Reunidas no MS, lideranças indígenas de todo o Brasil cobram fim da mesa de conciliação no STF e derrubada da lei 14.701
Em território Guarani e Kaiowá, lideranças de vários povos firmaram pacto contra negociação de seus direitos. “Retomaremos nossos territórios um a um. Agora ou vai ou racha”, afirmam

Encontro nacional de lideranças no tekoha Ita’y, na TI Panambi – Lagoa Rica, entre os dias 18 e 20 de março de 2025. Foto: Tiago Miotto/Cimi
Lideranças de 24 povos indígenas reuniram-se na Terra Indígena (TI) Panambi – Lagoa Rica, em Douradina, no Mato Grosso do Sul, entre os dias 18 e 20 de março, para discutir os ataques contra seus direitos e suas estratégias de lutas contra os retrocessos em curso. Lideranças de todo o país integraram-se à reunião do conselho da Aty Guasu, que ocorria no tekoha Ita’y, uma das aldeias e retomadas que compõem a TI Panambi – Lagoa Rica.
Frente à estagnação nas demarcações de terras, o aumento da violência contra povos e comunidades em luta por seus territórios e o risco de desmonte total dos direitos indígenas pela mesa de conciliação do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a lei do marco temporal, as lideranças de 14 estados do país firmaram um pacto de luta e anunciaram uma grande mobilização em defesa de seus territórios e de seus direitos constitucionais.
“Ao mesmo tempo que impediremos retrocessos e armadilhas que tentem enganar nossos povos em nossas bases, anunciamos que marcharemos todos juntos a Brasília, denunciando abusos e violações, exigindo que nossos direitos sejam respeitados e que os três Poderes da República honrem com suas obrigações constitucionais”, afirma a carta de compromisso divulgada ao final do encontro.
“Enquanto nosso direito for negado pela institucionalidade, iremos encontrá-lo na prática, na marcha e na luta. Retomaremos nossos territórios, um a um, povo a povo, porque eles são fundamentais para nossa existência e já não aguentamos mais viver apartados deles. Não permitiremos mais que nossos anciões deixem o mundo sem poder viver e sonhar em nossas terras, junto a nossos encantados. Não esperaremos mais, agora ou vai ou racha”, garantem as lideranças, fazendo referência à luta histórica pela demarcação da TI Raposa Serra do Sol, em Roraima.
“O Ministério do Povos Indígenas [MPI] e a Funai precisam se retirar da mesa de negociação que ameaça nossa existência”

Encontro nacional de lideranças no tekoha Ita’y, na TI Panambi – Lagoa Rica, entre os dias 18 e 20 de março de 2025. Foto: Tiago Miotto/Cimi
Sem negociação
No documento, os indígenas deixaram clara sua posição contrária à mesa de conciliação sobre a lei do marco temporal, criada pelo ministro do STF Gilmar Mendes e caracterizada pelas lideranças como “mesa de negociação”.
“O Ministério do Povos Indígenas [MPI] e a Funai precisam se retirar da mesa de negociação que ameaça nossa existência”, reivindicam os indígenas. A mesa foi suspensa por um mês, até o dia 28 de março, a pedido do governo federal.
Os indígenas também denunciam o que caracterizam como um “assédio” do governo, com propostas de compra de terras e negociações à margem do rito constitucional de demarcação, que não permite indenização a invasores e nem prevê o pagamento pela chamada “terra nua” a fazendeiros que ocupem terras dentro de territórios indígenas.
Na avaliação dos povos, esta política vai “na contramão da garantia de nosso direito Constitucional” e da decisão de repercussão geral do próprio STF sobre demarcações de terras indígenas.
“Não permitiremos que estas estratégias de agressão ao nosso direito e à nossa tradicionalidade sejam levadas a cabo contra o território de Panambi – Lagoa Rica nem contra nenhum território de nossos povos e parentes. Direitos negociados não são mais direitos. São concessões junto aos ladrões de nossas Terras e aos nossos agressores bem como a supressão de garantias fundamentais para nós, povos indígenas.
“A violência que acontece com os parentes Guarani e Kaiowá acontece também com outros povos que estão na linha de frente ameaçados de morte e sem o território demarcado”

Encontro nacional de lideranças no tekoha Ita’y, na TI Panambi – Lagoa Rica, entre os dias 18 e 20 de março de 2025. Foto: Tiago Miotto/Cimi
Massacre e resistência
O local escolhido para o encontro foi palco, no ano passado, de um massacre contra os povos Guarani e Kaiowá. Durante mais de um mês, entre agosto e setembro, os indígenas do território sofreram ataques diários e ficaram cercados por um acampamento ruralista.
Nas retomadas realizadas em partes do território de 12,1 mil hectares delimitados pela Funai em 2011, há 14 anos, crianças, anciões, mulheres e homens foram alvo de um cerco de caminhonetes e homens armados, com a conivência do Estado – e, inclusive, com a presença da Força Nacional. Diversos indígenas foram feridos por disparos de armas de fogo, ao menos cinco com gravidade.
