• 18/08/2017

    Após vitória, indígenas exigem que Temer respeite decisões do STF e revogue parecer sobre demarcações


    Indígenas seguiram fazendo cantos do Palácio do Planalto até o Ministério da Justiça. Foto: Tiago Miotto/Cimi

    Por Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação

    Lideranças indígenas protocolaram documentos hoje (17) exigindo do governo federal a revogação do Parecer nº 01/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), publicado em julho. O parecer, elaborado pela AGU assinado por Michel Temer, pretende obrigar todos os órgãos do Executivo a aplicar o marco temporal e as condicionantes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no caso Raposa Serra do Sol a todas as demarcações de terras indígenas.

    Motivados pela decisão do STF no julgamento das Ações Civis Ordinárias (ACOs) 362 e 366, ocorrido ontem, indígenas dos povos Tupinambá, Pataxó Hã-Hã-Hãe, Guarani, Kaingang e Xokleng, realizaram cantos em frente ao Palácio do Planalto, ao Ministério da Justiça e à AGU, em Brasília, enquanto lideranças protocolavam documentos exigindo que o Parecer nº 01/2017 – GAB/CGU/AGU seja revogado.

    No julgamento de quarta, o STF negou, por oito votos a zero, o pedido de indenização do estado de Mato Grosso pela criação do Parque Indígena do Xingu, em 1961, e a demarcação de áreas na década de 1980 que, segundo aquele estado, seriam de sua propriedade.

    Os ministros e ministras reafirmaram, com a decisão, os direitos originários dos povos indígenas e o indigenato, em referência à longa história de reconhecimento formal do direito dos povos indígenas às suas terras no Brasil, em diferentes constituições e em legislações que remontam ao período colonial.

    Em seu voto, o ministro Luís Roberto Barroso, que foi relator dos embargos de declaração do caso Raposa Serra do Sol, destacou que o conteúdo da Petição 3388/RR se aplicava única e exclusivamente ao julgamento do caso Raposa Serra do Sol – o que consta do próprio acórdão daquela decisão e que é frontalmente desrespeitado pelo parecer da AGU.


    Indígenas aguardaram o protocolo do documento com cantos do lado de fora do Palácio do Planalto. Foto: Tiago Miotto/Cimi

    Um dos pontos que aparecem no acórdão da Petição 3388/RR, e que foi incorporados ao Parecer 001/2017 da AGU, é a tese do marco temporal, segundo a qual os indígenas só teriam direito às terras que estivessem sob sua posse na data da promulgação da Constituição Federal.

    Embora o marco temporal não tenha sido julgado diretamente, ministros, como o próprio Barroso, afirmaram princípios contrários à tese. Para Barroso, “somente será descaracterizada a ocupação tradicional indígena caso demonstrado que os índios deixaram voluntariamente os territórios que possuam ou desde que se verifique que os laços culturais que os uniam a tal área se desfizeram”.

    O ministro Ricardo Lewandowski foi enfático ao afirmar a relevância científica dos laudos antropológicos sua validade como prova para se analisar processos envolvendo a demarcação de terras indígenas. Rosa Weber também ressaltou que a Constituição de 1988 reconheceu aos indígenas o direito originário às terras que ocupam de acordo com sua própria forma de ser e suas especificidades, o que também conflita com a tese do marco temporal.

    “Foi uma vitória que a gente teve ontem na votação aqui no STF, mas ainda é preocupante esse parecer do governo Temer”, afirma Kerexu Yxapyry, liderança Guarani Mbya da Terra Indígena Morro dos Cavalos que participou da entrega de documentos ao Executivo hoje.

    “Para nós é assustador, quando a gente está na aldeia e vê uma coisa dessas sendo lançada pelo presidente do Brasil, a gente fica tão preocupado e não sabe onde vai. Mas quando a gente chega em Brasília e vê o STF falando que isso não se aplica, a gente começa a perceber que existe uma falta de respeito entre os próprios poderes que estão aqui”, completa.


    Indígenas foram à AGU pedir a revogação do Parecer 001/2017. Foto: Tiago Miotto/Cimi

    O parecer que os indígenas exigem que seja revogado fez parte da grande negociata de Temer para se manter no poder, após ser denunciado por corrupção passiva pela Procuradoria-Geral da República (PGR). A peça foi publicada pelo governo federal após negociação de Temer com a bancada ruralista, como integrantes da própria bancada divulgaram em suas redes sociais. Os votos ruralistas foram essenciais para garantir que a denúncia da PGR não fosse investigada e Temer se mantivesse no cargo.

    Nas últimas semanas, os povos indígenas mobilizaram-se intensamente contra o marco temporal, preocupados com a possibilidade do STF adotar esta tese política e jurídica nos julgamentos da última quarta. Contudo, a ação que teria mais chances de trazer essa discussão de forma direta – a ACO 469, sobre a demarcação da Terra Indígena Ventarra, no Rio Grande do Sul – acabou sendo retirada de pauta.

    “A decisão nas ações do Mato Grosso foi uma vitória nossa, dos povos indígenas. Agora, estamos aqui dizendo mais uma vez não ao decreto do presidente Temer que antecipa o marco temporal, e vamos lutar até esse parecer cair e esse fantasma sumir das nossas vidas”, afirma Ramon Tupinambá.

    Veja aqui o documento entregue pelos indígenas no Palácio do Planalto, no MJ e na AGU.

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  • 17/08/2017

    Joel Brás Pataxó é absolvido por Júri Popular; depois de 11 anos em prisão domiciliar, está livre

    Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi

    Joel Brás Pataxó, após 11 anos em prisão domiciliar, está livre. Por 4 x 3, o Júri Popular da Vara Federal de Eunápolis (BA), na noite desta quarta-feira, 16, o absolveu da acusação do homicídio de um pistoleiro ocorrido em 8 de dezembro de 2002. Este foi o sexto e último processo respondido por Joel; em todos os demais ele foi declarado inocente. O Júri começou às 8h30 e só terminou por volta das 19 horas.  

    Leia mais: Marcha Indígena de 2000, o ano que não acabou: Joel Brás Pataxó será levado a Júri Popular nesta quarta, 16

    "Foram anos difíceis, mas sempre acreditamos na nossa luta. Agradeço a todos os parentes, advogados. Sabemos que é sofrido, sei bem o sofrimento do meu povo. Me faz lembrar dos 500 anos, em 2000, quando fomos maltratados sobre a nossa terra. Muitos povos e lideranças sofreram e sofrem isso que eu sofri. Perdemos a liberdade, perdemos a vida, mas a nossa luta é o que temos de maior", disse Joel após o Júri.   

    José Moraes, segurança privado da Fazenda Oriente, área incidente na Terra Indígena Barra Velha, armou uma emboscada para Joel num acampamento Pataxó distante cerca de 7 km de "seu local de trabalho". Moraes, na verdade, era um conhecido pistoleiro. Ao perceber a arapuca, o indígena agiu em legítima defesa e atirou em Moraes enquanto este sacava a arma de fogo para assassiná-lo. Joel não fugiu e se apresentou às autoridades.

    A defesa do indígena apresentou ao Júri três testemunhas: duas pessoas que estavam na BR-498, estrada que liga a BR-101 ao Monte Pascoal, onde os fatos ocorreram, e um Pataxó, que na época era adolescente e estava no acampamento cuidando da crianças quando José Moraes chegou atirando à procura de Joel – momentos depois ele encontraria o indígena e, antes de cumprir com o serviço, a morte.

