirmado nesta quarta, 16, o direito dos povos indígenas como originários – uma vitória importante e não definitiva – nas ACOs 362 e 366, movidas pelo Estado do Mato Grosso, exigindo indenizações pela demarcação de terras indígenas no estado. "Campanha importante pros povos indígenas porque a tese do marco temporal é autorizar o genocídio atual e esquecer o que ocorreu", disse Elizeu Guarani e Kaiowá em uma intervenção dos povos indígenas no Congresso Nacional.

     

    Saiba mais sobre a campanha Nossa história não começa em 1988! #MarcoTemporalNão!

     

    No Mato Grosso do Sul foram dezenas de protestos envolvendo cerca de mil indígenas. Segundo dados da Polícia Rodoviária Federal, segundo PRF houve ações de bloqueios de rodovias em Rio Brilhante (KM-304 da BR-163) com cerca de 50 Guarani Kaiowá, onde a pista era liberada periodicamente para os condutores. Em outro trecho da mesma estrada, o Km 307, os indígenas montaram bloqueio em que o fluxo ficou totalmente interditado. Em Mundo Novo, no Km 26 da BR-163, já na divisa com o Paraná cerca de 80 indígenas liberavam a pista a cada 30 minutos. Já 150 Terena, em Miranda, altura do Km 541 da BR-262, abriram a pista por cinco minutos a cada uma hora. Nioaque (Km 526 da BR-060) mobilizou 100 indígenas, Caarapó (Km 215 da BR-163) cerca de 50 índios e Itaquiraí (Km 60 da BR-163) perto de 30.

     

    Nas estradas estaduais do MS também ocorreram protestos: MS-386, km 70, entre Amambai e Ponta Porã; MS-156, Km 231, entre Amambai e Tacuru; MS-295, entre Tacuru e Iguatemi; MS-384, entre Bela Vista e Antônio João; MS-156, Km 02, entre Dourados e Itaporã e na MS-379, entre o distrito de Panambi e Douradina – já na BR-163. Indígenas Guarani e Kaiowá dos tekohas – lugar onde se é – Sucury’i e Yvy Katu realizaram protestos em aldeias e escolas, além do trancamento de rodovias.  



    Mulheres Guarani e Kaiowá trancam rodovia estadual. Crédito: Diego Rocha Riquelme

     

    Cerca de 300 indígenas Terena da Terra Indígena Taunay Ipegue fecharam a BR-262, que liga os municípios de Aquidauana com Miranda. Todas as mobilizações do estado contaram com a participação de rezadores, mulheres e estudantes, sendo que em alguns casos as indígenas e os jovens realizaram as ações. “Esse marco temporal é um assassino para nós, povos indígenas. Por isso que estamos aqui, para pedir para os ministros para não aprovar isso”, afirma Leila Rocha Guarani Ñandeva.

    Vigília da Justiça

    Em Brasília, indígenas de diversos povos realizaram cantos e rezas na tarde de segunda-feira, dia 14. Teve início ali a Vigília da Justiça às portas do STF, na Praça dos Três Poderes. Os indígenas dos povos Kaingang, Xokleng, Guarani Mbya, Guarani Nhandeva, Guarani Kaiowá, Terena, entre outros, participarão amanhã da Vigília da Justiça, em conjunto com os quilombolas. A vigília se estendeu até quarta, 16, quando esteve na pauta de julgamento do STF ações referentes aos direitos dos povos indígenas e quilombolas. No Dia Internacional do Índio uma caminhada se encerrou no STF onde rezas e danças rituais foram feitas para "iluminar as ideias dos ministros".  

     

    Ainda no Dia internacional dos Povos Indígenas, audiência pública da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) na Câmara dos Deputados discutiu as recomendações recebidas pelo Brasil na Revisão Periódica Universal (RPU) da Organização das Nações Unidas (ONU), quando 29 países manifestaram preocupação com violações de direitos indígenas no país. Indígenas acompanharam a atividade.



    Mobilização Guarani e Kaiowá. Crédito: Diego Rocha Riquelme


    Já os povos que participaram da VI Marcha dos Povos Indígenas de Roraima, em Boa Vista, divulgaram uma carta com reivindicações: "Somos os povos originários desse país, cidadãos brasileiros e guardiões desse território. Queremos respeito e dignidade!", afirma o documento, que rechaça iniciativas anti-indígenas para a retirada de seus direitos constitucionais, como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, a tese do marco temporal e o recente parecer do governo Temer sobre demarcações de terras.

     

    Enquanto isso, país afora, os protestos seguiam. No Maranhão, da Terra indígena Rio Pindaré partiram cerca de 150 indígenas Guajajara/Tenetehar para interditar trecho da BR 316, na altura do município de Bom Jardim.

    Luís Salvador Kaingang, cacique da Terra Indígena Rio dos Índios, participou do bloqueio da BR-163 realizado pelos Kaingang hoje, em Iraí (RS), na divisa entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina. "Nossas terras indígenas foram roubadas. Antes de 1988 eles liberaram o espaço, tiraram a gente. A vida da população indígena está em risco porque esse marco temporal só beneficia os ruralistas, o agronegócio", disse o cacique Kaingang. O trancamento da rodovia teve início logo pela manhã e durou até o início da noite.



