30/12/2023

O marco temporal não saiu de pauta

Com a promulgação da lei 14.701, considerada como lei do genocídio pelo movimento indígena, duas ações são propostas ao STF, mantendo em discussão a tese do marco temporal

Cerca de 600 indígenas de diversos povos estiveram presentes em Brasília (DF) nos dias 30 e 31 de agosto para acompanhar o julgamento do STF sobre demarcação de terras indígenas. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Por Roberto Liebgott, do Cimi Regional Sul

Na última quinta-feira (28), o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, promulgou a lei que estabelece um marco temporal para demarcação das terras indígenas. No mesmo dia, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e a Rede Sustentabilidade pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) a invalidação da lei 14.701/2023, considerada inconstitucional e contrário aos direitos dos povos indígenas.

Para tanto, a entidade indígena e os partidos protocolaram no STF uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). Do lado oposto, os partidos Progressistas (PP), Republicanos e Partido Liberal (PL),por meio de uma outra ação, desta vez, Direta de Constitucionalidade (ADC),pediu à Suprema Corte que validasse a lei considerada genocida pelos povos indígenas do Brasil.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, promulgou a lei que estabelece um marco temporal para demarcação das terras indígenas

Sobre a ADI e a ADC proposta pelo STF teço quatro breves comentários:

1- A ADI proposta pela Apib, com a qual comungamos, é necessária e uma proposição óbvia, já que em 27 de setembro de 2023 o próprio STF julgou pela inconstitucionalidade da tese do marco temporal.

2- A ADC, proposta pela bancada dos ruralistas, é bem complexa porque busca confrontar o STF e, pior que isso, pretende lançar uns contra os outros sobre uma demanda que, a rigor, estaria pacificada. A situação se agrava com apreciação da ADC que será feita por Gilmar Mendes, eleito por sorteio como relator dessa demanda.

3- Os ruralistas demonstram, nessa hora, que querem determinar os rumos dos direitos indígenas confrontando o STF, já que a bancada superou o Poder Executivo sem nenhuma dificuldade.

4- Os ruralistas têm grande proximidade com o ministro Gilmar Mendes, que é também um deles, ou seja, andam na mesma comitiva.O ministro mostrou muita insatisfação com o resultado do julgamento do marco temporal, tanto que buscou, de todos os modos, alterar o resultado, fomentando a divergência, até que se deliberasse pelas 13 condicionantes da tese decidida em 27 de setembro de 2023.

Os ruralistas demonstram, nessa hora, que querem determinar os rumos dos direitos indígenas confrontando o STF

Os povos indígenas e seus aliados, mais do que antes, vão precisar atuar de forma orgânica e organizada no STF. Os debates serão propostos sob argumentos da soberania entre os poderes, sobre se decisões do STF devem prevalecer à lei e, outra vez, se a Constituição Federal efetivamente autoriza ou não o marco temporal. Acerca desse aspecto já há posição firmada, mas ela acabou sendo condicionada e negociada entre os ministros, por isso a insistência dos ruralistas.

Diante deste contexto todas as instituições aliadas dos povos indígenas  – no Brasil e exterior –  não podem silenciar e devem, de todas as formas cabíveis, se posicionar e atuar para impedir o desmantelamento dos direitos. O simples fato da lei 14.701/2023 ter sido aprovada pelo Congresso Nacional motivou o ataque de fazendeiros contra o povo Avá Guarani do Tekoha Guasu Guavirá, no Paraná, às vésperas de Natal. O ataque foi acompanhado por forças de segurança, ao ponto de um delegado da Polícia Federal dizer, em live, que ele prenderia os invasores de terras – os indígenas – com base na lei do marco temporal.

Os povos indígenas e seus aliados, mais do que antes, vão precisar atuar de forma orgânica e organizada no STF

Fato grave: estando em vigor a lei, todas as ações indigenistas vão ficar condicionadas a ela. Isso pode legitimar a paralisação das demarcações, legitimar decisões da justiça contra demarcações de terras, intensificar a concessão de medidas de reintegração de posse e, por fim, autorizar a exploração indiscriminada das terras por particulares.

O ano de 2023 termina com um retrato tão nebuloso e feio  como começou. Mas as lutas e as contradições sempre compuseram os cenários e as realidades indígenas no Brasil. Mais luta e resistência. Mais teimosia e profetismo. Mais engajamento e disposição para seguir pedindo as bênçãos dos ancestrais, dos encantados de luz e de todas as forças da natureza, porque como foi cantado por Zé Vicente, “lutar não foi e nem será em vão”.

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