STF mantém demarcações na Funai e impõe derrota ao governo Bolsonaro
A decisão também reconduz o órgão indigenista ao Ministério da Justiça. Os ministros da Corte foram unânimes na decisão
Por unanimidade, 10 votos a 0, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), na tarde desta quinta-feira, 1º de agosto, decidiu manter a demarcação das terras indígenas com a Fundação Nacional do Índio (Funai), e o órgão sob a competência do Ministério da Justiça e Segurança Pública. O julgamento marca a retomada das atividades da Suprema Corte, após um mês de recesso, e impõe nova derrota política ao governo de Jair Bolsonaro.
A decisão marca ainda as constantes tensões entre o Congresso Nacional, STF e governo, evidenciadas no pronunciamento do relator, ministro Luís Roberto Barroso, quando assegura que “à Funai, vinculada ao Ministério da Justiça, é quem cabe o papel de demarcação de terras indígenas. Há matérias em que vigoram as escolhas políticas dos agentes eleitos, e há matérias em que prevalecem a Constituição”.
“Há matérias em que vigoram as escolhas políticos dos agentes eleitos, e há matérias em que prevalecem a Constituição”
Na Medida Provisória (MP) 870/2019, editada pelo governo de Jair Bolsonaro no primeiro dia do ano, que estabeleceu “a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios” na gestão que se iniciava, a atribuição de demarcar as Terras Indígenas foi transferida para a competência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), sob o comando da ruralista Tereza Cristina (DEM/MS), egressa da Câmara Federal. A Funai, por sua vez, foi vinculada ao recém-criado Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos.
No dia 29 de maio, perto do encerramento do prazo legal de validade da MP, o Senado Federal ratificou a decisão dos deputados federais, tomada uma semana antes em votação do Plenário, e as demarcações voltaram para a Funai e o órgão ao Ministério da Justiça. Contrariado com a derrota, Bolsonaro baixou nova MP com os mesmos encaminhamentos da anterior. Quatro ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 6062, 6172, 6173 e 6174) foram ajuizadas pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), Rede Sustentabilidade, Partido dos Trabalhadores (PT) e Partido Democrático Trabalhista (PDT) junto ao STF.
“A instabilidade gerada por essas indefinições tem consequências reais aos povos indígenas”
Durante o pronunciamento de voto, a Ministra Carmen Lúcia, destacou a responsabilidade da Corte ao votar esta medida provisória, devido a importância do tema, definido por ela como “particularmente e sensivelmente importante para a sociedade brasileira”. A instabilidade gerada por essas indefinições tem consequências reais aos povos indígenas.
A invasão da Terra Indígena (TI) Wajãpi e o assassinato do cacique Amyra Wajãpi, no Amapá é destacado pela Ministra. “No último sábado, 27, nós tivemos um gravíssimo problema no Estado do Amapá, com índios em terras demarcadas sendo afrontadas”. Nos dias que seguiram invasão da TI, a dificuldade era saber quem seria o órgão responsável e onde estaria enquadrado este órgão para tratar da matéria. “Fui chamada umas duas vezes e ficou extremamente difícil de saber a quem acionar, uma vez que na região só se chega por via área ou fluvial, e só se entra em terra indígena demarcada pela força nacional ou com ordem judicial. Foi um dia extremante difícil que chegou até a morte do cacique e líder da aldeia”, completa a Ministra Carmen Lúcia.
“Foi um dia extremante difícil que chegou até a morte do cacique e líder da aldeia”
O professor e advogado do PSB, Daniel Sarmento, partido que propôs a ADI de nº 6.062, fez uso da tribuna no pleno do STF para a sustentação oral afirmando que a decisão de Bolsonaro pela nova MP atenta contra a Constituição Federal. Após a decisão do STF, Sarmento avalia ter sido um bom julgamento: “unânime, em que o Supremo coloca claramente um limite no governo. Vários ministros (se) referiram ao fato (de) que o direito fundamental dos povos indígenas ao seu território é um direito que tem que ser salvaguardado, e que não está à disposição do governante de ocasião”.
Com esta decisão, o STF esclarece o vínculo da Funai com o Ministério da Justiça e Segurança Pública e não ao Ministério da Agricultura, como a Advocacia-Geral da União (AGU) vinha sustentando. “Hoje houve uma dupla vitória, onde foi referendada a liminar mantendo a competência da Funai na demarcação das Terras Indígenas e também porque foi assentada e integração da Funai na estrutura do Ministério da Justiça, como já tinha decidido o Congresso Nacional”, explica Sarmento.
“Havia claro conflito de interesses ao propor que a Demarcação das Terras Indígenas ficasse sob a administração do Ministério da Agricultura, chefiada por uma pessoa ligada ao Agronegócio”
Para os povos indígenas, a decisão tomada pelo Pleno da Suprema Corte representa o fortalecimento da luta pelo acesso à Justiça e pelo direito fundamental à terra. O advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Rafael Modesto explica haver um conflito de interesses em jogo nesta sessão. “Havia claro conflito de interesses ao propor que a Demarcação das Terras Indígenas ficasse sob a administração do Ministério da Agricultura, chefiada por uma pessoa ligada ao Agronegócio”, esclarece.
Após essa fase, onde ainda se discute a medida liminar, haverá a instrução do processo, ou seja, é a fase que começa a reunir as provas, ouvir as partes interessadas e juntar documentos, explica Modesto. O Cimi tem acompanhado o caso no Supremo e solicitou a sua habilitação como Amicus Curiae, ou seja, amigo da corte, e aguarda a análise do ingresso no caso. Nesta condição, caso ela se confirme, deverá acompanhar o processo até o seu enceramento, ajudando no esclarecimento dos fatos, para se chegar a uma decisão que respeite a Constituição Federal de 1988.