    VI Marcha dos Povos Indígenas de Roraima. Crédito: Cimi Regional Norte I

    Indígenas do povo Guarani e de vários outros povos que vivem em contexto urbano na capital paulista (Wassu Cocal, Pankararu, Pataxó, entre outros) participaram de um grande ato contra o marco temporal em São Paulo. Cerca de 500 pessoas, entre indígenas e apoiadores, ocuparam o vão do Masp e a Avenida Paulista em caminhada até o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3). Um grande faixa com a frase "Nossa história não começa em 1988" foi carregada pelos manifestantes, ecoando o grito originário pela maior metrópole do Brasil.

     

    Na sexta-feira, 11, uma aula magna, além de um ato em defesa dos povos indígenas e quilombolas, foi realizada na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), como parte da programação em comemoração ao dia do advogado e da semana de recepção aos calouros. Indígenas e quilombolas participaram da atividade, que discutiu a ameaça do marco temporal e os julgamentos do STF marcados para o 16 de agosto. Organizações quilombolas e entidades de apoio movimentaram uma petição pública que reuniu mais de 60 mil assinaturas contra a ADIN 3239, nociva ao direito territorial quilombola.



    II Marcha dos Povos Indígenas do Ceará. Crédito: Renato Santana/Cimi


    O Ceará é um estado com 32 mil indígenas, oriundos de 14 povos e distribuídos em 23 terras indígenas, sendo que apenas uma teve o procedimento demarcatório concluído. A II Marcha da Terra dos Povos Indígenas do Ceará, tal contexto adensou uma semana de jornadas Brasil afora na campanha Nossa História Não Começa em 1988! #MarcoTemporalNão.

    Eliane Tabajara, coordenadora regional da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), mandou um recado para Brasília em discurso inflamado: "Se o governo federal pretende retirar os direitos dos povos indígenas, saiba que já está em guerra. Não vamos aceitar. Hoje estamos na rua por nossos direitos e pela democracia". Cerca de 2.500 indígenas estiveram nas ruas de Fortaleza, conforme as lideranças do movimento.


    Durante o julgamento da liderança Pataxó Joel Brás pela Justiça Federal de Eunápolis (BA), na última quarta-feira, 16, os povos Pataxó e Tupinambá realizaram um ato em solidariedade ao indígena e aproveitaram para dizer não ao marco temporal. Joel foi absolvido pelo Júri Popular por 4 x 3 do crime de homicídio de um pistoleiro que havia armado emboscada contra o Pataxó, em 8 de dezembro de 2002.


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  • 18/08/2017

    Após vitória, indígenas exigem que Temer respeite decisões do STF e revogue parecer sobre demarcações


    Indígenas seguiram fazendo cantos do Palácio do Planalto até o Ministério da Justiça. Foto: Tiago Miotto/Cimi

    Por Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação

    Lideranças indígenas protocolaram documentos hoje (17) exigindo do governo federal a revogação do Parecer nº 01/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), publicado em julho. O parecer, elaborado pela AGU assinado por Michel Temer, pretende obrigar todos os órgãos do Executivo a aplicar o marco temporal e as condicionantes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no caso Raposa Serra do Sol a todas as demarcações de terras indígenas.

    Motivados pela decisão do STF no julgamento das Ações Civis Ordinárias (ACOs) 362 e 366, ocorrido ontem, indígenas dos povos Tupinambá, Pataxó Hã-Hã-Hãe, Guarani, Kaingang e Xokleng, realizaram cantos em frente ao Palácio do Planalto, ao Ministério da Justiça e à AGU, em Brasília, enquanto lideranças protocolavam documentos exigindo que o Parecer nº 01/2017 – GAB/CGU/AGU seja revogado.

    No julgamento de quarta, o STF negou, por oito votos a zero, o pedido de indenização do estado de Mato Grosso pela criação do Parque Indígena do Xingu, em 1961, e a demarcação de áreas na década de 1980 que, segundo aquele estado, seriam de sua propriedade.

    Os ministros e ministras reafirmaram, com a decisão, os direitos originários dos povos indígenas e o indigenato, em referência à longa história de reconhecimento formal do direito dos povos indígenas às suas terras no Brasil, em diferentes constituições e em legislações que remontam ao período colonial.

    Em seu voto, o ministro Luís Roberto Barroso, que foi relator dos embargos de declaração do caso Raposa Serra do Sol, destacou que o conteúdo da Petição 3388/RR se aplicava única e exclusivamente ao julgamento do caso Raposa Serra do Sol – o que consta do próprio acórdão daquela decisão e que é frontalmente desrespeitado pelo parecer da AGU.


    Indígenas aguardaram o protocolo do documento com cantos do lado de fora do Palácio do Planalto. Foto: Tiago Miotto/Cimi

    Um dos pontos que aparecem no acórdão da Petição 3388/RR, e que foi incorporados ao Parecer 001/2017 da AGU, é a tese do marco temporal, segundo a qual os indígenas só teriam direito às terras que estivessem sob sua posse na data da promulgação da Constituição Federal.

    Embora o marco temporal não tenha sido julgado diretamente, ministros, como o próprio Barroso, afirmaram princípios contrários à tese. Para Barroso, “somente será descaracterizada a ocupação tradicional indígena caso demonstrado que os índios deixaram voluntariamente os territórios que possuam ou desde que se verifique que os laços culturais que os uniam a tal área se desfizeram”.

    O ministro Ricardo Lewandowski foi enfático ao afirmar a relevância científica dos laudos antropológicos sua validade como prova para se analisar processos envolvendo a demarcação de terras indígenas. Rosa Weber também ressaltou que a Constituição de 1988 reconheceu aos indígenas o direito originário às terras que ocupam de acordo com sua própria forma de ser e suas especificidades, o que também conflita com a tese do marco temporal.

