10/08/2022

STJ reconhece a tradicionalidade da Terra Indígena Toldo Pinhal, do Povo Kaingang, em Santa Catarina

Além de revogar a decisão do TRF4, que aplicava o marco temporal para anular a demarcação do território de ocupação tradicional, agora os Kaingang serão ouvidos no processo como parte

Povo Kaingang reinvindica direitos em Brasília Foto: Guilherme Cavalli

Por Adi Spezia, da Comunicação do Cimi

Por unanimidade, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconhece a tradicionalidade da Terra Indígena (TI) Toldo Pinhal, do Povo Kaingang, localizado no Oeste de Santa Catarina. Com essa determinação, do dia 20 de julho deste ano, a Corte revoga a decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), que aplicou a tese do marco temporal para anular a demarcação do território Kaingang.

Os Kaingang têm a posse de suas terras questionada em ação que visa anular uma portaria de demarcação, ajuizada por um grupo de 96 agricultores, junto com o Estado de Santa Catarina e os municípios de Arvoredo e Seara, que alegam não haver direito de demarcação, pois a área foi colonizada na década de 1930, e que não existiam indígenas na região.

Por outro lado, os indígenas e organizações indigenistas, com atuação na região, afirmam o contrário e que os Kaingang de Toldo Pinhal foram expulsos por imposição das companhias colonizadoras. O direito à posse é originário e não decorre de nenhum outro fato que não seja a própria história, o que faz preencher todos os requisitos constitucionais. Sendo assim, a terra em discussão se enquadra como de ocupação tradicional indígena e, como tal, deve ser demarcada e protegida.

Com a decisão, a 2ª Turma do STJ defere a petição dos Kaingang que requeria o ingresso da comunidade na qualidade de litisconsorte passivo necessário. “Ou seja, um direito que o povo tem de ser parte no processo, que deveria ter ocorrido desde a primeira instância, o que não aconteceu, gerando um ‘vicio processual’, de acordo com o ponto de vista do Cimi [Conselho Indigenista Missionário] em relação ao acesso à justiça, o acesso à justiça processual aos índios”, explica o advogado da comunidade indígena e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Rafael Modesto.

“Um direito que o povo tem de ser parte no processo, que deveria ter ocorrido desde a primeira instância, o que não aconteceu, gerando um ‘vicio processual'”

Povos Pataxó, Tupinambá e Kaingang em manifestação em Brasília. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Povos Pataxó, Tupinambá e Kaingang em manifestação em Brasília. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Agora, os indígenas passam a ser ouvidos no processo, como assegura a Constituição de 1988. Mas o julgamento só terá prosseguimento após a definição do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que teve sua repercussão geral reconhecida pela Suprema Corte, e irá definir  o futuro da demarcação das terras indígenas de todo o país. O caso começou a ser julgado, mas a votação foi adiada por três vezes e segue sem data para continuidade.

 

Entenda o caso da TI Toldo Pinhal

Toldo Pinhal é uma Terra de Ocupação Tradicional do Povo Kaingang, de Santa Catarina, que teve o processo administrativo de demarcação anulado no âmbito de um processo judicial, numa ação ordinária que começa na primeira instância e chega ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), com a anulação da demarcação com base na Tese do marco temporal. Essa tese pretende restringir as demarcações de terras indígenas apenas àquelas áreas que estivessem sob a posse comprovada dos povos originários em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

Quando o caso chega ao STJ é que o Cimi e o povo Kaingang tomam conhecimento da existência da ação e da existência de decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), que aplicava o marco temporal para o caso dos Kaingang de Toldo Pinhal para anular o processo administrativo de demarcação do território. Como explica Rafael Modesto, “portanto, quando a gente teve conhecimento do processo, a demarcação do território já estava anulada. Sobre a área já havia portaria declaratória do Ministro da Justiça [hoje, Ministério da Justiça e Segurança Pública], declarando a terra como de ocupação tradicional dos Kaingang”.

