17/09/2004

Mais pedras no caminho dos Povos Indígenas para os Outros 500*, por Rosane F. Lacerda**

I – Introdução.


 


Recente publicação do Conselho Indigenista Missionário – Cimi[1], informa que nos últimos cinco séculos, 1.477 Povos indígenas diferentes foram extintos em toda a extensão do que hoje forma o território brasileiro, como resultado de uma política genocida, de domínio e conquista.


 


Hoje, em pleno ano de 2001, vive-se um momento que, conforme o imaginário vigente no mundo ocidental, deveria marcar o início de um novo século e de um novo milênio, não só em termos de calendário, mas, sobretudo, de mudança de valores, de perspectivas de um futuro melhor.


 


Para os Povos Indígenas no Brasil, o período coincide também com um marco simbólico, imbuído de importantes expectativas. O ano de 2001 marca, enfim, o início dos “Outros 500”,  nos quais, nos dizeres de D. Pedro Casaldáliga, devemos ingressar com uma “ atitude sincera de ‘memória, remorso e compromisso’… sem a desculpa de dizermos que não podemos refazer o passado, porque, sim, podemos desvelá-lo, fazer outro presente, forjar um futuro outro.”[2]


 


Tal expectativa, contudo, não parece ser compartilhada pelas elites detentoras do poder político, e econômico, que demonstram seu empenho na manutenção de velhas práticas representativas das mesmas políticas que produziram o genocídio indígena no país.


 


Assim, por exemplo, o ano de 2001 transcorre novamente sem se solucionar o problema das terras indígenas.  Em levantamento divulgado pelo Cimi na rede internet[3], até 31 de julho, tínhamos ainda no país 175 terras a serem incluídas no rol de terras “a identificar”; 130 terras aguardando identificação; 39 terras aguardando definição do Ministro da Justiça mediante Portaria Declaratória e 98 terras homologadas mas ainda aguardando registro imobiliário. Ou seja, das 756 terras indígenas então computadas, 442 continuavam pendentes de providências relativas aos mais diversos estágios do procedimento administrativo de demarcação, previstos nos termos do Dec. 1.775/96.


 


Outro problema presente neste ano é que grande parte das terras, mesmo as demarcadas ou situadas nas etapas finais do procedimento, continuaram invadidas, tendo havido pouco esforço por parte do governo federal para desintrusá-las ou para efetuar indenizações quanto às benfeitorias derivadas de ocupação de boa-fé, omissão que só contribui para acirrar os ânimos de ocupantes ilegais contra os índios, tornando-os alvos de diversos atos de violência.


 


Em 2001 continuaram as pressões sobre as riquezas naturais existentes nas terras indígenas, a exemplo de empresas madeireiras e garimpeiras. No entanto, percebe-se claramente neste ano o crescimento substancial de outras ondas de pressão: a) Por parte do setor elétrico, com a aceleração dos projetos de construção de pelo menos 16 Usinas Hidrelétricas em terras indígenas onde vivem 25 povos distintos, inclusive grupos isolados e extremamente vulneráveis; b) Por parte do Projeto Calha Norte, com a intensificação da presença militar nas terras indígenas, através da construção de novos quartéis junto a aldeias, a exemplo do 6.º Pelotão Especial de Fronteiras, na maloca Uiramutã (Raposa/Serra do Sol – RR), representando para os índios enormes riscos, a exemplo da prática de abusos sexuais contra mulheres indígenas, como no caso Yanomami, denunciado com destaque durante o ano; e c) Por parte do governo federal através da criação de Unidades de Conservação Ambiental sobrepostas a terras indígenas.


 


No plano político-institucional, percebe-se ao longo do ano a utilização, novamente, da questão indígena como moeda de troca entre Executivo e Legislativo federais, através do apoio da base parlamentar governista à criação e instalação de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) de propósitos claramente antiindígenas: a CPI da demarcação das Terras Indígenas, que tem como um dos objetivos centrais o ataque às demarcações das Terras Yanomami (AM/RR) e Raposa / Serra do Sol (RR), e a CPI das Ongs, que visa sobretudo organizações indígenas e ambientalistas. Neste contexto tudo indica que também o Projeto de Lei que dispõe sobre o novo Estatuto do Índio, cujo andamento ficou paralisado durante o ano, tenha também os seus principais dispositivos leiloados entre os setores com fortes interesses econômicos sobre as terras indígenas e seus recursos naturais.