    “Foi uma vitória que a gente teve ontem na votação aqui no STF, mas ainda é preocupante esse parecer do governo Temer”, afirma Kerexu Yxapyry, liderança Guarani Mbya da Terra Indígena Morro dos Cavalos que participou da entrega de documentos ao Executivo hoje.

    “Para nós é assustador, quando a gente está na aldeia e vê uma coisa dessas sendo lançada pelo presidente do Brasil, a gente fica tão preocupado e não sabe onde vai. Mas quando a gente chega em Brasília e vê o STF falando que isso não se aplica, a gente começa a perceber que existe uma falta de respeito entre os próprios poderes que estão aqui”, completa.


    Indígenas foram à AGU pedir a revogação do Parecer 001/2017. Foto: Tiago Miotto/Cimi

    O parecer que os indígenas exigem que seja revogado fez parte da grande negociata de Temer para se manter no poder, após ser denunciado por corrupção passiva pela Procuradoria-Geral da República (PGR). A peça foi publicada pelo governo federal após negociação de Temer com a bancada ruralista, como integrantes da própria bancada divulgaram em suas redes sociais. Os votos ruralistas foram essenciais para garantir que a denúncia da PGR não fosse investigada e Temer se mantivesse no cargo.

    Nas últimas semanas, os povos indígenas mobilizaram-se intensamente contra o marco temporal, preocupados com a possibilidade do STF adotar esta tese política e jurídica nos julgamentos da última quarta. Contudo, a ação que teria mais chances de trazer essa discussão de forma direta – a ACO 469, sobre a demarcação da Terra Indígena Ventarra, no Rio Grande do Sul – acabou sendo retirada de pauta.

    “A decisão nas ações do Mato Grosso foi uma vitória nossa, dos povos indígenas. Agora, estamos aqui dizendo mais uma vez não ao decreto do presidente Temer que antecipa o marco temporal, e vamos lutar até esse parecer cair e esse fantasma sumir das nossas vidas”, afirma Ramon Tupinambá.

    Veja aqui o documento entregue pelos indígenas no Palácio do Planalto, no MJ e na AGU.

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  • 17/08/2017

    Joel Brás Pataxó é absolvido por Júri Popular; depois de 11 anos em prisão domiciliar, está livre

    Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi

    Joel Brás Pataxó, após 11 anos em prisão domiciliar, está livre. Por 4 x 3, o Júri Popular da Vara Federal de Eunápolis (BA), na noite desta quarta-feira, 16, o absolveu da acusação do homicídio de um pistoleiro ocorrido em 8 de dezembro de 2002. Este foi o sexto e último processo respondido por Joel; em todos os demais ele foi declarado inocente. O Júri começou às 8h30 e só terminou por volta das 19 horas.  

    Leia mais: Marcha Indígena de 2000, o ano que não acabou: Joel Brás Pataxó será levado a Júri Popular nesta quarta, 16

    "Foram anos difíceis, mas sempre acreditamos na nossa luta. Agradeço a todos os parentes, advogados. Sabemos que é sofrido, sei bem o sofrimento do meu povo. Me faz lembrar dos 500 anos, em 2000, quando fomos maltratados sobre a nossa terra. Muitos povos e lideranças sofreram e sofrem isso que eu sofri. Perdemos a liberdade, perdemos a vida, mas a nossa luta é o que temos de maior", disse Joel após o Júri.   

    José Moraes, segurança privado da Fazenda Oriente, área incidente na Terra Indígena Barra Velha, armou uma emboscada para Joel num acampamento Pataxó distante cerca de 7 km de "seu local de trabalho". Moraes, na verdade, era um conhecido pistoleiro. Ao perceber a arapuca, o indígena agiu em legítima defesa e atirou em Moraes enquanto este sacava a arma de fogo para assassiná-lo. Joel não fugiu e se apresentou às autoridades.

    A defesa do indígena apresentou ao Júri três testemunhas: duas pessoas que estavam na BR-498, estrada que liga a BR-101 ao Monte Pascoal, onde os fatos ocorreram, e um Pataxó, que na época era adolescente e estava no acampamento cuidando da crianças quando José Moraes chegou atirando à procura de Joel – momentos depois ele encontraria o indígena e, antes de cumprir com o serviço, a morte.

    Apenas uma testemunha foi levada pela acusação, realizada pela Procuradoria Federal. No entanto, o depoimento revelou não um homicídio, mas o quanto Joel era perseguido. "A única testemunha de acusação confirmou a presença de um homem com roupa camuflada, mas não a de Joel. Afirmou ainda que à época disse que era Joel porque o delegado a coagiu", explicou o advogado do indígena, Luciano Porto.

    Um ponto atacado pela acusação era que José Moraes era um funcionário da Fazenda Oriente. Depoimentos de funcionários e do gerente da antiga fazenda lançaram por terra o argumento. "Moraes era um sujeito experimentado em defender propriedades. Vivia armado, era conhecido como matador. Além disso, se dirigiu ao acampamento Pataxó para matar Joel percorrendo uma distância de 7 km", afirma Porto.

    O processo saiu da Justiça Estadual para a Federal 2007, por determinação do Superior Tribunal de Justiça (STJ). "Já havia sido reconhecido pela Justiça não se tratar de um processo de homicídio comum. Em novembro de 2009 então começa a correr na Subseção Judiciária da Vara Federal de Eunápolis", explica o advogado. Enquanto esteve na Justiça Estadual, o Pataxó cumpriu períodos encarcerado.

