“Uma migalha nos foi oferecida. Com uma arma na cabeça, é impossível dizer não”, afirmam Guarani sobre acordo com Itaipu
Comissão Guarani Yvyrupa relembra luta pelo território e a violência sofrida pelo povo Avá-Guarani e diz que apenas a devolução integral das terras tradicionalmente ocupadas encerrará a questão

Mobilização contra a Lei 14.701 durante assembleia geral da Comissão Guarani Yvyrupa. Foto: Cimi Regional Sul.
“Apesar do presidente Lula, da ministra Sonia Guajajara e do diretor da Itaipu Enio Verri terem declarado publicamente que Itaipu e o governo reconhecem a dívida histórica com o povo Ava Guarani, na prática se repetem os erros do passado”, ressalta a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) em nota pública divulgada após o acordo parcial com a Itaipu Binacional. Na última segunda-feira (24), o Supremo Tribunal Federal (STF) homologou um acordo determinando que a Binacional realize a compra de 3 mil hectares para os Avá-Guarani no Paraná, como forma de reparação histórica pela construção da usina hidrelétrica na década de 70.
Além de inundar milhares de hectares e deixar submersos espaços sagrados, locais de cultivo e as casas de várias famílias, a construção da usina durante a ditadura militar expulsou várias comunidades indígenas e vitimou incontáveis indígenas que lutavam por seus territórios. Entretanto, por décadas a empresa se negou a reconhecer e reparar os danos causados ao povo Avá-Guarani, chegando a usar a tese do marco temporal em 2020, em meio à pandemia de Covid-19, como justificativa para buscar reintegrações de posse contra as retomadas Curva Guarani, Tekoha Pyahu e Yva Renda, do povo Avá-Guarani, no oeste do Paraná.
“É muito pouco o que pedimos perto do que nos causaram e perto do poder econômico, financeiro e político de Itaipu e do Estado brasileiro”

Fotos do período em que a Usina Hidrelétrica (UHE) Itaipu Binacional
Na nota pública, a CGY relembra o processo de luta pelo território e a violência sofrida pelo povo Avá-Guarani, e reafirma que apenas a devolução integral das terras tradicionalmente ocupadas encerraria a questão. “[…] após ouvirmos da Itaipu Binacional que a empresa estava pronta para reconhecer a dívida histórica com nosso povo, esperávamos um acordo na justiça com a real dimensão dos danos causados ao território Avá-Guarani. Mas apenas uma migalha nos foi oferecida. Uma migalha que para quem tem, literalmente, uma arma apontada para a cabeça, fica impossível dizer não”.
A comissão se compromete a seguir firme até que seja feita uma verdadeira reparação histórica.
Confira a carta na íntegra:
Carta Pública do povo Avá-Guarani no Oeste do Paraná a respeito do acordo parcial com Itaipu
É com um misto de alívio e decepção que nós, povo Avá-Guarani da região Oeste do Paraná, escrevemos esta carta pública a respeito do acordo parcial assinado com a Itaipu Binacional. Alívio porque durante todo o ano de 2024 e no início de 2025 nossas famílias sofreram ataques violentos com armas de fogo que deixaram pessoas feridas, pais e mães sem dormir e crianças traumatizadas. Decepção porque após ouvirmos da Itaipu Binacional que a empresa estava pronta para reconhecer a dívida histórica com nosso povo, esperávamos um acordo na justiça com a real dimensão dos danos causados ao território Avá-Guarani. Mas apenas uma migalha nos foi oferecida. Uma migalha que para quem tem, literalmente, uma arma apontada para a cabeça, fica impossível dizer não.
Por meio de nossa organização, a Comissão Guarani Yvyrupa, construímos este acordo parcial com muito esforço. Desde o início das tratativas que acontecem em uma Câmara de Conciliação Federal, por determinação do Supremo Tribunal Federal na Ação Cível Originária 3.555, levamos nossa posição de que somente a devolução integral de nossas terras tradicionalmente ocupadas encerraria a questão. O acordo parcial que assinamos devolve somente 3.000 hectares e por isso mesmo deixa em aberto a dívida que Itaipu Binacional e o Estado brasileiro, a Funai, o Incra e a União têm com nosso povo. O acordo é parcial pois o processo judicial não se encerrará e seguiremos em luta para cobrar o pagamento integral desta dívida.