As lideranças de outros estados que se somaram à assembleia Kaiowá e Guarani ouviram relatos das violências brutais a que as comunidades do território foram submetidas, mas também testemunharam os frutos de sua resistência: apesar da violência, os Guarani e Kaiowá consolidaram a posse de sete retomadas no interior da TI.
“Muitos de nós viemos de aldeias e territórios distantes. Vencemos estradas, atravessamos quilômetros, cruzamos rodovias e rios, trazendo na bagagem solidariedade e vontade de lutar”, afirmam as lideranças.
“A violência que acontece com os parentes Guarani e Kaiowá acontece também com outros povos que estão na linha de frente ameaçados de morte e sem o território demarcado”, aponta a carta. “Junto a eles e com eles pactuamos o clamor pela justiça e a busca incondicional por nossos direitos”.
Além de lideranças Guarani e Kaiowá, participaram do encontro lideranças dos povos Avá-Guarani e Kaingang, do Paraná; Munduruku, Arapiun e Gavião, do Pará; Pataxó, da Bahia; Guarasugwe, Karitiana e Oro Nao, de Rondônia; Krenye, Kariú-Kariri e Apãnjekra-Canela, do Maranhão; Karaxuwanassu, de Pernambuco; Kariri, do Ceará; Chiquitano, de Mato Grosso; Nukini, do Acre; Maraguá e Mura, do Amazonas; Pankararé, de São Paulo; Xukuru-Kariri, de Minas Gerais; e Apinajé e Xerente, do Tocantins.
Leia a carta abaixo na íntegra ou clique aqui para baixá-la em pdf:
CARTA DE COMPROMISSO DO ENCONTRO NACIONAL DOS POVOS INDÍGENAS NO MATO GROSSO DO SUL
Aldeia Itay, Território de Panambi Lagoa Rica,
Mato Grosso do Sul, 20/03/2025
No dia 18 de março de 2025, os primeiros raios de sol coloriram o horizonte Sagrado do Território Kaiowa e Guarani de Panambi Lagoa Rica, no Mato Grosso do Sul, a figura de uma grande Casa de Reza foi iluminada. Junto a ela, em Luta, em Reza e em Canto Sagrado nós assumimos o grande pacto e compromisso de avançar na demarcação de nossas Terras e afastar os perigos e armadilhas das tentativas de negociação/conciliação de nossos direitos por parte do Governo e do Estado Brasileiro.
Nós hoje, somos um.
Entre os dias 18 e 20 de março de 2025, estivemos enquanto lideranças de mais de 24 povos de todas as regiões do Brasil, sendo: Kaiowa, Nhandeva, Avá Guarani, Munduruku, Arapiun, Gavião, Kaingang, Pataxó, Guarasugne, Karitiana, Oro Nao, Kreniê, Xerente, Xucuru Kariri, Kariú Kariri, Apãnjekra Kanela, Karaxuwanassu, Chiquitano, Nukini, Maraguá, Mura, Pankararé e Apinajé. Participando um Encontro de Lideranças e somando na luta com os parentes Guarani e Kaiowá.
Muitos de nós viemos de aldeias e territórios distantes. Vencemos estradas, atravessamos quilômetros, cruzamos rodovias e rios, trazendo na bagagens solidariedade e vontade de lutar.
Encontramos entre os Kaiowa e Guarani povos valentes, herdeiros de uma luta inacreditável, detentores de uma determinação comovente e de uma espiritualidade poderosa e contagiante. Junto a eles e com eles pactuamos o clamor pela justiça e a busca incondicional por nossos direitos. Incansavelmente encontraremos a dignidade para nossos povos através da demarcação de nossos territórios.
Estivemos em Ivy Ajere, onde no ano passado, por mais de 40 dias, um acampamento miliciano imprimiu terror contra parentes desarmados. Diante da completa omissão e até mesmo da conivência do Estado e do Governo, famílias foram massacradas e alvejadas em cenas de guerra e barbárie.
Sentimos e partilhamos a dor do povo Kaiowa e Guarani, que espera pela demarcação desta Terra desde 2011. Todos os parentes que aqui estiveram, de todos os Povos, tem histórias semelhantes. Lembramos dos massacres, das lideranças assassinadas, dos ataques que sofremos cotidianamente. Assim como no Mato Grosso do Sul, a violência avança contra nossos povos e a natureza em todas as regiões do Brasil através da monocultura, madeireiros, mineradoras, imobiliára, empresas e dos megaprojetos.
A raiz de toda essa violência segue sendo o avanço do modelo econômico Capitalista e Colonial e diante disso a omissão do Estado Brasileiro em garantir a demarcação de nossas Terras. Nos Governos anteriores e no atual Governo os direitos indígenas seguem sendo negociados e esquecidos, a grande maioria de nossos territórios ainda aguarda publicação, declaração e(ou) homologação.