 


É de se observar no entanto, de parte do Judiciário, duas importantes decisões: a condenação, por crime de genocídio, dos autores do massacre dos Tikuna  (28.03.1988), em sentença proferida pela 2.ª Vara Federal em Manaus (AM) e a decisão do Supremo Tribunal Federal – STF, ao anular o Júri (MS) no qual havia sido absolvido o principal acusado como mandante do assassinato do líder Marçal Guarani (25.11.1983), e determinar a competência da justiça federal para o caso. O clima geral de  impunidade, contudo, continuou durante o ano, a exemplo de casos como a morte do Cacique Chicão Xukuru  e a violência policial sobre a marcha indígena em Porto Seguro, em 22 de abril de 2000.


 


Registre-se também que as violências este ano atingiram profissionais com importante papel na defesa dos direitos indígenas, a exemplo da Procuradora da República (1.ª Região) e membro da 6.ª Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria-Geral da República, Débora Duprat. Intervindo em favor dos índios na ação judicial contra a instalação do quartel do Exército em Uiramutã  (Raposa / Serra do Sol – RR), foi ameaçada de “levar um tiro na cabeça  caso não desistisse de defender os índios na justiça. Também a advogada Maria José Amaral (OAB / PE), que acompanha o caso da morte do Cacique Chicão Xukuru, recebeu durante o ano ameaças de morte e teve  barrado, pela Polícia Federal no Recife, o seu acesso às investigações sobre a morte da liderança Chico Quelé Xukuru.


 


Não obstante, os povos e comunidades indígenas novamente souberam reagir, o que foi demonstrado em três momentos significativos. Primeiro, no mês de abril em Luziânia-GO, com a retomada dos encaminhamentos havidos na Conferência Indígena 2000, através de Assembléia que reuniu 176 lideranças de 77 povos vindos de 21 Estados do País[4]. Segundo, em Durban – África do Sul, durante a III Conferência da ONU contra o Racismo, quando a delegação indígena presente chegou inclusive a denunciar “o boicote premeditado, arrogante, racista e irresponsável do Governo Brasileiro que não se empenhou em participar na mediação das queixas dos povos indígenas” havidos durante a Conferência.[5] Terceiro, em 19 de agosto, com a inauguração pelos Pataxó, no Monte Pascoal (BA),  do Monumento à Resistência Indígena, um ano e quatro meses após ter sido destruído pela Polícia Militar da Bahia[6]. Conforme o “Manifesto” lançado na ocasião, o monumento expressa, para os índios, os “ sentimentos, desejos e sonhos de Outros 500, diferentes do passado, com terra demarcada, direitos garantidos, respeito às diferentes culturas e à autonomia.”[7]


 


II – Principais ocorrências em 2001.


 


Com as dificuldades de acesso a informações provenientes de grande parte das  terras indígenas, sobretudo as mais longínquas e isoladas, bem como ao fato de o período relatado estar limitado aos meses de janeiro a setembro do ano 2001,  o elenco de violações de direitos humanos aqui abordados é, obviamente, amostragem ainda parcial. Os tipos de ocorrência são, contudo, demonstrativos significativos  da situação vivida pelos povos indígenas neste ano, suficientes para subsidiar uma análise de suas origens e significados.