    A defesa de Joel, também realizada pela advogada Michael Mary Nolan, da assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), estava otimista porque além de todas as provas, que demonstravam se tratar de um ato de legítima defesa, Joel tinha cumprido até esta quarta-feira 11 anos de prisão domiciliar, determinada em 2006 pelo STJ, num posto da Funai localizado na aldeia Barra Velha.

    "Acompanho esse caso desde o início, desde 2002. Em 2006 levamos Joel pra casa. Há mais de 30 anos defendo indígenas nessas situações. Cacique Marcos Xukuru, Zé de Santa Xukuru, cacique Babau Tupinambá, que estava aqui hoje apoiando Joel. Espero, acima de tudo, que os povos indígenas consigam ter cada vez mais condições de se defender desses abusos", declara a advogada Michael Mary Nolan.

    Emocionados, os Pataxó cantaram e dançaram Toré para receber Joel após o resultado final. Conforme o indígena declarou, "o Brasil não teria dinheiro para pagar a dívida que tem com a gente. E o que exigimos são as nossas terras. Esta é uma memória a todos e todas no presente, aos indígenas do futuro. Nunca deixem de lutar pelos direitos, o tribunal de hoje foi um aprendizado pros nossos povos", encerrou Joel.


    Para Ararawã Pataxó, que discursou após o julgamento, "a absolvição de Joel acontece no mesmo dia em que conseguimos impor uma derrota ao marco temporal (leia mais aqui). Isso mostra como as lutas são as mesmas, aqui ou em qualquer canto do país. Então Joel livre é uma vitória para o movimento indígena, para a busca pelas terras de nossa gente".  

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  • 16/08/2017

    Por oito a zero, STF reafirma direitos originários dos povos indígenas

    Decisão sobre as ACOs 362 e 366 reafirmou os direitos constitucionais dos povos originários e foi comemorada pelo movimento indígena

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  • 15/08/2017

    Marcha Indígena de 2000, o ano que não acabou: Joel Brás Pataxó será levado a Júri Popular nesta quarta, 16

    Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi

     

    “… conscientes de que o Parque Nacional está dentro dos limites de nossa terra, conforme a história de nossos anciãos, decidimos imediatamente RETOMAR o nosso território, neste dia 19 de agosto de 1999, protegidos pela memória dos antepassados, protegidos pelo direito constitucional […] pretendemos transformar o que as autoridades chamam de Parque Nacional do Monte Pascoal em Parque Indígena, terra dos Pataxó, para preservá-lo e recuperá-lo da situação que hoje o governo deixou a nossa terra […] Vamos celebrar os 500 anos em nossa terra, receberemos os nossos parentes de todo o Brasil aqui, no Monte Pascoal, único local possível para construirmos o futuro com dignidade. […] Mais uma vez pedimos o apoio de toda a sociedade brasileira” (Carta do Povo Pataxó, 1999).

     

    A Marcha Indígena 2000, organizada pelo Movimento de Resistência Indígena, Negra e Popular – Brasil Outros 500, não terminou. Pouco mais de 17 anos depois, nesta quarta-feira, dia 16, não se trata de mera coincidência o Supremo Tribunal Federal (STF) julgar o Marco Temporal, interpretação estabelecida para jogar areia nas engrenagens constitucionais das demarcações das terras indígenas, e Joel Brás Pataxó (na foto ao lado) ser submetido pela Justiça federal de Eunápolis (BA) a Júri Popular acusado do homicídio de um pistoleiro durante regresso do povo em retomada a terras tradicionais no extremo sul baiano.   

     

    O movimento que levou caravanas de povos indígenas de todo o país para a Conferência dos Povos Indígenas, entre 18 e 22 abril de 2000, em Santa Cruz Cabrália, um contraponto às comemorações do "descobrimento do Brasil", reafirmou a necessidade destes povos de recuperarem seus territórios tradicionais. Na Bahia, os Pataxó do extremo-sul baiano, Pataxó Hã-Hã-Hãe e Tupinambá iniciaram imensas retomadas já um ano antes, quando se avizinhava os 500 anos – nas terras ocupadas hoje pelos Pataxó, as naus portuguesas se acostaram.

     

    Para além de uma retomada simbólica do Brasil, os povos indígenas, com destaque aos Pataxó, passaram a enfrentar um amálgama de interesses políticos e econômicos que em nada se tratava de mero símbolo da violência colonial; era a sua concretude na virada do século. Joel Brás, nesse momento icônico da história, se levantou como uma das principais lideranças Pataxó e com seu povo retomou áreas tradicionais localizadas na região do Monte Pascoal, município de Itamaraju. Entre 2000 e 2002, o Pataxó passou a ser perseguido por pistoleiros (sofreu inúmeros atentados), polícia, difamado pela mídia e acusações judiciais de roubo, sequestro, cárcere privado, formação de quadrilha e dois homicídios.

     

    Em 2014, Joel tinha sido inocentado de quase todas as acusações, exceto uma. "A primeira acusação de homicídio demorou mais. Houve uma sentença de impronúncia. Por falta de provas, o juiz entendeu que não tinha elementos para acusar Joel da morte de um vaqueiro de uma das fazendas retomadas pelos indígenas. Eram processos sem provas. Joel era um alvo permanente", explica o advogado do indígena, Luciano Porto. Restou, por fim, este último processo, a ser julgado nesta quarta, dia 16, e que envolve uma tentativa de assassinato de Joel, em 8 de dezembro de 2002.