Enquanto isso a soja e o milho avançam e as crianças e mulheres estão sendo contaminadas pelo agrotóxico e o leite materno está envenenado. O veneno das fazendas está contaminando as plantações que alimentam nosso povo.
Entendemos que o Ministério do Povos Indígenas e a Funai precisam se retirar da mesa de negociação que ameaça nossa existência.
Na contramão da garantia de nosso direito Constitucional o Estado segue assediando nossos povos através da mesa de conciliação/negociação do Marco Temporal e de propostas de compra de terra inclusive contrariando as direções apontadas pelos Ministros do STF, quando do julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365.
Para este Território Tradicional no qual estamos pisando – Panambi Lagoa Rica – sabemos que o Governo pretende apresentar propostas de compra de terra tais quais praticou contra o território Guarani e Kaiowá, onde aproveitando de uma situação sensível do povo Kaiowa, procedeu de maneira imoral e ilegal, indenizando indiscriminadamente assassinos dos povos Kaiowa e Guarani sem nenhuma margem constitucional para isso.
Sabemos que da mesma maneira, o Governo tem assediado outros povos no Mato Grosso do Sul, como o povo Terena, buscando junto aos territórios de Buriti e Taunay Ipegue, abrir precedentes para ferir nosso direito constitucional.
É vergonhoso assistir o Congresso Nacional atropelando decisões do próprio STF e ameaçando nossos povos através de uma lei inconstitucional que revive o Marco Temporal bem como preparar a PEC 48 como instrumento de morte para nossos direitos constitucionais mesmo cientes de que são cláusulas pétreas da CF88. Bem como, nos envergonha que os outros dois poderes (executivo e judiciário) utilizem deste instrumento de morte, alinhando-se as bancadas inimigas dos povos, para amedrontar e chantagear nossos povos forçando-os a aceitar propostas que em si já ferem nossa tradicionalidade – essência do reconhecimento de nosso direito ancestral e originário.
É igualmente absurda e constrangedora a insistência do Governo na pratica ilusionista e golpista de questionar o atual método de demarcação administrativa via decreto 1775, escondendo o fato de que foram os próprios governos, negligenciando sua atribuição e responsabilidade de implementação do decreto que paralisaram e inviabilizaram as demarcações – atribuição está exclusiva do Executivo.
Não permitiremos que estas estratégias de agressão ao nosso direito e à nossa tradicionalidade sejam levadas a cabo contra o território de Panambi Lagoa Rica nem contra nenhum território de nossos povos e parentes. Direitos negociados não são mais direitos. São concessões junto aos ladrões de nossas Terras e aos nossos agressores bem como a supressão de garantias fundamentais para nós, povos indígenas. O Direito indígena é premissa sagrada conquistada com o derramamento de sangue de nossas lideranças e nossos ancestrais, garantidos pela Constituição Federal de 1988 e guiados e protegidos pelos nossos encantados.
Ao mesmo tempo que impediremos retrocessos e armadilhas que tentem enganar nossos povos em nossas bases, anunciamos que marcharemos todos juntos a Brasília, denunciando abusos e violações, exigindo que nossos direitos sejam respeitados e que os três poderes da republica honrem com suas obrigações constitucionais.
A violência que acontece com os parentes Guarani e Kaiowá acontece também com outros povos que estão na linha de frente ameaçados de morte e sem o território demarcado.
Por fim, declaramos que enquanto nosso direito for negado pela institucionalidade, iremos encontra-lo na pratica, na marcha e na luta. Retomaremos nossos territórios, um a um, povo a povo, porque eles são fundamentais para nossa existência e já não aguentamos mais viver apartados deles. Não permitiremos mais que nossos anciões deixem o mundo sem poder viver e sonhar em nossas terras, junto a nossos encantados. Não esperaremos mais, agora ou vai ou racha.
Precisamos permanecer vivos, mas vivos em nossos territórios demarcados e livres de ameaças ou de negociação sobre nossos direitos.
Exigimos enquanto movimento de unidade entre nossos povos que:
– Sejam retomados e finalizados os procedimentos administrativos de demarcação. E exigimos que a FUNAI crie imediatamente o Grupo de Trabalho (GT) e vá até os territórios realizar os estudos de identificação e delimitação.
– Seja declarada a inconstitucionalidade da lei 14.701.
– Seja encerrada imediatamente as mesas de conciliação/negociação do Marco Temporal.
– O STF julgue urgentemente os embargos do RE 1.017.365.
– Exigimos que os fazendeiros sejam punidos pelos crimes cometidos e imediatamente retirados dos territórios indígenas.
– Exigimos que a Sesai venha urgentemente atender em nas nossas retomadas.