22/08/2022

Direitos, leis, antropologia indígenas: assuntos convergentes que impulsionam à missão de defender os povos originários

O Curso de Formação Básica trouxe para os aspirantes a missionários profundos debates sobre direitos e legislação indígenas e antropologia indígena; estudos imprescindíveis para a ação missionária do Cimi

Curso de Formação Básica do Cimi. Foto: Curso Básico / Arquivo

Por Lígia Apel, Assessoria de Comunicação Regional Norte I

“Os povos indígenas são nações. Como tal devem ser respeitados. Seu modo de vida e visão cosmológica integrados à natureza do qual se entendem como parte é um grande ensinamento e contém em si a capacidade de manter a ecologia integral, condição para a continuidade de vida em nosso planeta”. Com esse depoimento, Ângelo Oliveira, estagiário e futuro missionário do Cimi Regional Mato Grosso, resumiu seu sentimento depois dos conhecimentos adquiridos e aprofundados no Curso de Formação Básica 1, promovido pelo Cimi em julho último, em Luziânia (GO), no formato presencial.

Esse terceiro texto sobre o Curso traz os temas Direitos Indígenas e Estado Brasileiro, ministrado pela advogada Chantelle Teixeira, integrante da equipe de assessores jurídicos do Cimi pelo Regional Norte I, e Antropologia I, aplicado pela assessora antropológica do Cimi, Lucia Helena Rangel.

Ambos os temas integram o programa do Curso Básico do Cimi por serem imprescindíveis para a compreensão e o respeito pelas formas de vida indígena, assim como todos os temas estudados.

“Os povos indígenas são nações, como tal devem ser respeitados”

Para o secretário executivo do Cimi, Eduardo de Oliveira, o Curso Básico tem o objetivo de fortalecer os conhecimentos dos atuais estagiários e futuros missionários, ampliando e aperfeiçoando suas capacidades de inter-relação, convivência e apoio aos indígenas na defesa incondicional de seu direito à vida.

“O Curso Básico do Cimi deve despertar o interesse pela formação constante dos nossos estagiários. De inserção na realidade dos povos indígenas e na realidade institucional do Cimi. Portanto, os conteúdos que são disponibilizados, sejam sobre a missão da instituição, da antropologia, da política indigenista, dos aspectos jurídicos, da comunicação, enfim, são apenas alguns que os iniciantes vão ter contato durante a sua caminhada e durante o seu convívio com essas populações”.

O Secretário também indica que a responsabilidade a partir do Curso Básico é manter o aprofundamento, da formação nas suas equipes, nos seus regionais, com os povos que atuam, e de propagar em seus regionais o que aprenderam. Também os regionais devem contribuir com o fortalecimento das capacidades missionárias. “Os iniciantes saem do curso com a missão de continuar sua formação e as coordenações regionais, de dar condições para que essas pessoas [estagiários e missionários] se fortaleçam nos conhecimentos indígenas, seja nos aspectos da saúde, da educação, da sustentabilidade, aspectos referentes à psicologia e antropologia, seja pela questão mística que nos envolve no dia a dia”.

“Os iniciantes saem do curso com a missão de continuar sua formação e as coordenações regionais, de dar condições para que se fortaleçam nos conhecimentos indígenas”

Curso de Formação Básica do Cimi. Foto: Curso Básico / Arquivo

Agentes políticos defensores de direitos

A defesa incondicional da vida, da existência, das formas de vida, dos direitos indígenas sempre foi a missão primordial do Cimi. Assumir essa defesa do ponto de vista jurídico também é uma das prerrogativas do Cimi. Para isso, a instituição mantém uma equipe de assessores jurídicos que acompanham processos administrativos e judiciais nas áreas de direito civil, penal, administrativo e previdenciário relacionados aos povos indígenas.

Chantelle Teixeira, advogada integrante dessa equipe, ministrou o módulo Direitos indígenas e Estado Brasileiro I para a etapa 1 da Formação Básica e disse que defender os direitos indígenas é defender a garantia dos povos originários continuarem a existir. “A defesa dos direitos dos povos indígenas é a garantia da continuidade da sua existência. Não só da sua vida física, da integridade física, mas na continuidade da sua cultura, tradições, costumes e dos seus territórios”, assegurou.

“A defesa dos direitos dos povos indígenas é a garantia da continuidade da sua existência. Não só da sua vida física, da integridade física, mas na continuidade da sua cultura, tradições, costumes e dos seus territórios”

Como advogada do Cimi, Chantelle realiza oficinas jurídicas junto aos povos indígenas na busca de levar até eles os conhecimentos sobre direitos, leis e o funcionamento do Estado brasileiro. Entende que, com a compreensão desses processos, os indígenas se fortalecem em suas lutas, reivindicações e resistência. E afirma que, da mesma forma, para os missionários do Cimi é fundamental conhecer os direitos conquistados pelos indígenas na Constituição de 1988, o conjunto de leis que amparam esses direitos e os processos para viabilizar a aplicação das leis.