     

    Um pistoleiro na estrada      

     

    A Fazenda Oriente incidia sobre a hoje Terra Indígena Barra Velha, identificada pelo Ministério da Justiça em fevereiro de 2008 com 54.748 hectares, naquela altura área contígua ao Parque Nacional Monte Pascoal, este também sobreposto ao território Pataxó. Em novembro de 2002, a fazenda estava ocupada pelos indígenas em retomada cercada de perigos. Tiroteios, emboscadas e ardis programados contra os indígenas contando com participação de policiais eram comuns.

     

    Assaí Pataxó lembra que em certo dia no final do mês de setembro voltava para a retomada com a família num carro. Em outro veículos outros dois Pataxó, irmãos. "Quando passávamos em frente à Fazenda Santo Agostinho, na estrada de acesso à Fazenda Oriente, cerca de 15 homens armados pararam nosso carro e começaram a atirar. Consegui passar. Então cercaram o carro de Cosme, que por azar começou a falhar. O irmão dele, Adeilton, fugiu no meio do mato e Cosme foi preso", relatou. 


    Em 8 de novembro, um mês antes de Joel Brás Pataxó viver o momento que o leva ao Júri Popular, os indígenas Lídio Matari, Sebastião e Benedito foram presos por porte ilegal de armas em uma operação que teve como objetivo cumprir o mandado de reintegração de posse da Fazenda Oriente. Um filho de Joel, em outra ocasião, chegou a ser alvejado na perna por um tiro de arma de fogo. "Saímos da retomada e nos dirigimos para um local mais ou menos próximo, mas distante uns 7 ou 8 quilômetros da sede da então Fazenda Oriente", conta Joel Brás. O indígena explica que montaram acampamento às margens da BR-498, que liga o Parque Monte Pascoal à BR-101.  

     

    Era um domingo de manhã ensolarada. As crianças brincavam no acampamento sob o olhar de um adolescente, hoje adulto e testemunha ocular do que estava para acontecer. Todos os adultos estavam fora, em atividades para garantir a subsistência da aldeia. Incluindo Joel, que tinha ido para a casa de farinha. O indígena regressava para a aldeia no momento em que José Moraes, apontado como funcionário de segurança da Fazenda Oriente, no entanto conhecido pistoleiro da região, invadiu o acampamento gritando, atirando para o alto e perguntando: "Cadê o Joel! Eu vim pra ver o Joel!". Moraes chegou a bater no adolescente, mas este apenas disse que Joel não estava, sem informar para onde tinha ido.   

     

    Moraes abordou o acampamento vestido com roupas camufladas típicas do Exército, um rifle trançado nas costas, uma pistola na cintura e uma faca "estilo Rambo" pendurada. Depois de aterrorizar o adolescente e as crianças, e percebendo que não conseguiria a informação, decidiu ir embora. Pouco tempo depois, Joel Brás voltou da casa de farinha. Ao chegar no acampamento se deparou com o desespero deixado por Moraes. O adolescente não sabia quem era o seu algoz, e indicou que o sujeito tinha saído na direção da rodovia. Joel partiu atrás não sem a proteção de uma arma de fogo, que ele mantinha quando precisava se deslocar dada a situação de constantes emboscadas a qual estava submetido.  

     

    "Quando eu cheguei na estrada lá estava ele. Quando me viu, logo puxou a arma e apontou pra mim. Foi tudo muito rápido", lembra Joel. Antes de Moraes atirar, o Pataxó desfere um único tiro, certeiro. O pistoleiro cai morto na beira da estrada. Joel Brás não foge. Aciona a polícia e assume ter agido em legítima defesa. Uma pessoa, que vinha caminhando pela estrada, testemunhou todo o acontecido; outra estava em um ponto de ônibus e também viu todo o desenrolar dos fatos. Desde então Joel passou a responder pelo caso como homicídio, mesmo que todas a provas e testemunhas tenham demonstrado legítima defesa. Mesmo se apresentando às autoridades públicas, Joel chegou a ser preso.

     

    A defesa de Joel Brás   

     

    O processo contra o Pataxó é longo. Possui 6 volumes e quase 3 mil páginas. Apenas em 2007 saiu da Justiça Estadual para a Federal, por determinação do Superior Tribunal de Justiça (STJ). "Foi reconhecido não se tratar de um processo de homicídio comum, ou seja, a Justiça já indicou isso por ser um conflito decorrente de disputa por terra indígena. Em novembro de 2009 começa a correr na Subseção Judiciária da Vara Federal de Eunápolis", explica o advogado Luciano Porto. Enquanto esteve na Justiça Estadual, o Pataxó cumpriu períodos encarcerado.

     

    Também por decisão do STJ, em 2006, Joel passou a cumprir prisão domiciliar na sede da Funai mais perto de sua moradia, um posto avançado na aldeia Barra Velha. "O Joel cumpre pena desde então. Lá se vão 11 anos de pena cumprida. Ou seja, temos todas as provas documentais, materiais e de testemunhas de que foi legítima defesa. José Moraes era pistoleiro, e também temos como comprovar isso. Mesmo com tudo isso Joel sempre esteve disponível à Justiça e cumpre a pena. Defendemos que não era necessário levar ao Júri, mas assim decidiu o juiz. Estamos prontos para enfrentar essa última batalha", destaca o advogado.  

     

    Ainda em 2002 o proprietário da Fazenda Oriente, Mauro Rossoni, sustentou à Justiça que José Moraes não era pistoleiro, mas funcionário de sua fazenda. Luciano Porto explica que durante a instrução do processo o gerente da fazenda e funcionários comprovaram que o sujeito era segurança contratado pelo proprietário. "Ele era proibido de sair da fazenda, vivia armado, era um homem experimentado na arte de defender as propriedades. No dia dos fatos, os funcionários dizem que Moares saiu da sede da fazenda alegando que faria o conserto de uma bomba hidráulica a 500 metros da sede da fazenda, que fica uns 7 km de distância de onde Joel estava", pontua o advogado.