    Apenas uma testemunha foi levada pela acusação, realizada pela Procuradoria Federal. No entanto, o depoimento revelou não um homicídio, mas o quanto Joel era perseguido. "A única testemunha de acusação confirmou a presença de um homem com roupa camuflada, mas não a de Joel. Afirmou ainda que à época disse que era Joel porque o delegado a coagiu", explicou o advogado do indígena, Luciano Porto.

    Um ponto atacado pela acusação era que José Moraes era um funcionário da Fazenda Oriente. Depoimentos de funcionários e do gerente da antiga fazenda lançaram por terra o argumento. "Moraes era um sujeito experimentado em defender propriedades. Vivia armado, era conhecido como matador. Além disso, se dirigiu ao acampamento Pataxó para matar Joel percorrendo uma distância de 7 km", afirma Porto.

    O processo saiu da Justiça Estadual para a Federal 2007, por determinação do Superior Tribunal de Justiça (STJ). "Já havia sido reconhecido pela Justiça não se tratar de um processo de homicídio comum. Em novembro de 2009 então começa a correr na Subseção Judiciária da Vara Federal de Eunápolis", explica o advogado. Enquanto esteve na Justiça Estadual, o Pataxó cumpriu períodos encarcerado.

    A defesa de Joel, também realizada pela advogada Michael Mary Nolan, da assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), estava otimista porque além de todas as provas, que demonstravam se tratar de um ato de legítima defesa, Joel tinha cumprido até esta quarta-feira 11 anos de prisão domiciliar, determinada em 2006 pelo STJ, num posto da Funai localizado na aldeia Barra Velha.

    "Acompanho esse caso desde o início, desde 2002. Em 2006 levamos Joel pra casa. Há mais de 30 anos defendo indígenas nessas situações. Cacique Marcos Xukuru, Zé de Santa Xukuru, cacique Babau Tupinambá, que estava aqui hoje apoiando Joel. Espero, acima de tudo, que os povos indígenas consigam ter cada vez mais condições de se defender desses abusos", declara a advogada Michael Mary Nolan.

    Emocionados, os Pataxó cantaram e dançaram Toré para receber Joel após o resultado final. Conforme o indígena declarou, "o Brasil não teria dinheiro para pagar a dívida que tem com a gente. E o que exigimos são as nossas terras. Esta é uma memória a todos e todas no presente, aos indígenas do futuro. Nunca deixem de lutar pelos direitos, o tribunal de hoje foi um aprendizado pros nossos povos", encerrou Joel.


    Para Ararawã Pataxó, que discursou após o julgamento, "a absolvição de Joel acontece no mesmo dia em que conseguimos impor uma derrota ao marco temporal (leia mais aqui). Isso mostra como as lutas são as mesmas, aqui ou em qualquer canto do país. Então Joel livre é uma vitória para o movimento indígena, para a busca pelas terras de nossa gente".  

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  • 16/08/2017

    Por oito a zero, STF reafirma direitos originários dos povos indígenas

    Decisão sobre as ACOs 362 e 366 reafirmou os direitos constitucionais dos povos originários e foi comemorada pelo movimento indígena

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  • 15/08/2017

    Marcha Indígena de 2000, o ano que não acabou: Joel Brás Pataxó será levado a Júri Popular nesta quarta, 16

    Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi

     

    “… conscientes de que o Parque Nacional está dentro dos limites de nossa terra, conforme a história de nossos anciãos, decidimos imediatamente RETOMAR o nosso território, neste dia 19 de agosto de 1999, protegidos pela memória dos antepassados, protegidos pelo direito constitucional […] pretendemos transformar o que as autoridades chamam de Parque Nacional do Monte Pascoal em Parque Indígena, terra dos Pataxó, para preservá-lo e recuperá-lo da situação que hoje o governo deixou a nossa terra […] Vamos celebrar os 500 anos em nossa terra, receberemos os nossos parentes de todo o Brasil aqui, no Monte Pascoal, único local possível para construirmos o futuro com dignidade. […] Mais uma vez pedimos o apoio de toda a sociedade brasileira” (Carta do Povo Pataxó, 1999).

     

    A Marcha Indígena 2000, organizada pelo Movimento de Resistência Indígena, Negra e Popular – Brasil Outros 500, não terminou. Pouco mais de 17 anos depois, nesta quarta-feira, dia 16, não se trata de mera coincidência o Supremo Tribunal Federal (STF) julgar o Marco Temporal, interpretação estabelecida para jogar areia nas engrenagens constitucionais das demarcações das terras indígenas, e Joel Brás Pataxó (na foto ao lado) ser submetido pela Justiça federal de Eunápolis (BA) a Júri Popular acusado do homicídio de um pistoleiro durante regresso do povo em retomada a terras tradicionais no extremo sul baiano.   

     

    O movimento que levou caravanas de povos indígenas de todo o país para a Conferência dos Povos Indígenas, entre 18 e 22 abril de 2000, em Santa Cruz Cabrália, um contraponto às comemorações do "descobrimento do Brasil", reafirmou a necessidade destes povos de recuperarem seus territórios tradicionais. Na Bahia, os Pataxó do extremo-sul baiano, Pataxó Hã-Hã-Hãe e Tupinambá iniciaram imensas retomadas já um ano antes, quando se avizinhava os 500 anos – nas terras ocupadas hoje pelos Pataxó, as naus portuguesas se acostaram.

     

    Para além de uma retomada simbólica do Brasil, os povos indígenas, com destaque aos Pataxó, passaram a enfrentar um amálgama de interesses políticos e econômicos que em nada se tratava de mero símbolo da violência colonial; era a sua concretude na virada do século. Joel Brás, nesse momento icônico da história, se levantou como uma das principais lideranças Pataxó e com seu povo retomou áreas tradicionais localizadas na região do Monte Pascoal, município de Itamaraju. Entre 2000 e 2002, o Pataxó passou a ser perseguido por pistoleiros (sofreu inúmeros atentados), polícia, difamado pela mídia e acusações judiciais de roubo, sequestro, cárcere privado, formação de quadrilha e dois homicídios.

     

    Em 2014, Joel tinha sido inocentado de quase todas as acusações, exceto uma. "A primeira acusação de homicídio demorou mais. Houve uma sentença de impronúncia. Por falta de provas, o juiz entendeu que não tinha elementos para acusar Joel da morte de um vaqueiro de uma das fazendas retomadas pelos indígenas. Eram processos sem provas. Joel era um alvo permanente", explica o advogado do indígena, Luciano Porto. Restou, por fim, este último processo, a ser julgado nesta quarta, dia 16, e que envolve uma tentativa de assassinato de Joel, em 8 de dezembro de 2002.

     

    Um pistoleiro na estrada      

     

    A Fazenda Oriente incidia sobre a hoje Terra Indígena Barra Velha, identificada pelo Ministério da Justiça em fevereiro de 2008 com 54.748 hectares, naquela altura área contígua ao Parque Nacional Monte Pascoal, este também sobreposto ao território Pataxó. Em novembro de 2002, a fazenda estava ocupada pelos indígenas em retomada cercada de perigos. Tiroteios, emboscadas e ardis programados contra os indígenas contando com participação de policiais eram comuns.

     

    Assaí Pataxó lembra que em certo dia no final do mês de setembro voltava para a retomada com a família num carro. Em outro veículos outros dois Pataxó, irmãos. "Quando passávamos em frente à Fazenda Santo Agostinho, na estrada de acesso à Fazenda Oriente, cerca de 15 homens armados pararam nosso carro e começaram a atirar. Consegui passar. Então cercaram o carro de Cosme, que por azar começou a falhar. O irmão dele, Adeilton, fugiu no meio do mato e Cosme foi preso", relatou. 