 


II.1 – Assassinatos:


 


No período o Cimi registrou nove casos de assassinatos de indígenas em todo o País, num total de 10 vítimas. Em dois casos (Chico Quelé, Xukuru – PE e Avappcarendy Guarani-Kaiowá – MS) se tem informações de que as mortes estariam diretamente relacionadas a conflitos de terra.  No entanto, continua extremamente preocupante o alto índice de envolvimento de agentes do poder público na autoria dos crimes. Das 10 mortes registradas, em pelo menos 03 (Nô e Nilson Félix Truká – PE e Vicente Cândido de Lima Guarani – PR) a autoria  é atribuída a Policiais militares. Numa terceira morte (Avappcarendy), embora se aponte como autores materiais jagunços contratados por fazendeiros em Amambai (MS), tem-se também, como um dos mandantes, o  vice-prefeito da cidade, o que faz com que em pelo menos 40% das mortes tenham tido envolvimento de agentes do poder público: 03 mortos por policiais militares e 01 tendo como um dos mandantes um vice-prefeito.


 


A seguir, um breve relato de alguns casos, segundo a ordem cronológica das ocorrências:


 


§                   José Nô Félix, 39 e Nilson Félix, 16 ( pai e filho ) Truká – PE. Ferido à bala numa operação da PM na cidade de Cabrobó (PE), em 04 de janeiro, o adolescente era levado no carro do vereador Romero Gomes, juntamente com seu pai e uma enfermeira, do Hospital local para o da cidade de Petrolina (PE), onde receberia atendimento médico mais adequado. No trajeto entre as duas cidades, o veículo foi interceptado por uma viatura da PMPE. Pai e filho foram levados à força por um grupo de Policiais e desapareceram. Três dias depois, os corpos das vítimas eram encontrados, próximo à cidade de Santa Maria da Boa Vista (PE), degolados e queimados com uso de pneus de carro.


 


§                   Avappcarendy ou Samuel Martins, 25 a 35 anos, Guarani-Kaiowá – MS. Morto na madrugada de 26 de março quando preparava-se, junto com a comunidade indígena (cerca de 150 pessoas, inclusive mulheres e crianças), para tentar (pela terceira vez) retomar as terras do Tekohá Ka’ajari, ocupado pela Fazenda Santa Clara, no município de Amambai (RS). Ao se aproximar do local com os demais, levou um tiro de espingarda calibre 22 no coração. Segundo a polícia, a arma seria de precisão pois o tiro certeiro teria sido disparado a longa distância. Vários outros indígenas saíram feridos. A Polícia Federal apontou o Presidente do Sindicado Rural de Amambai, Gumercindo Bonamingo, e o Vice-Prefeito do município, Wilson Nunes (PPB), como suspeitos de mandantes.


 


§                   Cândido de Lima, 39,  Guarani – PR. Morto em 23 de abril, pelo cabo Nilson dos Santos[8] ex-comandante da Polícia Militar em Santa Amélia (PR), numa operação destinada a fazer a vítima devolver e se afastar do neto de 5 meses de idade, a quem estava impedido de ter contato por imposição dos familiares. Cercada e desarmada, a vítima pediu aos PMs que abaixassem as armas para que pudesse entregar a criança. Segundo os PMs, um dos policiais escorregou, assustando o índio que já se preparava para por a criança no chão. Um dos PMs também se assustou e sua arma teria disparado “acidentalmente” matando o índio pelas costas. Segundo o delegado, os PMs estavam despreparados para essa ação. O cacique Mário Sampaio disse que os PMs entraram na terra indígena sem autorização das lideranças, que poderiam ter resolvido o problema sem a intervenção policial.


 


§                   Francisco de Assis Santana, ou Chico Quelé, 56, Xukuru – PE. Importante liderança Xukuru, foi morto em 23 de agosto, com dois tiros de espingarda calibre 12, numa tocaia montada no interior da terra indígena, em Pesqueira (PE). A vítima participara, dias antes, de mais uma retomada de parte do território tradicional do Povo, e fora surpreendida quando dirigia-se ao Posto da Funai na Aldeia São José, para uma reunião a respeito das indenizações de benfeitorias dos ocupantes não-indígenas. Investigações preliminares no local dão conta de que a tocaia estava armada há pelo menos dois dias, e que os rastros deixados pelo(s) atirador(es), em sua fuga, dirigiam-se à Fazenda Carrapato, de José Cordeiro de Santana (Zé de Riva), inimigo da luta dos Xukuru pela terra e apontado pelos índios como o principal suspeito pela autoria intelectual da morte do Cacique Chicão.  Embora os indícios apontem para o envolvimento dos fazendeiros na morte de Quelé, a Polícia Federal empenha-se em apurar a existência de conflitos internos entre as lideranças indígenas como tendo sido a causa do crime.


