09/11/2020

Decisões em série enfraquecem normativa da Funai que facilita grilagem de terras indígenas

Dez liminares e uma sentença em ações do MPF mantêm a Instrução Normativa 09 suspensa ou anulada em seis estados

Marcha durante o Acampamento Terra Livre 2018. Foto: Christian Braga/MNI

Marcha durante o Acampamento Terra Livre 2018. Foto: Christian Braga/MNI

Por Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação do Cimi

Sucessivas decisões judiciais vêm enfraquecendo a Instrução Normativa (IN) 09/2020, da Fundação Nacional do Índio (Funai), que libera a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas não homologadas. Atualmente, dez decisões liminares suspendendo e uma sentença judicial anulando a IN 09 estão vigentes em seis estados do país, a partir de uma série de ações movidas pelo Ministério Público Federal (MPF).

O órgão aponta que a medida da Funai incentiva a grilagem de terras e os conflitos fundiários, colocando em risco os povos indígenas e contrariando seus direitos constitucionais. Por isso, desde maio, pelo menos 25 ações contra a IN 09 já foram movidas pelo MPF em 13 estados.

Com base nelas, a normativa está suspensa, hoje, nos estados do Acre, Amazonas, Mato Grosso e Roraima, e também nas comarcas de São Vicente, em São Paulo, e de Altamira, Castanhal, Marabá, Redenção e Itaituba, no Pará.

Na região de Santarém, também no Pará, o MPF obteve uma sentença – e não uma decisão temporária, como no caso das liminares – da Justiça Federal anulando a IN 09. A anulação afeta os municípios sob a jurisdição da Subseção Judiciária de Santarém.

Outras duas decisões liminares em ações do MPF chegaram a suspender os efeitos da normativa nos estados de Santa Catarina e Ceará, mas foram suspensas após recurso da Funai. Houve, ainda, dois pedidos do MPF que foram negados, em Mato Grosso do Sul e no Paraná. Todas as decisões ainda são passíveis de recurso.

“As decisões na justiça federal e também no TRF-1 representam um grande alento, por revelar uma postura do judiciário aberta à tese da tradicionalidade dos direitos territoriais indígenas”

Ação coletiva

Publicada no dia 22 de abril, a IN 09 autoriza a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas ainda não homologadas – o que inclui tanto terras em estudo quanto terras já identificadas, declaradas ou com restrição de acesso devido à presença de indígenas isolados.

A medida implica na exclusão dessas terras indígenas do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), plataforma digital do Incra voltada à certificação de propriedades rurais. A IN 09 também prevê a emissão de Declarações de Reconhecimento de Limites de propriedades privadas pela Funai, igualmente ignorando a existência das terras indígenas ainda não homologadas.

Ainda em abril, antes de buscar reverter a medida do órgão indigenista no Judiciário, 49 procuradores e procuradoras de 23 estados recomendaram ao presidente da Funai, Marcelo Xavier, que revogasse a publicação da IN 09.

“Segundo classificou a imprensa, foi a maior atuação coletiva do MPF contra o governo Bolsonaro. Diante da negativa da Funai em acatar a recomendação, houve o ajuizamento de uma série de ações públicas”, explica Ricardo Pael Ardenghi, procurador da República em Cuiabá, Mato Grosso.

A primeira decisão contra a IN 09 foi obtida na Justiça Federal de Mato Grosso, em junho, e posteriormente confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). A mais recente foi a sentença da Subseção Judiciária de Santarém, no final de outubro.

“Essa iniciativa do MPF representa uma grande vitória, ainda que parcial, porque esse projeto do governo federal de regularizar a grilagem sobre terras indígenas ganharia muito em força e ares de legitimidade com as certificações no Sicar [Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural] e no Sigef. As decisões na justiça federal e também no TRF-1 representam um grande alento, por revelar uma postura do judiciário aberta à tese da tradicionalidade dos direitos territoriais indígenas”, avalia Pael.

“O ato do Estado, de dizer que uma terra é indígena, é um ato de mero reconhecimento. E portanto, independentemente desse ato final de reconhecimento, do decreto homologatório do presidente, as terras indígenas precisam ser protegidas pelo Estado”

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Estado não cria terras indígenas

Um dos principais pontos discutidos nas ações movidas pelo MPF é o caráter originário dos direitos territoriais indígenas, ou seja, a compreensão de que os territórios de ocupação tradicional são apenas reconhecidos por meio do processo demarcatório.