“Conhecer quais são os direitos que os povos indígenas têm enquanto coletivos e também enquanto pessoas, é importante para conseguir vigilar a promoção e a proteção desses direitos”, diz a advogada indigenista, ao destacar que os missionários estabelecem contato direto com os indígenas em suas aldeias, por isso são uma base necessária para o êxito dos processos.

“Conhecer quais são os direitos que os povos indígenas têm enquanto coletivos e também enquanto pessoas, é importante para conseguir vigilar a promoção e a proteção desses direitos”

“Os missionários estão muito próximos em contato com os povos. E o Cimi conta com assessorias técnicas que buscam judicialmente os direitos. Mas, elas só conseguem desenvolver um trabalho efetivo se tem uma contribuição dos missionários que estão em área acompanhando a demanda específica daquele povo. São eles que qualificam as peças, os instrumentos jurídicos que a assessoria jurídica utiliza nas denúncias, nos pedidos para o judiciário, para os órgãos de fiscalização. Então, os missionários são agentes políticos defensores de direitos, aí reside a necessidade de seus conhecimentos em direitos, para aumentar a capacidade de atuação dos missionários”.

Em relação à linguagem jurídica que “sempre assusta” pela sua forma rebuscada de explicar os fatos, Chantelle diz que trouxe para os cursistas uma forma simplificada de falar sobre direito e sobre leis.

“O direito é algo dinâmico e social. É uma ciência humana criada por seres humanos. E ele se transforma, assim como a sociedade se transforma. Então, durante o curso, a ideia foi mostrar que os missionários interferem na construção e na garantia dos direitos. Trazer essa dimensão para estudar o direito aproximou eles de algo que às vezes está distante, naquela lei com aquela forma de escrever jurídica, “juridiquês” técnica. Tentamos simplificar esses conceitos”, conclui.

“O direito é algo dinâmico e social. É uma ciência humana criada por seres humanos. E ele se transforma, assim como a sociedade se transforma”

Curso de Formação Básica do Cimi. Foto: Curso Básico / Arquivo

A diversidade está na igualdade

Na formação básica do Cimi, a antropologia indígena tem cadeira específica e especial. Lucia Helena Rangel, assessora antropológica do Cimi, explica que a ideia é contribuir com os missionários a compreensão das relações sociais e das características mais importantes da vida indígena. “A gente respeita o que conhece, por isso é necessário conhecer”, diz Lúcia, explicando que o tema “deve ser voltado para a compreensão da espécie humana e seus comportamentos, como o sistema de parentesco, o mito, rituais, a economia, o sistema político”.

Essa forma de olhar os agrupamentos humanos e suas organizações, segundo a antropóloga, desmistifica a ideia de que os indígenas são inferiores porque são diferentes e que “é fundamental para tirar qualquer dúvida sobre a existência de diferenças biológicas, genéticas, entre raças, etnias e povos diferentes”, explica, afirmando que “a base da diversidade humana é a própria igualdade humana” e que no sistema de reprodução, “ a espécie [homo sapiens] é a mesma e as produções da espécie é que são diversificadas”.

“A gente respeita o que conhece, por isso é necessário conhecer. É preciso compreender a espécie humana e seus comportamentos, como o sistema de parentesco, o mito, rituais, a economia, o sistema político”.”

Lucia estimula que para ajustar o olhar sobre os povos indígenas é importante conhecer o que os antropólogos indigenistas já escreveram sobre suas observações, mas orienta que tais leituras não significam que no Curso Básico se estude uma antropologia teórica, de escolas e universidades. Ao contrário, é ler para aprender a observar.

“Minha intenção é socializar o conhecimento antropológico para facilitar a observação dos aspectos da diversidade da vida indígena. Como eles são tratados a partir de textos antropológicos e experimentar essas leituras é importante para o missionário ver que ele é capaz de compreender o mundo indígena”.

Para a etapa 2 do curso, Lucia pede que os estagiários estudem um dos povos com os quais trabalham e, baseado no que aprenderam com os autores, tragam um relatório antropológico. Quando retornam, são convidados a compartilhar suas observações com os colegas de turma.

“Minha intenção é socializar o conhecimento antropológico para facilitar a observação dos aspectos da diversidade da vida indígena”

“O que nós temos na etapa 2 é a demanda que vem dos relatórios dos missionários. É o momento de partilha, onde um conta para o outro como foi a sua experiência, o que escreveu no relatório, quem é o povo, como ele vive, quais são suas organizações sociais. Esse é o momento de falar e ouvir bastante. Se faz um “resumão” do que foi conversado e, então, a gente pode discutir algumas as dúvidas, as preocupações, o que é importante aprofundar, aquilo que incomoda, o que é um grande prazer, enfim. É conversar muito sobre a experiência de cada um frente ao povo com o qual se trabalha, e comparar com os outros”.

Para Lucia, esse é um momento da percepção da diversidade de culturas que o país possui, porque é traçado um “panorama das situações dos povos indígenas em diversas partes do Brasil. E é muito importante a gente cotejar e ver o que é comum e o que é diferente”, explica e exemplifica: “a reivindicação por demarcação de terras, que é sempre um ponto em comum” entre os povos observados.