    Em 8 de novembro, um mês antes de Joel Brás Pataxó viver o momento que o leva ao Júri Popular, os indígenas Lídio Matari, Sebastião e Benedito foram presos por porte ilegal de armas em uma operação que teve como objetivo cumprir o mandado de reintegração de posse da Fazenda Oriente. Um filho de Joel, em outra ocasião, chegou a ser alvejado na perna por um tiro de arma de fogo. "Saímos da retomada e nos dirigimos para um local mais ou menos próximo, mas distante uns 7 ou 8 quilômetros da sede da então Fazenda Oriente", conta Joel Brás. O indígena explica que montaram acampamento às margens da BR-498, que liga o Parque Monte Pascoal à BR-101.  

     

    Era um domingo de manhã ensolarada. As crianças brincavam no acampamento sob o olhar de um adolescente, hoje adulto e testemunha ocular do que estava para acontecer. Todos os adultos estavam fora, em atividades para garantir a subsistência da aldeia. Incluindo Joel, que tinha ido para a casa de farinha. O indígena regressava para a aldeia no momento em que José Moraes, apontado como funcionário de segurança da Fazenda Oriente, no entanto conhecido pistoleiro da região, invadiu o acampamento gritando, atirando para o alto e perguntando: "Cadê o Joel! Eu vim pra ver o Joel!". Moraes chegou a bater no adolescente, mas este apenas disse que Joel não estava, sem informar para onde tinha ido.   

     

    Moraes abordou o acampamento vestido com roupas camufladas típicas do Exército, um rifle trançado nas costas, uma pistola na cintura e uma faca "estilo Rambo" pendurada. Depois de aterrorizar o adolescente e as crianças, e percebendo que não conseguiria a informação, decidiu ir embora. Pouco tempo depois, Joel Brás voltou da casa de farinha. Ao chegar no acampamento se deparou com o desespero deixado por Moraes. O adolescente não sabia quem era o seu algoz, e indicou que o sujeito tinha saído na direção da rodovia. Joel partiu atrás não sem a proteção de uma arma de fogo, que ele mantinha quando precisava se deslocar dada a situação de constantes emboscadas a qual estava submetido.  

     

    "Quando eu cheguei na estrada lá estava ele. Quando me viu, logo puxou a arma e apontou pra mim. Foi tudo muito rápido", lembra Joel. Antes de Moraes atirar, o Pataxó desfere um único tiro, certeiro. O pistoleiro cai morto na beira da estrada. Joel Brás não foge. Aciona a polícia e assume ter agido em legítima defesa. Uma pessoa, que vinha caminhando pela estrada, testemunhou todo o acontecido; outra estava em um ponto de ônibus e também viu todo o desenrolar dos fatos. Desde então Joel passou a responder pelo caso como homicídio, mesmo que todas a provas e testemunhas tenham demonstrado legítima defesa. Mesmo se apresentando às autoridades públicas, Joel chegou a ser preso.

     

    A defesa de Joel Brás   

     

    O processo contra o Pataxó é longo. Possui 6 volumes e quase 3 mil páginas. Apenas em 2007 saiu da Justiça Estadual para a Federal, por determinação do Superior Tribunal de Justiça (STJ). "Foi reconhecido não se tratar de um processo de homicídio comum, ou seja, a Justiça já indicou isso por ser um conflito decorrente de disputa por terra indígena. Em novembro de 2009 começa a correr na Subseção Judiciária da Vara Federal de Eunápolis", explica o advogado Luciano Porto. Enquanto esteve na Justiça Estadual, o Pataxó cumpriu períodos encarcerado.

     

    Também por decisão do STJ, em 2006, Joel passou a cumprir prisão domiciliar na sede da Funai mais perto de sua moradia, um posto avançado na aldeia Barra Velha. "O Joel cumpre pena desde então. Lá se vão 11 anos de pena cumprida. Ou seja, temos todas as provas documentais, materiais e de testemunhas de que foi legítima defesa. José Moraes era pistoleiro, e também temos como comprovar isso. Mesmo com tudo isso Joel sempre esteve disponível à Justiça e cumpre a pena. Defendemos que não era necessário levar ao Júri, mas assim decidiu o juiz. Estamos prontos para enfrentar essa última batalha", destaca o advogado.  

     

    Ainda em 2002 o proprietário da Fazenda Oriente, Mauro Rossoni, sustentou à Justiça que José Moraes não era pistoleiro, mas funcionário de sua fazenda. Luciano Porto explica que durante a instrução do processo o gerente da fazenda e funcionários comprovaram que o sujeito era segurança contratado pelo proprietário. "Ele era proibido de sair da fazenda, vivia armado, era um homem experimentado na arte de defender as propriedades. No dia dos fatos, os funcionários dizem que Moares saiu da sede da fazenda alegando que faria o conserto de uma bomba hidráulica a 500 metros da sede da fazenda, que fica uns 7 km de distância de onde Joel estava", pontua o advogado.

     

    Para Luciano Porto, "o contexto todo é a luta pela terra. Joel era uma liderança visada. Tanto que de 2002 para cá sua atuação ficou muito prejudicada. Não só quanto às demandas do povo pataxó, mas Joel é um pai de família. Possui 16 filhos, uma porção de netos. O sofrimento dele nesse período é o da família toda também, além do próprio povo".  Conforme o missionário do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) da equipe Itabuna, Haroldo Heleno, "Joel sob custódia tem seus passos vigiados e limitados, se trata de uma situação insustentável. Isso é muito ruim, ainda mais para um processo com nenhum prova de que ele tenha praticado um crime".

     

    Frente de Lutas e Defesa do Povo Pataxó

     

    O missionário do Cimi lembra do papel desempenhado por Joel na criação da Frente de Lutas e Defesa do Povo Pataxó. "No final da década de 1990 havia a celebração dos 500 anos do descobrimento, como se fosse uma grande festa. Joel se contrapôs a isso. Passou a convencer as demais lideranças das famílias Pataxó para fazer uma luta pelo território. Em abril de 2000 a celebração ufanista e violenta dos governos da Bahia e Federal – violenta porque entrou para a história a truculência da polícia. Em Santa Cruz Cabrália foi o local da grande movimentação. Joel então se destacava nesse período e ajudou a criar a Frente de Lutas e Defesa do Povo Pataxó. Foi o primeiro coordenador. Com isso, ele traz pra si toda a ira e ódio dos invasores do território Pataxó", explica Haroldo Heleno.  

     

    São sete terras indígenas Pataxó no extremo sul da Bahia. Naquele período a luta se concentrava mais em Barra Velha, mas dali por diante passou a envolver cada vez mais indígenas e demandas territoriais. "Até hoje os Pataxó defendem todo um território na região porque foram  incentivados, animados e motivados pelo exemplo de Joel Brás. Hoje tem Comexatiba, Coroa Vermelha. São áreas que seguem a briga com o eucalipto, os latifúndios, a exploração do turismo e a sobreposição de parques", destaca o missionário, que ainda lembra que o que Joel sofre lideranças como cacique Babau Tupinambá, Aruã Pataxó, Mandy Pataxó e Nailton Pataxó Hã-Hã-Hãe, entre outros, também estão submetidos.

     

    A antropóloga Jurema Machado, professora da Universidade Federal do Recôncavo Baiano, conhece Joel Brás desde 1999 e lembra da importância do movimento em que a liderança estava inserida; também das consequências que acabaram marcando a vida de Joel. "Os Pataxó Hã-Hã-Hãe, com os quais eu iniciava uma relação de pesquisa naquele mesmo ano, também participaram da retomada do Monte Pascoal. E isso desencadeou uma série de retomadas na Reserva Caramuru-Paraguassu. O Monte foi setembro, e lá no Caramuru, mais especificamente a área conhecida hoje como Milagrosa, em novembro do mesmo ano. E acho que aí o poder local com a ajuda inequívoca do judiciário, retoma uma prática muito antiga: transformar indígena em bandido".