     

    Para Luciano Porto, "o contexto todo é a luta pela terra. Joel era uma liderança visada. Tanto que de 2002 para cá sua atuação ficou muito prejudicada. Não só quanto às demandas do povo pataxó, mas Joel é um pai de família. Possui 16 filhos, uma porção de netos. O sofrimento dele nesse período é o da família toda também, além do próprio povo".  Conforme o missionário do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) da equipe Itabuna, Haroldo Heleno, "Joel sob custódia tem seus passos vigiados e limitados, se trata de uma situação insustentável. Isso é muito ruim, ainda mais para um processo com nenhum prova de que ele tenha praticado um crime".

     

    Frente de Lutas e Defesa do Povo Pataxó

     

    O missionário do Cimi lembra do papel desempenhado por Joel na criação da Frente de Lutas e Defesa do Povo Pataxó. "No final da década de 1990 havia a celebração dos 500 anos do descobrimento, como se fosse uma grande festa. Joel se contrapôs a isso. Passou a convencer as demais lideranças das famílias Pataxó para fazer uma luta pelo território. Em abril de 2000 a celebração ufanista e violenta dos governos da Bahia e Federal – violenta porque entrou para a história a truculência da polícia. Em Santa Cruz Cabrália foi o local da grande movimentação. Joel então se destacava nesse período e ajudou a criar a Frente de Lutas e Defesa do Povo Pataxó. Foi o primeiro coordenador. Com isso, ele traz pra si toda a ira e ódio dos invasores do território Pataxó", explica Haroldo Heleno.  

     

    São sete terras indígenas Pataxó no extremo sul da Bahia. Naquele período a luta se concentrava mais em Barra Velha, mas dali por diante passou a envolver cada vez mais indígenas e demandas territoriais. "Até hoje os Pataxó defendem todo um território na região porque foram  incentivados, animados e motivados pelo exemplo de Joel Brás. Hoje tem Comexatiba, Coroa Vermelha. São áreas que seguem a briga com o eucalipto, os latifúndios, a exploração do turismo e a sobreposição de parques", destaca o missionário, que ainda lembra que o que Joel sofre lideranças como cacique Babau Tupinambá, Aruã Pataxó, Mandy Pataxó e Nailton Pataxó Hã-Hã-Hãe, entre outros, também estão submetidos.

     

    A antropóloga Jurema Machado, professora da Universidade Federal do Recôncavo Baiano, conhece Joel Brás desde 1999 e lembra da importância do movimento em que a liderança estava inserida; também das consequências que acabaram marcando a vida de Joel. "Os Pataxó Hã-Hã-Hãe, com os quais eu iniciava uma relação de pesquisa naquele mesmo ano, também participaram da retomada do Monte Pascoal. E isso desencadeou uma série de retomadas na Reserva Caramuru-Paraguassu. O Monte foi setembro, e lá no Caramuru, mais especificamente a área conhecida hoje como Milagrosa, em novembro do mesmo ano. E acho que aí o poder local com a ajuda inequívoca do judiciário, retoma uma prática muito antiga: transformar indígena em bandido".

     

    Conforme a antropóloga coletou durante essas quase duas décadas de pesquisa, há farta documentação histórica que atesta o caráter de ‘antiguidade’ deste expediente contra as lideranças indígenas. "São documentos emitidos por juízes, delegados, alguns padres missionários, que via de regra se queixavam ao presidente da província – estou falando de documentos da Bahia do século XIX —  de que em determinada localidade, geralmente um aldeamento extinto cujos índios teimavam em não sair das terras, e os interessados naquelas terras queriam os retirar à força, os índios “roubavam gado, perturbavam a ordem local”, “cometiam crimes de assassinatos”. “Eram uns facínoras!”. Ou seja, a prática dos grandes interessados em roubar as terras é muito colonial. Aliás o colonialismo se atualiza com as mesmas práticas. Parece ambíguo, mas acho que é assim mesmo", argumenta.

     

    Baetinga, Samado, Zabelê, Dona Josefa

     

    O Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro (Pineb) reuniu, através Fundo de Documentação histórica-manuscrita sobre índios na Bahia (FUNDOCIN), explica a professora Jurema Reunimos, uma série de documentos recolhidos a partir do Arquivo Público do Estado da Bahia, da série Judiciário, onde se recompôs o caso do índio Baetinga, da aldeia de Pedra Branca. "Baetinga era um dos líderes dos Kariri-Sapuyá, que resistiu por quase 30 anos, em meados do século XIX, para não perder as terras do antigo aldeamento de Pedra Branca, extinto pela lei de terras. Pois os poderosos da região não mediram esforços para fazer com a luta dos Kariri-Sapuyá fosse invisibilizada, e que as ações de resistência fossem vistas como crimes cometidos por um indivíduo, no caso Baetinga. Ou seja, se retira completamente do contexto, da luta de um povo, para imputar a um só indivíduo. Essa é a estratégia da criminalização. E acredito que esse ardil se atualiza agora no caso de Joel Brás, de Babau Tupinambá, e tantos outros", analisa.

