09/04/2024

A necessidade de dizer o óbvio: Lei 14.701 deve ser declarada inconstitucional

Ao instituir marco temporal para demarcar terras indígenas, Congresso se afastou da Constituição de 1988

Mobilizados indígena em defesa de seus direitos constitucionais. Foto: Tiago Miotto | Cimi

Mobilizados indígena em defesa de seus direitos constitucionais. Foto: Tiago Miotto | Cimi

Por Paloma Gomes e Rafael Modesto Dos Santos, da Assessoria Jurídica do Cimi | | Artigo Originalmente Publicado no Jota

Em dezembro de 2023, sob a justificativa de regulamentar o artigo 231 da Constituição Federal, o Congresso Nacional promulgou a Lei 14.701/2023. A norma não apenas criou paramentos não previstos no texto constitucional para demarcação de terras indígenas como ignorou um julgamento de repercussão geral do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema, concluído poucos meses antes.

Entre os dispositivos estabelecidos pela lei e não previstos pela Constituição para demarcação de terras indígenas, estão a necessidade de comprovação da posse, pelos indígenas, do território vindicado em 5 de outubro de 1988, ou a demonstração do conflito possessório pelas vias de fato ou por meio de uma controvérsia judicia, persistentes à data da promulgação da Constituição. Estão também previstos os dispositivos que vedam a ampliação de terras já demarcadas e tornam nulas aquelas demarcações que não vierem a obedecer ao estabelecido na nova norma.

“Norma não apenas criou paramentos não previstos no texto constitucional para demarcação de terras indígenas como ignorou um julgamento de repercussão geral do STF”

O STF, ao analisar a mesma matéria regulada pela Lei 14.701, no Tema 1031, declarou inconstitucional as teses pela lei instituídas como critérios para demarcação de terras indígenas, a exemplo do marco temporal, renitente esbulho e vedação de reestudo de terras já demarcadas.

Convém destacar que a Constituição de 1988 reconheceu aos povos indígenas o “direito originário às terras que tradicionalmente ocupam”, responsabilizando a União pela demarcação e proteção das terras indígenas.

Como garantia para a realização destes direitos, foi estabelecido um prazo de cinco anos para que a União concluísse a demarcação de todos os territórios indígenas. Passados 35 anos desde a promulgação da Constituição, o Estado brasileiro ainda permanece em mora na demarcação das terras indígenas – e este fato é inquestionável.

Ao promulgar a Lei 14.701/23, o Congresso Nacional se afastou do que estabeleceu a Constituição de 1988 e da interpretação fixada pelo Supremo no julgamento dotado de repercussão geral.

“A Constituição de 1988 reconheceu aos povos indígenas o direito originário às terras que tradicionalmente ocupam, responsabilizando a União pela demarcação e proteção”

A lei, claramente inconstitucional – no seu aspecto formal e material –, prolonga a situação de instabilidade para a demarcação das terras indígenas e não contribui com a resolução de um problema real e evidentemente complexo. Ao contrário, ela acirra conflitos históricos e revela um modo de legislar sem comprometimento com as balizas constitucionais, o que tem se tornado recorrente em nosso país.

Em um período em que o óbvio também precisa ser dito, não seria demasiado lembrar que o princípio da separação de Poderes pressupõe o estrito cumprimento das atribuições e limites fixados pela Constituição Federal. Ao STF compete, precipuamente, a guarda da Constituição e sua devida interpretação, e ao Legislativo cabe legislar e fiscalizar os atos do Executivo.

No que diz respeito à interpretação quanto ao alcance jurídico dos artigos 231 e 232 da Constituição, o Supremo tem cumprido com aquilo que lhe compete, sejamos favoráveis ou não. Referimo-nos às 13 teses fixadas no Tema 1031, quando do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365. Nove dos 11 ministros reconheceram que o marco temporal, o renitente esbulho e a vedação do redimensionamento de terras indígenas são contrários ao texto constitucional, assim como a flexibilização do usufruto exclusivo destas terras pelos indígenas.

“As teses tenham sido fixadas em 27 de setembro de 2023 pelo STF e que o Senado tenha aprovado na mesma data o PL que viria a se tornar a Lei 14.701/2023”

Chama atenção o fato de que as teses tenham sido fixadas em 27 de setembro de 2023 pelo STF e que o Senado tenha aprovado na mesma data o PL que viria a se tornar a Lei 14.701/2023. Não apenas isso: o Senado derrubou os vetos presidenciais e desconsiderou em absoluto a decisão do Supremo, promulgando a referida lei meses depois, em 28 de dezembro. A ação legislativa desborda dos limites constitucionais e, por essa razão, já conta com diversas inciativas que questionam sua constitucionalidade perante o Supremo.

Poderiam dizer os incautos: ora, se compete ao Legislativo legislar, logo, estão os parlamentares a cumprir com os seus deveres. Por mais de um motivo, não.

Primeiro, porque o Legislativo usurpa a competência do STF ao interpretar o artigo 231 da Carta de 1988 e fixar ali a existência do marco temporal. E, por meio de Lei Ordinária, o Congresso regulamenta o texto constitucional que já é autoaplicável e não demanda de regulamentação – ainda mais quando o Supremo, nos limites da sua competência hermenêutica, reafirma que a tese posta pelo constituinte no artigo 231 não é a do marco temporal, mas a do indigenato, do direito originário.

Ainda, não é permitido ao Congresso Nacional legislar sobre o que foi estabelecido pela Constituição Federal de 1988 como direito fundamental. No caso, os artigos 231 e 232 tratam de direitos fundamentais, pois garantidores da manutenção das condições de existência dos povos indígenas brasileiros. Estamos, portanto, diante de verdadeiras cláusulas pétreas, imutáveis, consagradas sob a maior proteção existente no regime constitucional vigente.

“Ainda, não é permitido ao Congresso Nacional legislar sobre o que foi estabelecido pela Constituição Federal de 1988 como direito fundamental”

As cláusulas pétreas são regras estruturais da democracia e do próprio Estado, e por essa razão estão protegidas de maiorias legislativas eventuais. A Constituição neste ponto é clara, ao estabelecer que não será objeto de deliberação a proposta tendente a abolir os direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, inc. IV), como são os direitos indígenas – e a Suprema Corte firmou esse entendimento, de que os direitos indígenas são cláusulas pétreas, no julgamento do caso Xokleng em setembro de 2023, no Tema 1031.

Ante o novo cenário criado com a promulgação da Lei 14.701 – que significa um verdadeiro retrocesso social e que passa ao largo de qualquer parâmetro constitucional ou de um mínimo de racionalidade institucional e legislava –, urge que o Supremo aprecie e declare a inconstitucionalidade da referida lei, a fim de evitar ofensas à Constituição e açoites aos direitos dos povos indígenas do Brasil.

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*PALOMA GOMES – Advogada e assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
RAFAEL MODESTO – Advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

**O Artigo foi publicado originalmente no Jornal Jota, em 9 de abril de 2024. O link da original é: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-necessidade-de-dizer-o-obvio-lei-14-701-deve-ser-declarada-inconstitucional-09042024

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