     

    Conforme a antropóloga coletou durante essas quase duas décadas de pesquisa, há farta documentação histórica que atesta o caráter de ‘antiguidade’ deste expediente contra as lideranças indígenas. "São documentos emitidos por juízes, delegados, alguns padres missionários, que via de regra se queixavam ao presidente da província – estou falando de documentos da Bahia do século XIX —  de que em determinada localidade, geralmente um aldeamento extinto cujos índios teimavam em não sair das terras, e os interessados naquelas terras queriam os retirar à força, os índios “roubavam gado, perturbavam a ordem local”, “cometiam crimes de assassinatos”. “Eram uns facínoras!”. Ou seja, a prática dos grandes interessados em roubar as terras é muito colonial. Aliás o colonialismo se atualiza com as mesmas práticas. Parece ambíguo, mas acho que é assim mesmo", argumenta.

     

    Baetinga, Samado, Zabelê, Dona Josefa

     

    O Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro (Pineb) reuniu, através Fundo de Documentação histórica-manuscrita sobre índios na Bahia (FUNDOCIN), explica a professora Jurema Reunimos, uma série de documentos recolhidos a partir do Arquivo Público do Estado da Bahia, da série Judiciário, onde se recompôs o caso do índio Baetinga, da aldeia de Pedra Branca. "Baetinga era um dos líderes dos Kariri-Sapuyá, que resistiu por quase 30 anos, em meados do século XIX, para não perder as terras do antigo aldeamento de Pedra Branca, extinto pela lei de terras. Pois os poderosos da região não mediram esforços para fazer com a luta dos Kariri-Sapuyá fosse invisibilizada, e que as ações de resistência fossem vistas como crimes cometidos por um indivíduo, no caso Baetinga. Ou seja, se retira completamente do contexto, da luta de um povo, para imputar a um só indivíduo. Essa é a estratégia da criminalização. E acredito que esse ardil se atualiza agora no caso de Joel Brás, de Babau Tupinambá, e tantos outros", analisa.

     

    No caso do extremo sul da Bahia, a antropóloga destaca que se trata do "Estado e sua polícia cuidando da propriedade privada. Eu acho muito importante quando a gente analisa a coisa por inteiro, sabe, quando a gente pensa no sul da Bahia como um todo, e articula numa luta só Pataxó Hãhãhãe, Tupinambá e Pataxó. Porque é assim que o capital faz". Jurema, a todo momento, coloca em diálogo os Pataxó e os Pataxó Hã-Hã-Hãe em suas análises. Lembra de uma conversa com um dos filhos de Samado Santos Pataxó Hã-Hã-Hãe, Diógenes Santos, preso durante a ditadura militar no reformatório Krenak, centro de tortura para indígenas que contestavam poderes locais.  

     

    "Ele me contava a perseguição sofrida por Samado pelos fazendeiros invasores da TI Caramuru. Anos 60 e os fazendeiros conseguem mandar preso pra Krenak o Samado e o Diógenes. Samado era teimoso, e quando os fazendeiros achavam que não tinha mais índios naquelas terras, olha as roças de Samado brotando em uma serra qualquer. Aí os fazendeiros iam lá e fogo nas roças, Samado ia pra outro canto. Enfim, parafraseando um colega meu, o Hugo Prudente, pra quem saber andar, andar na terra, andar no território, retomar é isso", conta Jurema em interface ao contexto que leva Joel a esta situação de criminalização.

     

    No entanto, para a professora não se trata apenas de enfrentar uma luta contra os fazendeiros locais. "Os Pataxó enfrentam e desafiam o Estado por causa das invasões em seu território dos parques, primeiro de Monte Pascoal e depois do Parque do Descobrimento. A advogada Juliana dos Santos, que é Pataxó de Coroa Vermelha, escreveu um potente trabalho sobre a luta de Dona Josefa e Zabelê. Dona Josefa, nos anos 60 e 70, fazia roça na área do parque do Monte Pascoal porque não se conformava que aquela terra não seria mais dela e que nada ali poderia ser plantado. Pois o IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Ambiental), que era o órgão que cuidava das áreas de proteção ambiental nessa época, levava a índia pra delegacia. Ou seja…", afirma.

     

    Em 2003, Jurema passa a fazer parte da Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAI), onde permaneceu até 2009. "Nesse momento eu me aproximei de Joel, Marlene (esposa de Joel), e passei a acompanhar isso um pouco mais diretamente. Eu costumo dizer para minha família e colegas na universidade, que chegam pra me questionar sobre o que sai na mídia, “mas ele matou mesmo?”, eu respondo: – eu sento, dou risada, choro, como junto, e troco afeto com eles como eu faço com vocês. Eu entro na casa, eu sento na mesa e bebo café como faço na sua casa, também. E eu não entro na casa de qualquer um!".

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  • 15/08/2017

    Preocupados com invasões, povos indígenas de Rondônia reforçam luta contra marco temporal

    Por Guilherme Cavalli e Tiago Miotto, da assessoria de comunicação

    Nas últimas semanas, indígenas de Rondônia estiveram em Brasília, participando das mobilizações dos povos indígenas em todo o país contra a ameaça do marco temporal. Com diversas terras ainda sem demarcação e enfrentando invasões, loteamento e a pressão de fazendeiros, madeireiros e garimpeiros, os indígenas se preocupam com a possibilidade do marco temporal legalizar as invasões e a grilagem sobre seus territórios.

    “O marco temporal é um mecanismo para que o Estado brasileiro não cumpra com seu dever de fazer a reparação dos danos causados para os povos indígenas. Isso vai agravar muito a situação dos povos indígenas no Brasil, principalmente os povos que estão na luta pela demarcação dos seus territórios”, avalia José Luís Kassupá, coordenador da Organização dos Povos Indígenas de Rondônia, Noroeste do Mato Grosso e Sul do Amazonas (Opiroma).

    Representantes da Opiroma e da Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia (Agir) participaram do lançamento da campanha “Nossa história não começa em 1988” e realizaram uma série de reuniões com autoridades em Brasília, pedindo a demarcação de suas terras e a fiscalização das invasões sobre as terras indígenas de Rondônia.

    Em fevereiro, teve grande repercussão a denúncia de invasões e loteamentos dentro da Terra Indígena (TI) Uru Eu Wau Wau. Reportagem do portal Amazônia Real apurou que as Secretarias de Agricultura (Seagri) e de Desenvolvimento Ambiental (Sedam) do governo do estado de Rondônia atuaram ativamente na distribuição de lotes dentro da área demarcada, participando inclusive de reuniões realizadas dentro da terra indígena, junto com o vice-prefeito do município de Ariquemes (RO), Lucas Follador, e um representante do senador Acir Gurgacz (PDT-RO).

    “O marco temporal praticamente legaliza as invasões dentro das terras indígenas. É o caso do estado de Rondônia, nós temos loteamentos feitos dentro das Terras Indígenas Uru Eu Au Au, Karitiana, Karipuna, entre outras terras indígenas”, prossegue o indígena Kassupá. “Há mais de trinta anos estamos lutando para retirar os invasores de dentro das terras indígenas, e o marco temporal legaliza isso e outras questões também, como as invasões, o desmatamento dentro das terras indígenas”.

    Em documento entregue aos parlamentares durante audiência pública na assembleia legislativa de Rondônia, em 12 de julho, a Opiroma pediu aos deputados e deputadas para “fiscalizar as ações do Executivo e suas autarquias envolvidas na promoção ou facilitação da invasão da Terra Indígena Uru Eu Wau Wau ou unidades de conservação”.