     

    No caso do extremo sul da Bahia, a antropóloga destaca que se trata do "Estado e sua polícia cuidando da propriedade privada. Eu acho muito importante quando a gente analisa a coisa por inteiro, sabe, quando a gente pensa no sul da Bahia como um todo, e articula numa luta só Pataxó Hãhãhãe, Tupinambá e Pataxó. Porque é assim que o capital faz". Jurema, a todo momento, coloca em diálogo os Pataxó e os Pataxó Hã-Hã-Hãe em suas análises. Lembra de uma conversa com um dos filhos de Samado Santos Pataxó Hã-Hã-Hãe, Diógenes Santos, preso durante a ditadura militar no reformatório Krenak, centro de tortura para indígenas que contestavam poderes locais.  

     

    "Ele me contava a perseguição sofrida por Samado pelos fazendeiros invasores da TI Caramuru. Anos 60 e os fazendeiros conseguem mandar preso pra Krenak o Samado e o Diógenes. Samado era teimoso, e quando os fazendeiros achavam que não tinha mais índios naquelas terras, olha as roças de Samado brotando em uma serra qualquer. Aí os fazendeiros iam lá e fogo nas roças, Samado ia pra outro canto. Enfim, parafraseando um colega meu, o Hugo Prudente, pra quem saber andar, andar na terra, andar no território, retomar é isso", conta Jurema em interface ao contexto que leva Joel a esta situação de criminalização.

     

    No entanto, para a professora não se trata apenas de enfrentar uma luta contra os fazendeiros locais. "Os Pataxó enfrentam e desafiam o Estado por causa das invasões em seu território dos parques, primeiro de Monte Pascoal e depois do Parque do Descobrimento. A advogada Juliana dos Santos, que é Pataxó de Coroa Vermelha, escreveu um potente trabalho sobre a luta de Dona Josefa e Zabelê. Dona Josefa, nos anos 60 e 70, fazia roça na área do parque do Monte Pascoal porque não se conformava que aquela terra não seria mais dela e que nada ali poderia ser plantado. Pois o IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Ambiental), que era o órgão que cuidava das áreas de proteção ambiental nessa época, levava a índia pra delegacia. Ou seja…", afirma.

     

    Em 2003, Jurema passa a fazer parte da Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAI), onde permaneceu até 2009. "Nesse momento eu me aproximei de Joel, Marlene (esposa de Joel), e passei a acompanhar isso um pouco mais diretamente. Eu costumo dizer para minha família e colegas na universidade, que chegam pra me questionar sobre o que sai na mídia, “mas ele matou mesmo?”, eu respondo: – eu sento, dou risada, choro, como junto, e troco afeto com eles como eu faço com vocês. Eu entro na casa, eu sento na mesa e bebo café como faço na sua casa, também. E eu não entro na casa de qualquer um!".

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  • 15/08/2017

    Preocupados com invasões, povos indígenas de Rondônia reforçam luta contra marco temporal

    Por Guilherme Cavalli e Tiago Miotto, da assessoria de comunicação

    Nas últimas semanas, indígenas de Rondônia estiveram em Brasília, participando das mobilizações dos povos indígenas em todo o país contra a ameaça do marco temporal. Com diversas terras ainda sem demarcação e enfrentando invasões, loteamento e a pressão de fazendeiros, madeireiros e garimpeiros, os indígenas se preocupam com a possibilidade do marco temporal legalizar as invasões e a grilagem sobre seus territórios.

    “O marco temporal é um mecanismo para que o Estado brasileiro não cumpra com seu dever de fazer a reparação dos danos causados para os povos indígenas. Isso vai agravar muito a situação dos povos indígenas no Brasil, principalmente os povos que estão na luta pela demarcação dos seus territórios”, avalia José Luís Kassupá, coordenador da Organização dos Povos Indígenas de Rondônia, Noroeste do Mato Grosso e Sul do Amazonas (Opiroma).

    Representantes da Opiroma e da Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia (Agir) participaram do lançamento da campanha “Nossa história não começa em 1988” e realizaram uma série de reuniões com autoridades em Brasília, pedindo a demarcação de suas terras e a fiscalização das invasões sobre as terras indígenas de Rondônia.

    Em fevereiro, teve grande repercussão a denúncia de invasões e loteamentos dentro da Terra Indígena (TI) Uru Eu Wau Wau. Reportagem do portal Amazônia Real apurou que as Secretarias de Agricultura (Seagri) e de Desenvolvimento Ambiental (Sedam) do governo do estado de Rondônia atuaram ativamente na distribuição de lotes dentro da área demarcada, participando inclusive de reuniões realizadas dentro da terra indígena, junto com o vice-prefeito do município de Ariquemes (RO), Lucas Follador, e um representante do senador Acir Gurgacz (PDT-RO).

    “O marco temporal praticamente legaliza as invasões dentro das terras indígenas. É o caso do estado de Rondônia, nós temos loteamentos feitos dentro das Terras Indígenas Uru Eu Au Au, Karitiana, Karipuna, entre outras terras indígenas”, prossegue o indígena Kassupá. “Há mais de trinta anos estamos lutando para retirar os invasores de dentro das terras indígenas, e o marco temporal legaliza isso e outras questões também, como as invasões, o desmatamento dentro das terras indígenas”.

    Em documento entregue aos parlamentares durante audiência pública na assembleia legislativa de Rondônia, em 12 de julho, a Opiroma pediu aos deputados e deputadas para “fiscalizar as ações do Executivo e suas autarquias envolvidas na promoção ou facilitação da invasão da Terra Indígena Uru Eu Wau Wau ou unidades de conservação”.

