28/03/2018

Os exilados de Mangabal e a solidariedade dos povos Munduruku e Apiaká do Médio Tapajós

Já são dois os exilados de Montanha e Mangabal; duas pessoas que não sabem quando poderão retornar às suas casas e famílias, e como poderão se manter longe do trabalho e da garantia de vida

De camisa azul e grisalho, à frente do grupo, seu Chico Caititu, um dos exilados de Montanha e Mangabal, durante autodemarcação da TI Sawre Muybu. Foto: Associação Pariri Munduruku

 

Por Luísa Pontes Molina, para o Le Monde Diplomatique

Francisco Firmino precisou sair às pressas de sua casa, no beiradão do Rio Tapajós, no Pará, quando a notícia chegou aos seus ouvidos: chefes de garimpo e de esquemas de saqueio de madeira e palmito tinham colocado a sua cabeça a prêmio. As recentes ações de proteção territorial no Projeto de Assentamento Extrativista (PAE) Montanha e Mangabal, onde Francisco vive, tinham atingido os bolsos daqueles sujeitos, impactando expressivamente o conflito na região. Era uma questão de tempo; a intimidação ganhava corpo numa rapidez ímpar, e o que antes eram rumores sobre “dar um jeito” nos ribeirinhos, logo se transformou em planos mais concretos, ouvidos diretamente por conhecidos de Francisco. E não se trata de um, mas de três alvos: junto com ele, outras duas lideranças de Montanha e Mangabal estão em risco – Ageu Lobo e Pedro Braga, presidente e vice-presidente da comunidade, respectivamente.

Chico Caititu (como Francisco é mais conhecido) atravessou o rio e foi se refugiar na terra indígena Sawre Muybu, do povo Munduruku: estratégia improvável, não fosse a parceria que ele estabeleceu com os indígenas nos últimos anos, em face das ofensivas aos povos e comunidades do Tapajós e às suas terras. E não foi apenas guarida que recebeu de seus vizinhos, mas oportunidade de saída: juntou-se ao grupo de noventa homens, mulheres e crianças munduruku que desciam o rio em três grandes canoas para protestar na cidade de Itaituba (PA) sobre as condições dos serviços de saúde e educação nas aldeias. Ele era o único não indígena presente. Em seguida, partiu para Santarém.

Já são dois os exilados de Montanha e Mangabal. (Isto é: duas pessoas que não sabem quando poderão retornar às suas casas e famílias, e como poderão se manter longe do trabalho e da garantia de vida.) Ageu teve que deixar a sua comunidade logo que soube de uma emboscada que o esperava no porto de Buburé, por onde sempre passava. Não fora a primeira nem a segunda vez que homens armados o aguardavam ali, segundo testemunhou um conhecido seu que trabalha no local. Foi avisado por esse homem que Ageu deixou de frequentar o porto – reconhecendo que as intimidações aumentaram em frequência e intensidade depois que a autodemarcação do PAE (realizada pela sua comunidade,em aliança com os Munduruku) impactou diretamente os esquemas de garimpagem e de retirada de madeira e palmito do território.

Já no início da atividades, em setembro de 2017, um grupo de garimpeiros armados ameaçou os beiradeiros, aumentando a tensão que enfrentam há décadas. Notificado pela comunidade, que seguiu com as ações de proteção territorial, o Ministério Público Federal recomendou a paralisação das atividades exploratórias dentro do PAE – em avisos que foram fixados pela Polícia Federal no trecho da Transamazônica que separa Itaituba de Jacareacanga. Em seguida, o Incra iniciou o georreferenciamento da área, que precede a fixação de marcos nos perímetros do assentamento, a certificação e a expulsão de invasores.

Aliança histórica

É certo que nas ameaças aos beiradeiros de Montanha e Mangabal ecoam padrões da violência que por anos seguidos coloca o Brasil no topo do ranking de assassinatos de ambientalistas e lideranças do campo – como o recente assassinato de Paulo Nascimento, em Barcarena, faz lembrar (e antes dele, tantos: Valdemir Resplandes, José Cláudio e Maria, Nicinha). Mas a história de Chico, Ageu e Pedro é também marcada por uma singularidade que não pode passar despercebida: eles foram protagonistas de uma aliança histórica na região, que reverberou não apenas nos recônditos da Transamazônica, por onde circulam as ameaças de morte, como também no alto escalão do governo federal, nos escritórios de multinacionais interessadas na exploração da bacia Tapajós-Teles Pires e na imprensa nacional e internacional.