    O documento da organização indígena cita um levantamento realizado pela Associação Jupaú e pela Associação Etnoambiental Kanindé e entregue ao Ministério Público Federal (MPF) em janeiro. Segundo a apuração das organizações, há 313 Cadastros Ambientais Rurais (CAR) sobrepostos a terras indígenas no estado de Rondônia. A grande maioria – 275 – sobrepõe-se à TI Uru Eu Wau Wau, mas há também 15 registros de sobreposição à TI Massaco; 12 na TI Karipuna; 6 na TI Kaxarari; 2 na TI Karitiana; além de um na TI Sagarana, um na TI Sete de Setembro, um na TI Aripuanã e um na TI Lage e Ribeirão.

    Estes cadastros, segundo a Opiroma, estavam pendentes e seriam reavaliados em agosto pelo governo do estado. Os indígenas pediram aos parlamentares estaduais que solicitassem o cancelamento destes registros.

    Invasões legalizadas

    O registro no CAR pode ser feito pelos próprios proprietários e, embora não seja um documento fundiário, há diversas denúncias de casos em que o CAR tem sido utilizado para legalizar áreas griladas, empregado como uma espécie de comprovação de ocupações ilegais.

    Segundo levantamento do De Olho nos Ruralistas, há cerca de 15 milhões de hectares registrados no CAR sobre Terras Indígenas ou Unidades de Conservação (UCs). Rondônia é o sexto estado com maior número de registros sobrepostos a terras indígenas: são 521.720 hectares cadastrados sobre terras dos povos tradicionais.


    Levantamento do observatório De Olho nos Ruralistas

    Este dado, entretanto, é parcial: o cadastramento ainda está em aberto, e o fato de que muitas terras ainda não tiveram o estudo de identificação e delimitação concluído pela Fundação Nacional do Índio (Funai) inviabiliza a comparação com as sobreposições. Segundo dados do relatório Violência contra os Povos Indígenas – 2015, são pelo menos 348 terras ainda sem nenhuma providência para sua demarcação.

    Em Rondônia, há 22 terras indígenas ainda sem estudo pela Funai e outras três em processo de identificação e delimitação. Embora o Estado ainda não tenha o registro oficial da extensão e da localização destas terras, os indígenas conhecem os limites de seus territórios tradicionais e denunciam a realização de loteamentos sobre estas áreas.
    É o caso da TI Puruborá do Rio Manuel Correia, uma das três áreas em estudo pela Funai, mas ainda sem os limites definidos pela fundação.

    “Já houve dois estudos na nossa terra, e com esse marco temporal já sabemos que não vai acontecer essa demarcação. Ela está toda loteada, porque depois do estudo o Programa Terra Legal deu título para os fazendeiros que lá se encontram. E se esse marco temporal passar mesmo – estamos pedindo a deus que não aconteça – nós, Puruborá, assim como vários outros povos no estado de Rondônia, já sabemos que não vamos ter a terra demarcada. E essa é a dor que a gente sente, porque nós não temos a terra demarcada, mas lá vivemos. Vamos fazer o quê? Levar os nossos filhos e filhas para a cidade?”, questiona a liderança Hozana Puruborá.

    “O marco temporal quer apagar a nossa história”

    “Se for aprovado, o marco temporal estará apagando a história dos povos indígenas no Brasil”, resume José Luís Kassupá. A tese político-jurídica defendida pelos ruralistas, segundo a qual os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras sob sua posse em 5 de outubro de 1988, teria consequências especialmente graves para os indígenas de Rondônia, que sofreram com sucessivas políticas de extermínio e confinamento em áreas diminutas, em nome da expansão da fronteira agrícola no estado e da abertura de projetos de mineração e linhas telegráficas.

    “O marco temporal vem no sentido de validar todo o processo que aconteceu no período da Ditadura Militar, de agrupar povos indígenas em uma terra indígena só. Você tem exemplos aí no estado de Rondônia, onde dentro de uma única terra habitam doze, dez, oito povos dentro de uma terra indígena. Então, o marco temporal vem fazer exatamente isso, e a gente já sofreu muitas violações”, prossegue o José Luís. Essas políticas de confinamento ajudam a explicar o fato de que, hoje, para os cerca de 60 povos vivendo nesse estado, existam apenas 20 áreas demarcadas.

    Aumento dos conflitos

    “Nós vivemos uma situação de completo abandono e, sobretudo, de completa impunidade”, afirmou à Rádio Vaticano a coordenadora do Cimi Rondônia, Laura Vicuña, denunciando as invasões de terras indígenas no estado.
    “O cenário indigenista vivido no estado de Rondônia, Noroeste do Mato Grosso do Sul e Sul do Amazonas é preocupante, devido aos constantes retrocessos nos direitos indígenas, de modo especial as contínuas invasões dos territórios por grupos econômicos inescrupuloso”, corrobora a nota divulgada pelo Regional Noroeste da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

    Na avaliação do secretário executivo do Cimi, Cleber Buzatto, como o marco temporal legaliza e legitima as posses de terras usurpadas dos povos indígenas até a data da promulgação da Constituição, ele se constitui numa forte sinalização do Estado de que o esbulho das terras indígenas é uma prática vantajosa.

    “A aprovação do Marco Temporal colocaria combustível nas invasões de terras indígenas em Rondônia e espalharia uma nova onda de esbulho territorial contra os povos no Brasil inteiro”, avalia Buzatto.

    “Esse marco temporal está trazendo na nossa mente que vai acontecer isso, vai abrir as portas para que tudo que há de ruim para os povos indígenas possa entrar nas nossas terras. Grilagem, garimpo, retirada de madeira, tudo isso pode aumentar dentro das terras demarcadas, e pior ainda no caso das não demarcadas”, sintetiza Hozana Puruborá.

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  • 15/08/2017

    Comissão de pesquisadores da UNB divulga documento com reflexões e ponderações sobre julgamentos no STF nesta quarta-feira



    Uma comissão composta por professores doutores das áreas das Ciências Sociais, do Direito e das Ciências Humanas da Universidade de Brasília – UNB e pesquisadores das questões indígenas e quilombolas no Brasil divulgou um memorial que apresenta ponderações, reflexões e preocupações da Comunidade Científica sobre questões que serão colocadas em julgamento no Supremo Tribunal Federal – STF, na próxima quarta-feira, 16, referentes à demarcação e titulação de terras indígenas e quilombolas, e à obrigação constitucional e das convenções internacionais de demarcá-las. Essas ações que estão na pauta no STF colocam em risco os direitos e a sobrevivência dos povos tradicionais brasileiros.

    Leia o memoria aqui

    No período da tarde, será julgada a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 3.239, apresentada pelo Partido da Frente Liberal – PFL (atual Democratas – DEM) que questiona o Decreto 4.887/2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

    No mesmo dia, também estão em pauta três Ações Civis Originárias (ACO) que colocam em risco a demarcação dos territórios tradicionais indígenas e o futuro desses povos. As ACOs 362 e 366, ajuizadas pelo Estado do Mato Grosso em face da União Federal e da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, tratam, respectivamente, da demarcação da área referente ao Parque Nacional do Xingu e de pretensa indenização por desapropriação de terras incluídas nas Reservas Indígenas Nambikwára e Parecis e das áreas a elas acrescidas. Já a ACO 349 foi apresentada pela FUNAI em face do Estado do Rio Grande do Sul (RS) e pretende a declaração de nulidade dos títulos de propriedade de imóveis rurais concedidos pelo governo do RS incidentes sobre área indígena ocupada por índios Kaingang, bem como a retorno deste povo na  posse das referidas terras.

    Comissão

    Para a comissão de pesquisadores/as da UNB, o argumento sobre o  marco temporal foi vencido na Constituinte, havendo impossibilidade de revisão pelos poderes constituídos. Sustentam que é necessário atentar para as formas concretas da ocupação tradicional, uma vez que, na ausência dos instrumentos metodológicos adequados, elas se tornam invisíveis sob o peso de conceitos de desenvolvimento da forma como a sociedade nacional a concebe.  Argumentam, ainda,  que a ocupação tradicional está fundada na memória em que se entrelaçam valores morais, conhecimento ecológico, regras sociais, que é por sua vez reiterada prática e narrativamente nas formas concretas e coletivas de habitação e uso.

    Assim, conforme os pesquisadores, a autodeclaração é um direito fundamental e se entrelaça à  memória e a história, e não podem ser fraudadas, tornando o receio estatal vazio de evidência empírica. Sustentam ainda que negar a autodeclaração como critério para a  titulação das terras remanescentes de quilombos é negar a normatividade da Constituição de 1988 e da Convenção OIT n. 169/1989 relativamente ao que consagra sobre os seus direitos culturais e territoriais.  Da mesma maneira, em relação aos povos indígenas, restringir o direito às terras que tradicionalmente ocupam é, por consequência, negar o direito a identidade étnica, da qual a  autodeclaração é o ato que a exterioriza. As implicações são, aqui sim, concêntricas.

    Juntamente com o memorial foi elaborado um dossiê com as principais referencias de pesquisas, entre livros e artigos científicos, sobre os assuntos em discussão, na área das ciências sociais, ciências jurídicas e ciências humanas, que será disponibilizado aos Movimentos Indígena e Quilombola e aos membros do Poder Judiciário.

    O documento é assinado pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Movimentos Indígenas, Políticas Indigenistas e Indigenismo (LAEPI) do Departamento de Estudos Latino-Americanos (ELA)/UnB; pelo Laboratório de Antropologias da T/Terra (T/Terra) do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/DAN/ UnB e pelo Grupo de Pesquisa em Direitos Étnicos (MOITARÁ) da Faculdade de Direito/UnB.

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  • 14/08/2017

    TI Krikati sofre com assassinato, suicídios, invasões e decisão da Justiça Federal por novo laudo demarcatório


    Encontro dos povos indígenas do Maranhão. Crédito: Pablo Albarenga


    Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi

    Nogueira Krikati talvez nem tenha percebido a morte levá-lo. Dormia numa rede, amarrada entre duas árvores do quintal de uma casa no bairro Vaquejadas, em Montes Altos (MA), quando dois indivíduos não identificados desferiram pauladas em sua cabeça. Era manhã do dia 1 de julho.

    O assassinato de Nogueira encerrou os primeiros seis meses do ano com algo nunca visto entre a população de 1200 indígenas do povo Krikati: 15 mortes relacionadas a causas inseridas exclusivamente no duríssimo contexto a que estão submetidos; três suicídios, um assassinato e 11 falecimentos decorrentes do alcoolismo.

    Para a Polícia Civil, o caso de Nogueira ainda está sob investigação. Duas hipóteses são ventiladas: a homologação da Terra Indígena Krikati envolve uma área de Montes Altos, gerando um ambiente hostil aos indígenas; ou seja, um crime de ódio. Em outra linha, Nogueira teria flagrado ações de madeireiros na terra indígena.

    "Estamos num momento crítico, com uma decisão judicial que acirrou o conflito e as ameaças contra o nosso povo", explica Edilena Krikati. A indígena se refere a uma decisão de junho da Primeira Vara da Justiça Federal de Imperatriz (MA) onde um novo laudo pericial deverá ser feito para comprovar se a área da aldeia Arraia é tradicional.  

    Trata-se do Bloco F da demarcação. Nele estão mais de 240 posseiros e fazendeiros de gado; uns ocupantes de boa-fé e outros não. A Fundação Nacional do Índio (Funai) começou a indenizá-los para completar a desintrusão, e muitos já tinham se retirado – a Terra Indígena Krikati está registrada, etapa posterior à homologação, com 144.775 hectares entre os municípios de Montes Altos, Sítio Novo e Amarantes (Cimi, 2017).  

    Na terra indígena vivem ainda indígenas Tenetehar/Guajajara. "Com a decisão esses posseiros e fazendeiros que tinham saído começaram a voltar, mesmo os indenizados, e ganharam força. Ameaças, agressões e invasões aumentaram muito", explica Edilena Krikati. No último final de semana, o cacique André Krikati, da aldeia Arraia, sofreu nova ameaça.

    Distante cerca de 200 metros da aldeia, um bar reúne diariamente toda a gente que costuma praticar violências contra os Krikati. "Entraram na aldeia e xingaram, ameaçaram. Tememos pelas mulheres e crianças. Todo final de semana acontece a mesma coisa", relatou na manhã desta segunda-feira, 14, o cacique André.

    O Ministério Público Federal (MPF), a Funai e a Polícia Federal foram comunicados dos acontecimentos. Pouco antes do assassinato de Nogueira, dois indígenas adultos e quatro crianças foram pescar no rio Arraia, o maior que cruza o território. Homens armados apareceram e os expulsaram a tiros. Ninguém ficou ferido.

    "Impedem a gente de pescar, pegar frutos, caçar, fazer a retirada de embira para adornos e o babaçu, que a gente coleta também", destaca Edilena. As fazendas incidentes na terra indígena são de gado, o que tem gerado desmatamentos associados à exploração madeireira.

    Funai sucateada

    Os Krikati denunciam ainda o completo sucateamento da Funai. Na Coordenação Técnica Local (CTL) de Montes Altos já não há mais servidores. Conforme os autos processuais, o órgão não ajuizou ação pedindo a saída dos invasores da terra, sobretudo os já indenizados, o que para os Krikati se tornou um argumento a mais para que a Justiça Federal mantivesse a determinação por um novo laudo.

    "Agora os políticos ligados aos fazendeiros se reuniram com o atual presidente da Funai (o general Franklimberg Ribeiro de Freitas). Nas ameaças eles fazem questão de dizer. E cada um destes fazendeiros ajuizou ações pra rever a demarcação. A Funai foi acionada pela Justiça, mas não representou", pontua Edilena Krikati.

    A execução de empreendimentos dentro da terra indígena também é alvo de protesto dos Krikati. A rodovia MA-280, as linhas de distribuição de energia da Companhia Energética do Maranhão, cabos de fibra óptica da OI e linhões da Eletrobrás rasgam o território sem gestão do órgão indigenista para políticas de mitigação.

    "Tudo isso envolve um processo de 20 anos de demarcação desta terra indígena sem conclusão. E agora estamos prestes a retroceder do que conseguimos conquistar. Não tínhamos vivido isso, de 15 Krikati morrerem do jeito que morreram. Podemos dizer que hoje só a Sesai tem alguma atuação na terra", afirma Edilena.

    O desafio dos Krikati agora é mover a Secretaria Especial de Saúde (Sesai) para uma gestão mais voltada à saúde mental. Com alcoolismo, suicídios e a pressão permanente de invasores sobre as seis aldeias que compõem o território, os Krikati temem por mais mortes advindas de tais dissociações.

    Em Amarante, uma Guajajara é assassinada

    Também natural da Terra Indígena Krikati, Jaqueline Lopes de Souza Guajajara, de 25 anos, foi assassinada no dia 26 de julho, em Amarante, a golpes de faca. Conforme o Boletim de Ocorrência, a jovem foi morta por um homem e uma mulher que a surpreenderam de moto.  

    Pouco antes, a indígena foi abordada pelo mesmo casal em um bar e xingada, o que teria iniciado uma discussão. De acordo com testemunhas, outros indígenas que acompanhavam Jaqueline foram agredidos pelo homem com golpes de capacete. A polícia afirma ter identificado os assassinos, mas estes se encontram foragidos.  


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  • 14/08/2017

    STF poderá sustar o “marco temporal”?


    Mobilização contra o Marco Temporal em Fortaleza (CE). Crédito da foto: Renato Santana/Cimi


    Por José Afonso da Silva e Manuela Carneiro da Cunha*

    Para coroar uma campanha enganosa, a Advocacia-Geral da União (AGU) emitiu um parecer que o presidente Michel Temer logo aprovou, publicado no dia 20 de julho. Trata-se de ressuscitar, pela terceira vez, a portaria 303 de 2012 da AGU, tão controvertida que por duas vezes teve de ser suspensa.

    Não é por acaso que ela ressurge agora: faz parte do pacote de concessões de Temer aos interesses da frente ruralista. Os índios estão novamente sendo rifados para garantir a sobrevivência provisória do presidente no cargo.

    O parecer obriga toda a administração pública federal a cumprir as "condicionantes" que constaram do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a célebre demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em 2009.

    Para fundamentá-lo, a AGU atribuiu ao STF o propósito de, naquele julgamento, ter tido a "deliberada intenção" de definir a interpretação dos artigos da Constituição Federal que tratam da demarcação das terras indígenas.

    Dessa forma, tal entendimento deveria ser aplicado "para todo e qualquer processo de demarcação de terras indígenas no Brasil".

    Isso é um engano: em várias ocasiões, ministros do Supremo que haviam participado do julgamento de 2009 afirmaram que as condicionantes da terra indígena de Raposa Serra do Sol eram específicas daquele caso e não vinculantes.

    Em fevereiro deste ano, o ministro Marco Aurélio reiterou esse mesmo entendimento e foi seguido pela primeira turma do STF. A "deliberada intenção" de generalizar as condicionantes da Raposa Serra do Sol, apregoada pela AGU, não pode, portanto, se sustentar.

    O que ocorre é que a segunda turma do STF, sob a liderança do ministro Gilmar Mendes, tem dado grande publicidade a decisões que tomou baseadas em uma interpretação a que se convencionou

    chamar de "marco temporal".

    Trata-se de interpretar abusivamente que os direitos territoriais dos índios assegurados pela Constituição de 1988 só se aplicam aos que estavam em suas terras no dia da promulgação de nossa lei maior, 5 de outubro de 1988.

    Em parecer circunstanciado, um de nós, José Afonso da Silva, refutou por inconstitucionais esse "marco temporal", a proibição de revisar terras demarcadas para corrigir erros, e uma outra tese que se acrescentou às demais: a exigência imposta àqueles índios que tivessem sido expulsos de suas terras.

    Para fazerem valer um direito de retorno, teriam de comprovar ter resistido pela via judicial ou pela força. Como, até 1988, os índios não podiam entrar em juízo, e como não tinham meios de enfrentar quem os despossuía, essa condição era simplesmente impraticável.

    É significativo que tenha sido a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) a propor em 2010 ao STF a edição de uma súmula vinculante para "afirmar que as terras ocupadas por indígenas em passado remoto… são especialmente aquelas que, em 5 de outubro de 1988, não apresentavam mais ocupação por índios e que o processo de demarcação deve atentar para a necessidade de comprovação da posse da área nesta data".

    Também é eloquente a decisão da comissão de jurisprudência do STF que arquivou a proposta porque a "súmula a respeito do assunto dependeria da existência de uma inequívoca consolidação jurisprudencial da matéria no exato sentido pretendido pela CNA". O esforço da segunda turma do STF foi precisamente de tentar construir essa jurisprudência.

    No próximo dia 16 de agosto, é plausível que o tribunal pleno do STF venha a se pronunciar sobre o "marco temporal". Esperamos que o plenário tenha a sabedoria de restabelecer a justiça para com os povos indígenas.

    JOSÉ AFONSO DA SILVA é professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP

    MANUELA CARNEIRO DA CUNHA é antropóloga e professora titular aposentada da Universidade de Chicago e da USP


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  • 10/08/2017

    “Nós já estamos morrendo através do marco temporal”

    Por Guilherme Cavalli e Tiago Miotto, da assessoria de comunicação do Cimi

    Em Brasília, as mobilizações do Dia Internacional dos Povos Indígenas, 9 de agosto, foram encerradas com uma grande reza Guarani e Kaiowá em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF). Os indígenas estão preocupados com o risco da corte adotar a tese do marco temporal em julgamentos sobre demarcação de terras indígenas no dia 16 de agosto. Os Guarani e Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, são um dos povos que podem ser mais duramente afetados por esta medida.

    Saiba mais sobre a campanha Nossa história não começa em 1988

    Veja o mapa das mobilizações do Dia Internacional dos Povos Indígenas

    “Esse marco temporal é um assassino para nós, povos indígenas. Por isso que estamos aqui, para pedir para os ministros para não aprovar isso”, afirma Leila Rocha Guarani Nhandeva, liderança do tekoha Yvy Katu/Porto Lindo.
    Leila integra a delegação de Guarani e Kaiowá que, junto a indígenas dos povos Kaingang, Jaminawa, Apolima-Arara e Apurinã participaram de uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) que debateu as recomendações recebidas pelo Brasil na Revisão Periódica Universal (RPU) da Organização das Nações Unidas (ONU). Em maio, 29 países manifestaram preocupação com violações de direitos indígenas por parte do Estado brasileiro.

    Apesar de terem sido convidados para a atividade, os indígenas foram barrados pela segurança, que não queria permitir o ingresso com maracás, e esperaram muito tempo até terem sua entrada liberada, numa situação que já se tornou praxe em Brasília. Ao fim da audiência, todos se juntaram aos rezadores Guarani e Kaiowá que já faziam um ritual em frente ao STF.


    Rezadores Guarani e Kaiowá em frente ao STF. Foto: Tiago Miotto/Cimi

    “Esperamos que aqueles onze ministros pensem para assinar esse papel contra a raiz deles. Se precisar, eu me ajoelharia na frente da ministra Cármen Lúcia, pedindo por favor para não aprovar esse marco temporal”, afirma Leila, explicitando a preocupação dos Guarani e Kaiowá com a possibilidade de que os ministros do STF adotem a tese do marco temporal nos julgamentos do dia 16 de agosto, quando a corte deverá julgar, em plenário, três ações envolvendo a demarcação de terras indígenas.

    Os indígenas estão mobilizados em todo o país contra a adoção desta tese, defendida pelos ruralistas, segundo a qual os indígenas só teriam direito às terras que estavam sob sua posse em 1988.

    “Antes, nós fomos expulsos dos nossos tekoha [lugar onde se é]. Nós fomos trazidos numa reserva, que é um chiqueiro. Porque a gente não está cabendo mais. Por isso que nós, indígenas Guarani Kaiowá, estamos saindo daquele chiqueiro e indo novamente cada um pro seu tekoha”, reage a liderança Guarani. “Nós sabemos onde morreu nosso antepassado, nosso tataravô, nosso bisavô, nosso pai. Nós estamos indo de novo lá e lá nós vamos morrer”.

    A morte, para os Guarani e Kaiowá, não é apenas uma figura de linguagem. Dos 891 assassinatos de indígenas contabilizados pelo Cimi entre 2003 e 2015, 426, quase metade, ocorreram no Mato Grosso do Sul. A perspectiva de não demarcação de suas terras, uma consequência direta da aprovação do marco temporal, traz o risco do agravamento dos conflitos e da violência.

    “Através daquele marco temporal, nós já estamos morrendo bastante. Indígena que morre pela mão do ruralista não foi punido até hoje. Então, esse marco temporal para nós é um assassino de verdade”, lamenta Leila.


    Reza Guarani e Kaiowá em frente ao STF. Foto: Tiago Miotto/Cimi

    Sua preocupação reflete o processo de judicialização generalizada de processos de demarcação de terras indígenas, por parte de fazendeiros, que já ocorre naquele estado. “O marco temporal ainda não foi consolidado, mas já está valendo como lei no Mato Grosso do Sul”, explica Eliseu Lopes Guarani Kaiowá.

    Mesmo contrariando o STF, que ainda não tem uma posição definitiva sobre o assunto, muitas demarcações estão sendo suspensas em primeira e segunda instâncias da Justiça com base nesta tese, como é o caso da Terra Indígena (TI) Dourados-Amambaipeguá I, dentro da qual ocorreu o massacre de Caarapó, em junho de 2016.

    A própria TI Yvy Katu/Porto Lindo, no município de Japorã (MS), onde vive Leila, chegou a ter sua demarcação questionada na Justiça, com base no marco temporal, por um fazendeiro que pedia a suspensão do processo demarcatório, alegando que os indígenas não estavam de posse da área em 5 de outubro de 1988. O recurso foi rejeitado pelo pleno do STF em 2016, num importante precedente contra o marco temporal.

    O tekoha também não escapa da realidade de violência extrema e vulnerabilidade vivenciados pelos Guarani e Kaiowá em todo o Mato Grosso do Sul. No início de agosto, dois corpos foram encontrados enterrados na fazenda Dois Irmãos, no município de Iguatemi, próxima de Yvy Katu, e identificados pelos indígenas como pertencentes a Gabriel Martins e Fabio Vera, desaparecidos da área há mais de um ano.

    Apesar da situação de confinamento e de extrema violência contra os indígenas, são recorrentes os discursos ruralistas de que os indígenas querem demarcar o Mato Grosso do Sul inteiro. “Eu sei que o Mato Grosso do Sul inteiro é nosso, mas nós não queremos todo. Nós queremos só um pedacinho de terra, nossos tekoha”, rebate Leila Guarani.


    Reza em frente ao STF. Foto: Tiago Miotto/Cimi

    Em frente ao STF, os rezadores e rezadoras permaneceram concentrados, executando suas rezas e cantos até o sumiço dos últimos raios de sol. O marco temporal representa, para os indígenas, algo muito mais grave e muito mais profundo do que uma simples tese política.

    O pássaro pousa nos galhos da árvore, explica Leila, mas para que eles possam servir de pousada, a árvore precisa ter raízes firmes. “Nós somos a raiz de vocês. Se nós morrermos, vocês também vão morrer, porque nós somos a raiz”, prevê. Com semblante sério, a indígena questiona: “Dia 16 vai ser o julgamento aqui. Se for aprovado, quem vai se responsabilizar por essas crianças que vão ficar órfãs?”


    Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

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  • 09/08/2017

    Cerca de 2.500 indígenas foram às ruas de Fortaleza contra o Marco Temporal; mobilizações ocorrem em ao menos nove estados


    Crédito das fotos: Renato Santana/Cimi


    Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi

    Um estado com 32 mil indígenas, oriundos de 14 povos e distribuídos em 23 terras indígenas, sendo que apenas uma teve o procedimento demarcatório concluído. Na II Marcha da Terra dos Povos Indígenas do Ceará, ocorrida na manhã desta quarta-feira, 9, tal contexto adensou uma semana de jornadas Brasil afora na campanha Nossa História Não Começa em 1988! #MarcoTemporalNão.

    Saiba mais sobre a campanha Nossa história não começa em 1988! #MarcoTemporalNão!

    Eliane Tabajara, coordenadora regional da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), mandou um recado para Brasília em discurso inflamado: "Se o governo federal pretende retirar os direitos dos povos indígenas, saiba que já está em guerra. Não vamos aceitar. Hoje estamos na rua por nossos direitos e pela democracia". Cerca de 2.500 indígenas estiveram nas ruas de Fortaleza nesta quarta, conforme as lideranças do movimento.




    Mobilizações aconteceram também em Guaíra (PR), Porto Alegre (RS), Boa Vista (RR), Manaus (AM), São Luís (MA), Brasília (DF), São Paulo (SP) e Rio de Janeiro (RJ) – veja aqui a cobertura completa. Todos os protestos marcam o Dia Internacional dos Povos Indígenas. "Queremos que esta data seja de luta. Temos um governo ilegítimo enriquecendo a bancada ruralista e o agronegócio enquanto destrói a Funai (Fundação Nacional do Índio) e adota o Marco Temporal", ataca Thiago Anacé.

    O Marco Temporal se trata de uma tese político-jurídica inconstitucional, segundo a qual os povos indígenas só teriam direito às terras que estavam sob sua posse em 5 de outubro de 1988. "Estamos vivendo um retrocesso. As medidas do governo Temer provocam isso. O Marco Temporal aqui no Ceará é como voltar ao discurso de que aqui não existem índios", afirma Antônia da Silva Santos, a Toinha Kanindé.




    A marcha rumou para o Palácio da Abolição, sede do Governo do Ceará. Lá uma comissão com 20 lideranças indígenas foi recebida pelo chefe da Casa Civil, a quem foi entregue uma carta. "Queremos que o governador Camilo Santana interceda junto ao governo federal em favor das demarcações. Do estado reivindicamos políticas públicas na saúde e a criação da categoria de professor indígena", diz Weibe Tapeba.

    Os Anacé levaram demandas onde o governo do Ceará está comprometido, inclusive como violador de direitos humanos, no caso da remoção de parte das aldeias impactadas pelo Complexo Portuário do Pecém para a Reserva Tábuas dos Anacé. "Exigimos a conclusão das obras. Existe um passivo. O projeto de remoção possui etapas atrasadas. Há pendências no Plano Básico Ambiental", explica Thiago Anacé.  




    Para o indígena existe um "casamento entre os Três Poderes da República" para acabar com o direito territorial. Quem banca este casamento é "o governo ilegítimo e golpista do senhor Michel Temer. Para salvar o próprio pescoço, esse senhor perdoou 12 bilhões de dívidas do agronegócio e instalou o Marco Temporal", critica o Anacé. O indígena acredita que apenas as mobilizações podem reverter o quadro adverso.  

    "Nessa década de 80 a gente estava sobre a terra, mas não tínhamos passado por estudo antropológico. Nem reconheciam a gente como índio, muitas vezes. Não dá pra aceitar esse Marco Temporal porque ele é cruel. Os povos indígenas que foram reconhecidos em 2010, 2015 estavam nas terras e agora, vão ter que sair delas? Não aceitamos", destaca Preá Jenipapo-Kanindé.


      


    Em carta política da XXII Assembleia Estadual dos Povos Indígenas do Ceará, ocorrida no final de julho, a posição do movimento é contundente: "O direito a nossa terra é inegociável e lutaremos por ele sempre. Para isso, não recuaremos um passo na defesa do nosso território e da nossa vida". Na carta, há denúncias envolvendo ataques a outros grupos, caso dos quilombolas.

    Os indígenas entendem que o "projeto de enfraquecimento da política indigenista brasileira (…) tem como principal estratégia a neutralização da Funai, fragilização de mecanismos legais e a criminalização". Todavia, eles acreditam que não é possível desatrelar a "estratégia" destes poderosos antagonistas da conjuntura geral, e lutar contra as reformas de Temer faz parte da resistência que envolve toda a sociedade.




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