    O documento da organização indígena cita um levantamento realizado pela Associação Jupaú e pela Associação Etnoambiental Kanindé e entregue ao Ministério Público Federal (MPF) em janeiro. Segundo a apuração das organizações, há 313 Cadastros Ambientais Rurais (CAR) sobrepostos a terras indígenas no estado de Rondônia. A grande maioria – 275 – sobrepõe-se à TI Uru Eu Wau Wau, mas há também 15 registros de sobreposição à TI Massaco; 12 na TI Karipuna; 6 na TI Kaxarari; 2 na TI Karitiana; além de um na TI Sagarana, um na TI Sete de Setembro, um na TI Aripuanã e um na TI Lage e Ribeirão.

    Estes cadastros, segundo a Opiroma, estavam pendentes e seriam reavaliados em agosto pelo governo do estado. Os indígenas pediram aos parlamentares estaduais que solicitassem o cancelamento destes registros.

    Invasões legalizadas

    O registro no CAR pode ser feito pelos próprios proprietários e, embora não seja um documento fundiário, há diversas denúncias de casos em que o CAR tem sido utilizado para legalizar áreas griladas, empregado como uma espécie de comprovação de ocupações ilegais.

    Segundo levantamento do De Olho nos Ruralistas, há cerca de 15 milhões de hectares registrados no CAR sobre Terras Indígenas ou Unidades de Conservação (UCs). Rondônia é o sexto estado com maior número de registros sobrepostos a terras indígenas: são 521.720 hectares cadastrados sobre terras dos povos tradicionais.


    Levantamento do observatório De Olho nos Ruralistas

    Este dado, entretanto, é parcial: o cadastramento ainda está em aberto, e o fato de que muitas terras ainda não tiveram o estudo de identificação e delimitação concluído pela Fundação Nacional do Índio (Funai) inviabiliza a comparação com as sobreposições. Segundo dados do relatório Violência contra os Povos Indígenas – 2015, são pelo menos 348 terras ainda sem nenhuma providência para sua demarcação.

    Em Rondônia, há 22 terras indígenas ainda sem estudo pela Funai e outras três em processo de identificação e delimitação. Embora o Estado ainda não tenha o registro oficial da extensão e da localização destas terras, os indígenas conhecem os limites de seus territórios tradicionais e denunciam a realização de loteamentos sobre estas áreas.
    É o caso da TI Puruborá do Rio Manuel Correia, uma das três áreas em estudo pela Funai, mas ainda sem os limites definidos pela fundação.

    “Já houve dois estudos na nossa terra, e com esse marco temporal já sabemos que não vai acontecer essa demarcação. Ela está toda loteada, porque depois do estudo o Programa Terra Legal deu título para os fazendeiros que lá se encontram. E se esse marco temporal passar mesmo – estamos pedindo a deus que não aconteça – nós, Puruborá, assim como vários outros povos no estado de Rondônia, já sabemos que não vamos ter a terra demarcada. E essa é a dor que a gente sente, porque nós não temos a terra demarcada, mas lá vivemos. Vamos fazer o quê? Levar os nossos filhos e filhas para a cidade?”, questiona a liderança Hozana Puruborá.

    “O marco temporal quer apagar a nossa história”

    “Se for aprovado, o marco temporal estará apagando a história dos povos indígenas no Brasil”, resume José Luís Kassupá. A tese político-jurídica defendida pelos ruralistas, segundo a qual os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras sob sua posse em 5 de outubro de 1988, teria consequências especialmente graves para os indígenas de Rondônia, que sofreram com sucessivas políticas de extermínio e confinamento em áreas diminutas, em nome da expansão da fronteira agrícola no estado e da abertura de projetos de mineração e linhas telegráficas.

    “O marco temporal vem no sentido de validar todo o processo que aconteceu no período da Ditadura Militar, de agrupar povos indígenas em uma terra indígena só. Você tem exemplos aí no estado de Rondônia, onde dentro de uma única terra habitam doze, dez, oito povos dentro de uma terra indígena. Então, o marco temporal vem fazer exatamente isso, e a gente já sofreu muitas violações”, prossegue o José Luís. Essas políticas de confinamento ajudam a explicar o fato de que, hoje, para os cerca de 60 povos vivendo nesse estado, existam apenas 20 áreas demarcadas.

    Aumento dos conflitos

    “Nós vivemos uma situação de completo abandono e, sobretudo, de completa impunidade”, afirmou à Rádio Vaticano a coordenadora do Cimi Rondônia, Laura Vicuña, denunciando as invasões de terras indígenas no estado.
    “O cenário indigenista vivido no estado de Rondônia, Noroeste do Mato Grosso do Sul e Sul do Amazonas é preocupante, devido aos constantes retrocessos nos direitos indígenas, de modo especial as contínuas invasões dos territórios por grupos econômicos inescrupuloso”, corrobora a nota divulgada pelo Regional Noroeste da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

    Na avaliação do secretário executivo do Cimi, Cleber Buzatto, como o marco temporal legaliza e legitima as posses de terras usurpadas dos povos indígenas até a data da promulgação da Constituição, ele se constitui numa forte sinalização do Estado de que o esbulho das terras indígenas é uma prática vantajosa.

    “A aprovação do Marco Temporal colocaria combustível nas invasões de terras indígenas em Rondônia e espalharia uma nova onda de esbulho territorial contra os povos no Brasil inteiro”, avalia Buzatto.

    “Esse marco temporal está trazendo na nossa mente que vai acontecer isso, vai abrir as portas para que tudo que há de ruim para os povos indígenas possa entrar nas nossas terras. Grilagem, garimpo, retirada de madeira, tudo isso pode aumentar dentro das terras demarcadas, e pior ainda no caso das não demarcadas”, sintetiza Hozana Puruborá.

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