 


II. 2 – Ameaças de morte:


 


De janeiro a setembro de 2001, o Cimi registrou um total de 09 casos de ameaças de morte, a maioria contra comunidades inteiras e não apenas contra indivíduos determinados, somando mais de três mil vítimas. Dos 09 casos apontados, 05 tiveram o envolvimento direto de agentes do poder público em sua autoria, e 04 casos tiveram sua autoria atribuída a particulares. Estes últimos (La Klañon – SC, Tekohá Ka’ajari – MS, Caramuru-Paraguaçu – BA e Maloca do Lage – RR) envolvem a formação de milícias armadas contra os índios, contratação de pistoleiros e invasão garimpeira, estando relacionados a conflitos fundiários. Os de autoria atribuída a agentes do Poder público envolveram  Policiais Militares (Truká – PE e  La Klañon – SC), Soldados do Exército (Maloca do Lage, Makuxi – RR) e um Prefeito Municipal (Pataxó Hã-Hã-Hãe – BA). Vejamos alguns casos:


 


§                   Comunidade Xokleng de La Klañon – SC. Lutando para reaver parte de suas terras ilegalmente vendidas pelo Governo do Estado, a comunidade foi alvo da formação de milícias armadas, segundo a imprensa[9] criadas por grupos de agricultores em Victor Meirelles (SC), através da compra de armas a um atravessador, em Itajaí (SC). O objetivo das milícias seria “resistir à chegada dos indígenas”, caso as famílias “não sejam indenizadas pelas terras que compraram”. Como a União Federal só pode promover a indenização por benfeitorias (CF/88, art. 231, § 6.º), os colonos reagem  ameaçando os índios caso se aproximem do local.[10] Neste clima de tensão,  na manhã de 12 de maio, um grupo de indígenas enfermos, que estava sendo transportado numa Kombi da Fundação Nacional de Saúde – Funasa, para o Hospital de José Boiteux (SC), vendo a PM agredindo outros membros da comunidade parou o veículo na intenção de tentar se esconder, passando a ser alvo da agressão dos policiais, que ameaçaram jogar a Kombi numa ribanceira. No episódio, a PMSC agia no cumprimento de um mandado de Manutenção de Posse expedido pela Juíza de Direito da Comarca de Ibirama[11] (SC), Iraci Satomi Schioquetti, em favor da Empresa Manoel Marchetti Indústria e Comércio Ltda com relação às terras da Fazenda Ipê, incidente na terra indígena. 


 


§                   Comunidade Guarani-Kaiowá do Tekohá Ka’ajari – MS. Expulsa de suas terras e obrigada a viver confinada na Aldeia Limão Verde (Amambai – MS), a comunidade vem tentando insistentemente retornar para o seu Tekohá[12]. Na terceira tentativa de retomada do local, a comunidade foi recebida à bala por jagunços contratados por fazendeiros, episódio que resultou na morte de Avappcarendy, anteriormente mencionada. Na casa do presidente do Sindicado Rural de Amambai, Gumercindo Bonamingo “a PF encontrou armas, explosivos e uma caminhonete, provavelmente utilizados no ataque …”[13], o que indica a existência de uma milícia armada, destinada a eliminar os índios em seu trajeto de volta ao Tekohá.


 


§                   Comunidade Pataxó Hã-Hã-Hãe – BA. No mês de fevereiro o indígena Agnaldo Francisco dos Santos vereador pelo PT em Pau Brasil (BA), passou a sofrer ameaças de morte por parte do Prefeito José Augusto dos Santos Filho, ao denunciar irregularidades na administração municipal. O Prefeito é um dos principais opositores à demarcação da Terra Indígena Caramuru – Catarina Paraguaçu, e tem vários parentes com terras no interior da área indígena. Em junho de 2001 em novos protestos contra a demora no julgamento da Ação Cível Originária de Nulidade de Títulos há 19 anos em trâmite no STF, os índios ocuparam mais duas fazendas no interior da terra indígena. Logo após, vários pistoleiros armados passaram a ser vistos circulando a cidade de Pau Brasil à procura de índios.