“Segundo o Supremo Tribunal Federal (STF), as terras indígenas têm um caráter originário. Isso significa que o ato do Estado, de dizer que uma terra é indígena, é um ato de mero reconhecimento. Ele não cria a terra indígena, ele não constitui uma nova terra indígena, ele simplesmente declara aquilo que já existe. E portanto, independentemente desse ato final de reconhecimento, do decreto homologatório do presidente, as terras indígenas precisam ser protegidas pelo Estado”, explica Gustavo Kenner, Procurador da República em Santarém.

A IN 09 inverte essa ordem, destaca o procurador, ao estabelecer que somente as terras indígenas homologadas recebem proteção do Estado. “Só que isso não faz sentido, porque desrespeita a Constituição e desrespeita o STF”, analisa.

Essa questão foi também abordada na decisão da Justiça Federal de Santarém que anulou, naquela região, a Instrução Normativa 09.

A Funai alegou, no processo, que a Constituição Federal “somente conferiria proteção às terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, qualificação não detida pelas áreas a ainda serem constituídas em favor de tais populações”. Assim, não seria possível “restringir a propriedade privada com base em presunção de lesão a direito originário indígena”.

Para o juiz Domingos da Conceição Filho, contudo, a posição da Funai contrasta com o que foi definido pelo STF no caso Raposa Serra do Sol.

“A terra não passa a ser indígena somente quando homologada a demarcação. Essa, na verdade, consubstancia tão somente o reconhecimento oficial de uma situação preexistente”, afirma o magistrado.

“Essa sentença restabelece a ordem das coisas, restabelece a ordem normativa e afirma com todas as letras: todas as terras indígenas do Brasil, independente da fase de demarcação, têm que ser protegidas e precisam estar nos cadastros dos órgãos de Estado para impedir que pessoas, que grileiros, queiram de alguma forma se aproveitar e usurpar esse patrimônio”, avalia Gustavo Kenner.

Para o desembargador Jirair Aram Meguerian, do TRF-1, a lentidão nas demarcações “não pode servir de pretexto para dificultar o acesso dos povos indígenas às terras a eles constitucionalmente asseguradas nem para legitimar eventuais títulos de propriedade”

Acampamento Terra Livre (ATL) 2018. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Acampamento Terra Livre (ATL) 2018. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Dupla omissão

Na recomendação feita à Funai ainda em abril, os procuradores e procuradoras do MPF destacam que a IN 09 acentuaria “a vulnerabilidade dos povos indígenas em territórios cujos processos de demarcação ainda não finalizaram, muitas vezes por omissão da própria Funai”.

“Uma vez que o Estado não cumpre o seu dever de demarcar, ele tem uma obrigação ainda maior de proteger e de garantir todos os direitos sociais dessa população [indígena]”, aponta o procurador Gustavo Kenner.

“E se o Estado prejudica ela novamente impedindo o acesso a recursos, impedindo a proteção contra invasores, na verdade o que o Estado está fazendo é prejudicar aquela população que já foi excessivamente prejudicada pela sua mora, pela sua omissão”, salienta o procurador.

Esse ponto foi ressaltado em decisões que suspenderam, localmente, os efeitos da Instrução Normativa.

Ao negar o recurso da Funai que tentou reverter a suspensão da IN 09 em Mato Grosso, por exemplo, o desembargador Jirair Aram Meguerian, do TRF-1, afirma que a lentidão nas demarcações “não pode servir de pretexto para dificultar o acesso dos povos indígenas às terras a eles constitucionalmente asseguradas nem para legitimar eventuais títulos de propriedade”.

O desembargador ressalta que esses títulos “não se sobrepõem aos direitos indígenas à terra e inclusive são considerados nulos de pleno direito caso tais áreas sejam homologadas por decreto presidencial”.

“A Funai, de forma pouco usual, adota uma retórica em prol dos não índios, o que causa certa estranheza em razão de seu dever de garantir o cumprimento da política indigenista” – juiz Domingos da Conceição Filho

O papel da Funai

A principal justificativa da Funai para a publicação da IN 09 é de que, nas palavras do presidente Marcelo Xavier, a normativa “traz segurança jurídica e contribui para pacificar os conflitos por território no campo”.

Na avaliação do MPF, entretanto, o efeito da IN 09 é justamente o oposto: ao permitir o reconhecimento de propriedades privadas sobre terras em processo de demarcação, a Funai gera insegurança jurídica para indígenas, para proprietários e até para eventuais compradores desses imóveis, que não são informados a respeito da sobreposição e da eventual nulidade dos títulos em questão.

Esta também é a interpretação que prevaleceu em decisões como a proferida pela Justiça Federal de Santarém. A sentença do juiz Domingos da Conceição Filho afirma que a Instrução Normativa pode “gerar situações de penosa insegurança jurídica para índios e não índios e ainda acarretar responsabilização da Administração por omissão”.