Sendo uma “antropologia para a compreensão da vida indígena e, portanto, é um estudo que reforça o trabalho do Cimi junto aos povos indígenas”, conclui.

“É um momento da percepção da diversidade de culturas que o país possui, porque é traçado um panorama das situações dos povos indígenas em diversas partes do Brasil”

Curso de Formação Básica do Cimi. Foto: Curso Básico / Arquivo

A psicologia se aproxima da antropologia

“Eu acho a atuação do Cimi extremamente importante, principalmente do ponto de vista que o Cimi não está nas aldeias, nas comunidades para alterar alguma coisa, para impor, mas é uma presença muito tranquila, no sentido de apoio mesmo. Isso dá total autonomia aos povos e é incrível!!”, testemunha a estagiária e cursista do Básico 1, Marta Mamédio, do Cimi Regional Leste, Bom Jesus da Lapa (BA).

Marta é psicóloga e há dois anos está no Cimi. Adepta da psicologia comunitária, aceitou o convite do Cimi para integrar a equipe, conhecer e contribuir com os povos indígenas do oeste da Bahia. Das áreas que estudou durante o curso, a que mais lhe chamou a atenção foi a antropologia indígena, pela proximidade que possui da psicologia, pois ambas consideram o contexto das pessoas ou da coletividade.

“A antropologia é uma área que me toca diretamente porque a psicologia também se constrói pela antropologia e, talvez para compreender as coisas da vida, a gente tenha que trabalhar com as duas para não pensar uma vivência descontextualizada”

“A antropologia é uma área que me toca diretamente porque a psicologia também se constrói pela antropologia e, talvez para compreender as coisas da vida, a gente tenha que trabalhar com as duas para não pensar uma vivência descontextualizada. A psicologia ajuda a compreender alguns contextos e a antropologia ajuda na compreensão do processo histórico. E para entender o contexto de fato, tem que conhecer a história”.

Encantada e motivada para o trabalho com os povos indígenas, Marta preconiza os 50 anos do Cimi e diz que é “extremamente importante conhecer e respeitar essa história para se construir os novos 50. Eu tenho muita esperança que nos próximos 50 anos, várias novas perspectivas se construam, inclusive de como está a saúde mental dos povos indígenas.

“É extremamente importante conhecer e respeitar essa história para se construir os novos 50”

Curso de Formação Básica do Cimi. Foto: Curso Básico / Arquivo

Mensagens que voam e ficam

Alguns dos assessores que ministraram temáticas durante o Curso deixam suas mensagens de incentivo aos iniciantes da ação missionária do Cimi.

Gilberto Vieira dos Santos, também chamado de “Giba”, assessor e coordenador do Cimi Regional Mato Grosso. “Não esqueçam das raízes do Cimi. Aqueles que contribuíram em outros tempos, com visões que eles próprios depois superaram no processo de inserção junto aos povos. Uma árvore sem raízes não se mantém em pé. Não se pode perder essa memória da história de construção de 50 anos.

Clóvis Brighenti, assessor de história indígena: a possibilidade de conviver com os povos indígenas faz toda a diferença na nossa vida. As sabedorias, as formas próprias de organização social, os saberes, a dimensão cosmológica é uma riqueza incomensurável. Então, aproveitem e conheçam esses povos, aprendam com eles para a construção de um outro projeto de sociedade, um projeto justo, equânime, etc.

“Não esqueçam das raízes do Cimi, aqueles que contribuíram em outros tempos, com visões que eles próprios depois superaram no processo de inserção junto aos povos”

Chantelle Teixeira, assessora jurídica do Cimi Regional Norte I. Que o conhecimento continue sendo adquirido e partilhado com força e interesse. Continuem buscando notícias, lendo as legislações, entendendo novas decisões que vão surgindo no judiciário. Embora o estado brasileiro esteja passando por um momento político complexo, esses governos mudam e existe possibilidades de políticas públicas que garantam os direitos dos povos indígenas em governos futuros. Continuem com essa vontade de transformar realidades e usem o direito como instrumento nessa transformação.

Eduardo Cerqueira, secretário executivo do Cimi. A formação é um processo constante e permanente. O curso básico deve animar quem está entrando para continuar sua formação, sua inserção na realidade dos povos indígenas, de inserção na realidade institucional do Cimi e dar continuidade a essa missão.

“A formação é um processo constante e permanente. O curso básico deve animar quem está entrando para continuar sua formação, sua inserção na realidade dos povos indígenas”

Curso de Formação Básica do Cimi. Foto: Curso Básico / Arquivo

Lucia Rangel, assessora antropológica do Cimi.  A gente tem que abrir a mente para a compreensão dos povos, costumes, coisas esquisitas, diferentes, tal. E abrir o coração, porque esse é um trabalho que só pode ser feito com amor. Não tem outra forma de trabalhar. O amor é mais importante que tudo.

Irmã Cristina Souza, coordenadora do Coletivo de Formação do Cimi. A gente diz para todos os chegantes: Sejam bem-vindos, bem-vindas. A missão é grande. A missão é árdua, é difícil, mas o amor a causa é maior e supera tudo isso.

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