 


§                   Comunidade Makuxi da Maloca do Lage, T.I. Raposa / Serra do Sol – RR. Na tarde de 09 de maio, a maloca foi invadida por soldados do 7.º Batalhão de Infantaria da Selva, embriagados e portando armas de fogo. Ameaçaram promover um “banho de sangue” na maloca, caso fossem impedidos de transitar na região. Assustadas, as crianças, para se proteger, fugiram para a mata e só retornaram  na madrugada do dia seguinte. O episódio ocorreu em meio à mobilização dos índios contra a construção de um quartel do Exército na aldeia Uiramutã, interior da terra indígena, e às denúncias de abusos sexuais de militares contra índias Yanomami, também em Roraima. Meses depois, em 1.º de agosto, a Maloca do Lage foi invadida por garimpeiros. Com facas e facões em riste, ameaçavam os índios na tentativa de forçar passagem por um caminho tradicional dos Macuxi que dá acesso ao território da República da Guiana. Em menor número, os garimpeiros recuaram  – por enquanto.


 


§                   Comunidade Truká – PE. Em 08 de janeiro, os indígenas Aurivan dos Santos Barros (“Neguinho Truká”) e Wilson José Ferreira, foram abordados pela PM em Santa Maria da Boa Vista (PE) quando viajavam de ônibus para o Recife (PE) para encaminhar denúncias  de violências policiais contra os índios. Perguntando onde moravam, os policiais os acusaram como assaltantes de ônibus, e os  ameaçaram “estourar as cabeças” caso denunciassem as agressões. O ônibus ainda foi seguido pelos policiais por cerca de 40 Km, numa clara tentativa de intimidação. Ainda em janeiro, os familiares de Nô e Nilson Félix passaram a ser alvos de ameaças por parte de Policiais Militares, com o intuito de pressionar os índios contra o andamento das investigações em torno do caso daquelas duas mortes.


 


II.3 – Abuso de autoridade:


 


Também no mesmo período o Cimi registrou a ocorrência de cinco casos de abuso de autoridade[14], praticados nas suas mais diversas formas: agressões físicas, violações de domicílio, detenções ilegais, etc. Este tipo de ocorrência, praticado principalmente por Policiais Militares, afetou comunidades das terras indígenas Truká (PE), La Klañon (SC), Xerente (TO) e Raposa / Serra do Sol (RR), onde vivem cerca de  15 mil indígenas:     


 


§         Comunidade Indígena Truká – PE. Em 04 de janeiro a Terra Indígena foi novamente invadida por Policiais Militares, alguns encapuzados, em 12 veículos entre viaturas e carros de passeio. Os PMs agiram sem mandado judicial, num ato que caracteriza violação de domicílio. Na mesma ocasião, colocaram o indígena conhecido como “Lobinho” no porta-malas de um dos veículos, obrigando-o a informar a casa de Nilson Félix (que seria morto juntamente com o seu pai), a fim de procurar pelo seu irmão, o também menor Nelson Félix, de 14 anos.


 


§         Comunidade Xokleng de La Klañon – SC. Em 12 de maio, a fim de cumprir um mandado possessório contra os índios, um grupo de PMs cometeu uma série de abusos, entre os quais destacamos: a) retenção do veículo da Funasa em que viajavam os indígenas doentes com destino ao hospital de José Boiteux; b) invasões das residências dos indígenas Miriam Vaicá Priprá (professora) e Olímpio Veitschá Priprá, com uso de bombas de efeito moral e balas de borracha, a despeito da presença de diversas crianças; c)  espancamento de diversos índios, com cassetetes e chutes, além do uso de balas de borracha; d) detenção ilegal dos indígenas Samuel Cuzung Priprá, Womble Camblem, Ndilli Cangui Filho, Nidli Ingaclã e  Adailson da Silva. Eis alguns relatos: Antônia Priprá – de resguardo e com seu filho de apenas 6 dias e outro de 2 anos, desmaiou e ficou sozinha na Kombi da Funasa com os bebês, sem receber nenhuma assistência. Ao recobrar os sentidos, presenciou sua mãe sendo espancada pelos policiais. Ilsa Coctá Priprá (mãe de Antônia) – Enferma, foi algemada ao tentar sair da Kombi para fugir dos policiais. Foi espancada nas pernas, cabeça e abdome, levou 3 tiros com bala de borracha, caiu e foi chutada, ficando com hematomas e cortes por todo o corpo. Pediu água para ela e sua filha, mas não foi atendida, embora os policiais bebessem água na sua frente. Paulo, idoso e deficiente físico, foi alvejado no braço com sua própria muleta, jogado no chão e pisoteado.