“Portanto, quando a gente teve conhecimento do processo, a demarcação do território já estava anulada”

Em diálogo com a comunidade indígena Kaingang, os advogados decidem entrar com uma petição no processo no Superior Tribunal de Justiça requerendo o ingresso na qualidade de litisconsorte passivo necessário, um direito que o povo tem e que, até então, estava sendo desrespeitado, contrariando o que assegura a Constituição Federal de 1988. Ainda mais recentemente, foi publicada a Resolução nº 454 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 22 de abril de 2022, que garante, de acordo com os usos e costumes, com as diferenças culturais dos povos, o direito de serem parte nos processos judiciais de seu interesse.

“Então, a resolução do CNJ vem sedimentar esse direito, mas, antes no STJ, o Ministro Relator do caso em 2019, ao receber a petição dos indígenas, anulou monocraticamente o processo judicial por um vício insanável em função dos indígenas não terem tido a oportunidade de se manifestar no processo”, esclarece Rafael.

Em seguida, vieram os agravos dos fazendeiros, dos municípios e do Estado de Santa Catarina, o que demorou um pouco para ir a julgamento. Contudo, em maio do corrente ano, a 2ª Turma coloca o processo para julgamento, e define pela improcedência dos recursos dos autores da ação, anulando o processo judicial onde foi cassada a demarcação do território tradicional do Povo Kaingang, com base no marco temporal, esclarece o advogado do caso.

Toldo Pinhal é mais um dos casos onde os advogados do Cimi atuam no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF), onde os indígenas não foram citados para serem parte do processo – quando deveriam ser, justamente porque têm interesse direto no objeto da ação, no caso a demarcação do território de ocupação tradicional.

Esse é o primeiro processo que não havia transitado em julgado, que tem uma petição incidental antes do processo acabar, onde foi admitido o direito da comunidade de ser parte e, consequentemente, por ser esse um vício processual insanável, a anulação da ação judicial que gerou prejuízo aos indígenas em relação à demarcação, teve de ser reconhecida, conta o assessor jurídico do Cimi.

Nesta disputa é importante destacar dois pontos: “primeiro, a garantia da efetivação do Artigo 232 da Constituição, garantindo o acesso à justiça processual aos indígenas, a efetivação da Resolução 454 do CNJ e, por outro lado, o reestabelecimento da validade da Portaria Declaratória do Ministro da Justiça, porque o processo judicial foi anulado, portanto, volta a ter validade a Portaria Declaratória do Ministro da Justiça que reconheceu a ocupação tradicional da Terra Indígena Toldo Pinhal, do Povo Kaingang, localizada em Santa Catarina”, lista Rafael.

“Nesta disputa é importante destacar dois pontos: primeiro, a garantia da efetivação do Artigo 232 da Constituição e, por outro lado, o reestabelecimento da validade da Portaria Declaratória do Ministro da Justiça”

Povos indígenas realizaram vigília em frente ao STF nesta terça-feira (29), em defesa de seus direitos originários. Foto: Yarikazu Xipaya

Povos indígenas realizaram vigília em frente ao STF nesta terça-feira (29), em defesa de seus direitos originários. Foto: Yarikazu Xipaya

Quanto à decisão da 2ª Turma do STJ, é considerada uma importante vitória para a Comunidade Indígena e para o Cimi, que sustenta a Tese do Indigenato por meio de sua assessoria jurídica, a qual levou a cabo no processo o debate e fez prevalecer a referida tese e o direito dos indígenas.

A Tese do Indigenato contrapõe a Tese do marco temporal, pois reconhece os direitos indígenas como originários, ou seja, anteriores ao próprio Estado. Ao lado dessa tese jurídica, caminha a defesa do direito de acesso à justiça e ao Poder Judiciário pelos povos originários. Toldo Pinhal foi a primeira e, sem dúvida, não será a última decisão colegiada, nos tribunais superiores, onde os indígenas garantem a efetivação de dois direitos fundamentais: o acesso à justiça processual e o direito à demarcação do seu território.

Share this:
Tags: