Direitos indígenas são indisponíveis e insubmissos a conciliações
A Carta de 1988 trata direitos originários dos povos indígenas à terra como indisponíveis, inalienáveis e imprescritíveis
Os povos indígenas estão, mais uma vez, diante de um momento crucial de luta pela preservação dos direitos conquistados com esforço e mobilização na Constituição Federal de 1988. Na próxima segunda (05) está previsto o início das audiências de conciliação, determinadas pelo ministro Gilmar Mendes. Para as audiências, foram convocados representantes de diversos órgãos de Estado e setores da sociedade – alguns deles com interesses particulares sobre os territórios indígenas – que discutirão direitos já consagrados em nosso marco de convivência.
Em setembro do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF), por 9 votos a 2, afastou a tese do marco temporal e confirmou a constitucionalidade dos direitos indígenas, já previstos na Constituição como direitos fundamentais. Não poderia ser diferente, já que a Carta de 88 trata esses direitos originários à terra como indisponíveis, inalienáveis e imprescritíveis, cabendo à União proteger e demarcar. Isso significa dizer que o direito dos povos indígenas são insubmissos à vontade de maiorias eventuais, a negociatas, barganhas ou escambos.
A Carta de 88 trata esses direitos originários à terra como indisponíveis, inalienáveis e imprescritíveis
Mesmo assim, o Congresso Nacional aprovou, à revelia do que foi decidido pela Suprema Corte, a Lei 14.701/2023, que institui o marco temporal e submete os territórios indígenas a interesses de terceiros. Com a promulgação da Lei, o Congresso demonstra ter perdido o horizonte ético e o sentido da Justiça.
Todos sabemos que a vigência do marco temporal é injusta e imoral, pois representa um decreto de impunidade a todas as atrocidades até então cometidas contra os povos indígenas, colocando em risco a vida de comunidades inteiras em função do rompimento com seus territórios tradicionais. O resultado tem sido a onda de violência contra pequenas comunidades indígenas, a exemplo do que ocorre neste momento nos estados de Mato Grosso do Sul e do Paraná.
O Congresso demonstra ter perdido o horizonte ético e o sentido da Justiça
Os dados alarmantes do Relatório de Violência contra os Povos Indígenas – dados de 2023, que o Cimi publicou em julho deste ano, também dão o tom do que a Lei põe em curso.
Embora o STF já tenha afastado o marco temporal por inconstitucionalidade, o assunto volta à análise da Corte. E, dessa vez, o Relator das ações o ministro Gilmar Mendes decidiu pela constituição de uma comissão especial de negociação e conciliação formada por órgãos do governo e diversos setores da sociedade.
O Relator das ações o ministro Gilmar Mendes decidiu pela constituição de uma comissão especial de negociação e conciliação
Mais uma vez, a Suprema Corte tem nas suas mãos as condições de, em primeiro lugar, manter a decisão de setembro de 2023 que declarou inconstitucional a tese do marco temporal; depois, de não permitir que se negociem direitos indisponíveis dos povos indígenas. A Suprema Corte não pode deixar prevalecer os interesses dos mais apoderados sobre a singela gente da terra.
Na Encíclica Laudato Si, o Papa Francisco destaca que os esforços até então empreendidos para diminuir os impactos negativos das mudanças climáticas têm sido inadequados. Isso porque, “muitos daqueles que detêm mais recursos e poder econômico ou político parecem concentrar-se sobretudo em mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas” (LS 26).
A Suprema Corte tem nas suas mãos as condições de, em primeiro lugar, manter a decisão de setembro de 2023 que declarou inconstitucional a tese do marco temporal
O Papa afirma ainda que é indispensável uma atenção especial aos povos indígenas. “Com efeito, para eles a terra não é um bem econômico, mas um dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela descansam, um espaço sagrado (…) Eles, quando permanecem em seus territórios, são quem melhor os cuida” (LS, 146).
Assim como o Papa nos ensina, estamos esperançosos na garantia dos direitos dos indígenas e que o STF mantenha a decisão de setembro de 2023. É fundamental que toda a sociedade brasileira, todas as igrejas e segmentos acompanhem com atenção este momento crucial para a vida dos povos indígenas, para que a paz e a justiça sejam o único horizonte do convívio entre os povos.
[1] Presidente do Cimi e Arcebispo de Manaus
Este artigo foi originalmente publicado em O Globo