Os 3.000 mil hectares serão divididos entre as comunidades das Terras Indígenas Tekoha Guasu Guavírá e do Tekoha Guasu Ocoy Jacutinga, uma população de mais de 5.000 mil pessoas. Obviamente 1.500 hectares para cada Terra Indígena não possibilita que finalmente possamos viver o nhandereko, nosso modo de vida. Precisamos de espaço para plantar, não queremos viver amontoados como em bairros da cidade e queremos recuperar a mata da região, tão destruída pelo agronegócio e pela própria construção da UHE Itaipu. O acordo parcial somente adia o problema, seguiremos lutando e exigindo de Itaipu e do Estado brasileiro a devida reparação histórica que só virá com a demarcação de territórios que nos garantam um futuro como povos indígenas no Brasil.
Apesar do presidente Lula, da ministra Sonia Guajajara e do diretor da Itaipu, Enio Verri, terem declarado publicamente que Itaipu e o governo reconhecem a dívida histórica com o povo Avá-Guarani, na prática se repetem os erros do passado. Regularizar áreas pequenas nos faz lembrar das reservas indígenas que já nos causaram muito sofrimento, com famílias amontoadas sem espaço e obrigadas a conviver com outros povos.
Até meados dos anos 1950, nosso povo Avá-Guarani vivia nas matas que ainda existiam nas duas margens do rio Paraná. A chegada de colonos foi incentivada pelo Estado brasileiro e fragmentou nossas terras. A construção da UHE Itaipu foi decisiva para a expulsão de nossas famílias das áreas que restavam na beira do Paraná. Itaipu mentiu para nossos parentes, queimou nossas casas e nos tirou das áreas que seriam alagadas. A Funai e o Incra, comandadas pela Ditadura Militar, agiram para que nosso povo fosse apagado e obrigado a sair sem nenhum direito. Famílias tiveram que se espalhar, indo viver no Mato Grosso do Sul, no Paraguai ou nas reservas do interior do Paraná. Muitos parentes próximos nunca mais voltaram a se ver após o alagamento.
Se hoje somos considerados invasores por retomarmos nosso território, a custo de muito sangue já derramado, é porque nunca tivemos nossos direitos reconhecidos com a devida reparação pelas violências do passado. Atualmente vivemos em acampamentos em barracos de lona, sem água limpa, sem espaço para plantar, sem energia elétrica, tudo porque somos vistos como invasores. Nossas crianças, muitas vezes são humilhadas nas escolas e os brancos nos olham com ódio na cidade.
Sabemos que não voltaremos a ocupar livremente nosso território. As matas foram derrubadas, hoje predominam as monoculturas de soja. Mas queremos de volta pelo menos uma terra que nos garanta um futuro. Onde nossas crianças possam aprender a viver respeitando a mata e todos os seres que nela habitam. Onde possamos cultivar alimentos saudáveis, sem depender de cestas básicas. Ter água boa para beber, sem o veneno das lavouras. E principalmente, onde exista paz para nossas famílias. É muito pouco o que pedimos perto do que nos causaram e perto do poder econômico, financeiro e político de Itaipu e do Estado brasileiro. Sabemos que Itaipu destinou recursos abundantes para diversos projetos em conjunto com este Governo Federal, mas ao povo Avá-Guarani, com quem têm uma dívida de 50 anos, nos foi oferecida essa migalha que nos vemos obrigados a aceitar.
Celebramos o acordo parcial com Itaipu como fruto de nossa luta que é de muito tempo. Mas seguiremos firmes até que uma verdadeira reparação histórica seja feita.
Devolvam nossas terras!
Aguyjevete pra quem luta!