Desde que Chico Caititu se juntou à ocupação do canteiro de obras de Belo Monte em 2013 – ação que enfureceu o Planalto e que promoveu significativos efeitos no debate (e na luta) sobre megaprojetos na Amazônia –, a relação entre as comunidades de Montanha e Mangabal e o povo Munduruku mudou. E, no ano seguinte, ao lado dos Munduruku, Caititu adentrava a floresta com Ageu e outros beiradeiros para marcar os perímetros da terra indígena Sawre Muybu, cujo processo de regularização fundiária se encontrava paralisado por motivos de “força maior” – isto é, de pressão do setor elétrico sobre a Funai, como à época admitiu a presidência do órgão indigenista. A autodemarcação dessa TI foi, sem dúvida, fundamental para o arquivamento do licenciamento ambiental da maior das 43 usinas hidrelétricas (UHEs) projetadas para a bacia do Tapajós – o projeto que já foi a “menina dos olhos do governo federal” e de investidores chineses. Depois dessa ação não se poderia mais fazer de conta que não havia indígenas habitando a região, como a presidência da Empresa de Pesquisa Energética costumava repetir, reproduzindo o velho discurso de vazio populacional da Amazônia, que também incidira sobre os moradores de Montanha e Mangabal.

Mas a pressão sobre os povos e as comunidades dali não se resumia à UHE São Luiz do Tapajós – e não é apenas essa usina que os está mirando: a construção da UHE Jatobá (que teve recentemente os estudos de viabilidade aceitos pela Aneel) está prevista para o exato centro da área de Montanha e Mangabal. Além dos megraprojetos logísticos que já estão sendo colocados em prática ou que estão projetados para a região (portos, hidrovias, ferrovias), outras frentes de destruição preocupam indígenas e beiradeiros. O garimpo de ouro, potencializado pela mecanização da última década, tem promovido uma verdadeira devassa nas margens e nas águas do Tapajós – como Chico Caititu insistentemente expôs ao participar do Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama), 17 e 22 de março de 2018, em Brasília. Além disso, tanto a área das comunidades de Chico, Ageu e Pedro como a terra dos seus vizinhos Munduruku vêm sofrendo maciças investidas do crime organizado da madeira e da extração de palmito.

Em resposta a essas investidas, a aliança entre beiradeiros e indígenas foi mobilizada novamente para demarcar por conta própria um território: desta vez, o de Montanha e Mangabal. Refletindo sobre esse processo (e os seus efeitos) em palestra na Universidade de Brasília, Chico Caititu concluiu: “nós fomos buscar direitos e encontramos a morte”.

*Luísa Pontes Molina é doutoranda em Antropologia pela Universidade de Brasília e membro do Laboratório de Antropologias da T/terra.

Com a colaboração de Arthur Serra Massuda e Maurício Torres.

 

 

Nota de solidariedade da Associação Indígena Pariri – Munduruku, Médio Tapajós à luta de Montanha e Mangabal

Nós, povo Munduruku do Médio e Alto Tapajós e povo Apiaká, queremos expressar nossa solidariedade aos amigos e companheiros de luta de Montanha e Mangabal, que estão sofrendo ameaças de morte. Dois grandes companheiros já tiveram que sair de suas casas, sem saber quando vão voltar: Chico Caititu (que chamamos de cacique Daje) e Ageu Pereira. As famílias dos dois e do Pedro Braga, que ainda está na comunidade, estão muito preocupadas. E nós também. Até onde vai essa situação?

Sabemos que a nossa luta em defesa do rio Idixidi (Tapajós) e dos nossos territórios incomoda muito, principalmente depois que fizemos, juntos, as autodemarcações de Montanha e Mangabal e de Daje Kapap Eypi, que os pariwat chamam de Terra Indígena Sawre Muybu. Já faz muitos anos que estamos enfrentando de frente os invasores que destroem nosso rio e nossa terra com garimpo ilegal ou tirando madeira e palmito. Mas cada vez que protegemos mais os nossos territórios, que lutamos mais por direitos, encontramos mais ameaças.

A luta do povo Munduruku e de Montanha e Mangabal é uma luta só. Juntos nós ocupamos Belo Monte, demarcamos Daje Kapap Eypi, demarcamos Montanha e Mangabal, fizemos os nossos protocolos de consulta, ocupamos a Transamazônica, falamos pros políticos de Brasília e de Itaituba que somos contra as barragens, o Ferrogrão, a invasão da soja… Já fizemos muito juntos e vamos continuar fazendo. Todos esses projetos são de morte, e o rio Tapajós é a nossa vida, de todos nós. Nós, Munduruku e ribeirinho, somos do mesmo rio, somos do mesmo sangue, somos da mesma floresta. Fomos criados juntos, no mesmo território, no mesmo rio. Se mexer com os ribeirinhos, que estão com a gente na luta, mexeu com o povo Munduruku também.

Sawe!

 

Fonte: Le Monde Diplomatique e Associação Indígena Pariri
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