O magistrado aponta ainda que, no conteúdo da IN 09 e nas alegações feitas no processo, a Funai faz uma “clara opção pela defesa dos interesses de particulares em detrimento dos interesses indígenas”, o que classifica como uma “aparente inversão de valores e burla à missão institucional” do órgão.

“A Funai, de forma pouco usual, adota uma retórica em prol dos não índios, o que causa certa estranheza em razão de seu dever de garantir o cumprimento da política indigenista”, afirma ele na sentença.

Segundo o procurador Ricardo Pael, essa também não é uma interpretação isolada.

“Vários magistrados foram expressos em suas decisões ao colocar que a postura assumida pela Funai é uma postura contraditória com sua própria lei orgânica, porque representa uma tutela dos direitos privados em detrimento dos direitos indígenas, ao mesmo tempo que o argumento de defesa da segurança jurídica é um argumento falacioso, posto que cria mais insegurança jurídica ao ocultar do Sicar e do Sigef a existência de terras indígenas nos imóveis certificados”, avalia.

“O que se vê é que a Funai e o Incra estão cumprindo sim as decisões, incluindo as terras indígenas não demarcadas nos bancos de dados, porém o estrago já tinha sido feito. Muitos certificados foram emitidos a toque de caixa”

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Estrago feito

Além de suspender os efeitos da IN 09 nas respectivas regiões ou estados, muitas decisões determinam que a Funai e o Incra reincluam as terras indígenas ainda não homologadas em sistemas como Sigef e o Sicar, responsável pela emissão do Cadastro Ambiental Rural – estabelecendo, inclusive, multa para os órgãos em caso de descumprimento.

Apesar disso, o procurador Ricardo Pael avalia que, mesmo nas regiões onde a IN 09 foi suspensa, muitas certificações de propriedades já foram emitidas sobre terras indígenas.

“O que se vê é que a Funai e o Incra estão cumprindo sim as decisões, incluindo as terras indígenas não demarcadas nos bancos de dados, porém o estrago já tinha sido feito. Muitos certificados foram emitidos a toque de caixa”, explica o procurador.

É o caso das Terras Indígenas (TIs) Barra Velha do Monte, Comexatibá e Tupinambá de Belmonte, na Bahia, sobre as quais 58 propriedades foram certificadas até o dia 10 de agosto. A maioria das certificações ocorreu nas semanas seguintes à publicação da Instrução Normativa.

“Foram emitidos mais certificados em maio e junho de 2020 do que durante todo o ano de 2019. Certificados que depois, com as sentenças e trânsito em julgado, teremos que buscar a anulação pontualmente, como já sinalizou o juiz aqui de Cuiabá”, relata Pael.

Segundo dados da Funai, há no Brasil 243 terras indígenas em estudo, delimitadas, declaradas ou interditadas devido à presença de isolados, mais 19 áreas encaminhadas como reservas indígenas. Todas estas terras são diretamente afetadas pela Instrução Normativa 09.

Ato dos povos indígenas da região sul na Câmara dos Deputados. Foto: Adi Spezia/Cimi

Ato dos povos indígenas da região sul na Câmara dos Deputados. Foto: Adi Spezia/Cimi

Direito originário

As decisões contra a IN 09 ocorrem num momento de muita expectativa para os povos indígenas, em função do caso de repercussão geral que pode ser julgado em breve pelo STF.

A partir de uma disputa possessória envolvendo o território tradicional do povo Xokleng, em Santa Catarina, o julgamento deverá trazer uma posição definitiva dos ministros em relação às demarcações de terras, ao caráter originário dos direitos territoriais indígenas e à tentativa de limitação desse direito pela tese restritiva do marco temporal.

“Além de a IN 09 ser inconstitucional, a Funai em hipótese nenhuma poderia criar uma normativa antes do STF decidir sobre as demarcações de terras no âmbito do recurso extraordinário de repercussão geral”, avalia Rafael Modesto dos Santos, assessor jurídico do Cimi.

“Se o STF reafirmar, como se espera, que as terras indígenas são declaradas, que os povos indígenas têm direito à demarcação e que as posses não indígenas são nulas, como determina nossa Constituição, todas as certificações feitas com base na IN 09 nasceram nulas, viciadas e seus efeitos são nenhum. Por isso, no mínimo, essa normativa deveria ficar suspensa até que o STF julgue o referido recurso”, analisa.

Para o assessor jurídico da Apib, Luiz Eloy Terena, a recente sentença contra a IN 09 “é importante porque resguarda os direitos dos povos indígenas, tendo em vista que estamos vivenciando um contexto político muito adverso, onde as pessoas pensam que está liberado invadir e explorar os territórios tradicionais”.

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