A superação do marco temporal na Constituinte de 1988, a mobilização dos povos e o inconformismo dos derrotados
A discussão que se encerrou em 1988 e que transformou em cláusulas pétreas os direitos indígenas é sempre reavivada numa perspectiva de reduzir o seu alcance e intencionalidade
A atuação dos povos indígenas foi decisiva na Constituinte de 1988. Na época, ainda sob a tutela do Estado, demonstraram uma audácia política genuína e protagonizaram uma mobilização determinante para que o direito originário sobre seus territórios fosse reconhecido na Constituição.
Uma parte fundamental dessa mobilização passou pela presença de indígenas de todo o país em Brasília, adentrando nos espaços do Congresso Nacional e sustentando suas reivindicações em danças, cantos e expressões rituais próprias. Essa ousadia política, com peregrinações aos centros de poder para defender seus direitos, é uma estratégia historicamente utilizada pelos povos originários.
Documentos históricos acessíveis em arquivos públicos, verificáveis também na história oral, mostram registros de que há mais de 80 anos os povos indígenas protagonizam longas peregrinações, de caráter épico, como a realizada pelos Pankará da Serra do Arapuá, que partiram na década de 1940 do distrito de Floresta, sertão de Pernambuco, rumo ao Rio de Janeiro, então capital federal, para junto ao Serviço de Proteção aos Índios (SPI) obter reconhecimento étnico e a demarcação de suas terras. É seguro dizer que parte dos direitos indígenas foi conquistado a partir de tais peregrinações; romarias encantadas rumo aos castelos do poder em busca da justiça inexistente nas distantes paragens em que esses povos viviam.
Ora, resulta impossível falar dos direitos indígenas assegurados pela Constituição de 1988 sem tratar da discussão que ainda hoje espreita os territórios de ocupação tradicional indígena, o marco temporal, e sem considerar a persistência das mobilizações indígenas em nossos dias como expressão política essencial.
A redação que hoje possui o art. 231 da Constituição Federal é a seguinte[1]:
Art. 231. São reconhecidos aos índios (…) os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Quisera que as demarcações já tivessem todas concluídas, como a própria Constituição Federal definiu ao estabelecer o prazo de cinco anos, a partir de 1988, para a conclusão desses processos. Mas infelizmente o passado insiste em se fazer presente. A discussão que se encerrou em 1988 e que transformou em cláusulas pétreas os direitos indígenas é sempre reavivada numa perspectiva de reduzir o seu alcance e intencionalidade.
O maior exemplo disso é a recente promulgação pelo Congresso Nacional da Lei 14.701/2023. Entre os dispositivos estabelecidos pela lei, estão a necessidade de comprovação da posse, pelos indígenas, do território vindicado em 5 de outubro de 1988, ou a demonstração do conflito possessório pelas vias de fato ou por meio de uma controvérsia judicial, persistentes à data da promulgação da Constituição.
Os Constituintes afastaram qualquer marco temporal como critério para demarcação das terras indígenas em 1988. Porém, as mesmas e anacrônicas exigências daquele artigo 266 são hoje reproduzidas em dispositivos da Lei 14.701.
Após revisitar propostas, emendas e debates travados à época da Assembleia Constituinte, o jornalista Paulo Celso Pereira, do Jornal O Globo, levantou documentos que comprovam que os parlamentares tiveram a intenção de preservar, na Constituição, os direitos de indígenas expulsos de suas terras. “Ou seja, os constituintes, deliberadamente, não estabeleceram um ‘marco temporal’ que os obrigasse a estar nas terras naquele momento para ter direito a elas”, relata a reportagem publicada em junho de 2023.
Na mesma matéria, foi identificado que durante a Constituinte foi retirado um artigo que previa, exatamente, a existência de um marco temporal:
Art. 266. Os direitos previstos neste Capítulo só se aplicam aos índios que, efetivamente, habitem terras indígenas e não possuem elevado grau de aculturação.
Como se vê, os Constituintes afastaram qualquer marco temporal como critério para demarcação das terras indígenas em 1988. Porém, as mesmas e anacrônicas exigências daquele artigo 266 são hoje reproduzidas em dispositivos da Lei 14.701. E pior, o Legislativo aprovou a referida Lei em clara desobediência ao texto da Constituição e à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário (RE) 1017365 (Tema 1031), de repercussão geral, que tornou inconstitucionais as teses por ela reguladas. Por isso mesmo, ela nasce com evidente vício de inconstitucionalidade[2].
Mais uma vez, a determinação dos povos indígenas e sua mobilização permanente nos territórios e em Brasília conseguiram demonstrar ao STF a inconstitucionalidade do marco temporal e continuarão perseverando, nessa mesma linha, até a derrubada da Lei 14.701.
Por outro lado, as instituições brasileiras, em especial o STF, já demonstraram que não cederão aos que menosprezam a Constituição Federal e a democracia no Brasil. Como disse Ângela Kaingang, cacica da retomada Faxinal, no Rio Grande do Sul, após visitar o STF: “não foi o nosso povo que botou fogo na Constituição em 8 de janeiro [de 2023]. Foram vocês, não-indígenas, que tentaram destruir essa Casa, assim como fazem todos os dias em nossos territórios”.
*Secretário executivo do Cimi
**Advogada e assessora jurídica do Cimi
***Advogado e assessor jurídico do Cimi
[1] Foram 497 parlamentares constituintes que aprovaram o atual texto do artigo 231 da Constituição, com apenas 5 votos contrários.
[2] ADI 5105, Rel. Min. Luiz Fux, 01.10.2015