 


§         Terra Indígena Raposa / Serra do Sol – RR. O fato, já citado, que vitimou a comunidade Makuxi da Maloca do Lage em 09 de maio, configurou também em violação de domicílio, já que os Soldados entraram na área sem nenhum convite ou permissão da comunidade, numa prática de evidente desrespeito à organização social do grupo, além das outras violações anteriormente mencionadas.


 


§         Terra Indígena Xerente – TO. Em 17 de agosto, também a Terra Indígena Xerente sofreu invasão de Policiais, Militares e Civis, numa ação comandada pelo delegado Ricardo Moreira de Toledo Salles, titular da delegacia de Pedro Afonso (TO). Embora motivados por um mandado de prisão, o fato é que os policiais não tinham competência para ingressar na terra indígena, dado estar sob jurisdição federal, devendo ter sido requisitados policiais federais para o cumprimento da ordem. Revoltada com a intromissão indevida dos policiais a comunidade reagiu, tendo havido confronto. Só depois a Polícia Federal foi acionada.


 


III – Conclusão e recomendações.


 


Em que pese o levantamento aqui apontado ser ainda uma amostragem parcial, necessitando de maiores complementações, impressiona o alto grau de envolvimento de agentes do poder público –  sobretudo Policiais Militares, mas também Policiais Civis, Soldados do Exército e até mesmo de Prefeitos e Vice-prefeitos Municipais – , em termos de autoria dos atos de violência,  seguindo uma tendência que já apontávamos na edição 2000 do Relatório do Centro de Justiça Global.


 


Tal circunstância evidencia acentuadamente a grande responsabilidade do Estado (por ação ou por omissão ) nas violações de Direitos Humanos sofridas pelos membros das comunidades indígenas e mesmo por estas enquanto coletividades especialmente protegidas.


 


Cremos que a superação deste tipo de situação exige do Estado Brasileiro, em primeiro lugar, reconhecer a situação de terror e insegurança em que vive grande parte da população indígena no país, muitas vezes encurralada por projetos econômicos de fortes impactos negativos sobre a vida de suas comunidades.


 


Exige também o ataque à principal fonte das violências providenciando, conforme manda a Constituição Federal:


 


a) a imediata demarcação das terras de ocupação tradicional indígena e a proteção da posse permanente e exclusiva dos índios sobre as mesmas;


 


b) a alocação do montante necessário de  recursos destinados à efetuação de todas as indenizações de benfeitorias derivadas de ocupação de boa-fé nas terras indígenas.


 


Concomitantemente, no sentido de se combater uma outra fonte das violências que é a impunidade, faz-se necessário que o Estado atue firmemente no sentido de proceder a investigações verdadeiramente sérias e competentes quanto aos casos de violações tantas vezes apontados, e que exerça o seu papel de julgar e punir exemplarmente todos os seus responsáveis.








* Texto  originalmente publicado no relatório anual “Direitos Humanos no Brasil 2001” (págs 129 a 141), da Rede  Social de Justiça e Direitos Humanos em parceria com Global Exchange. Versão integral do Relatório disponibilizada no site da ONG Rede Social de Justiça e Direitos Humanos (www.social.org.br ).



** Advogada, Assessora Jurídica no Secretariado Nacional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo anexo à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).



[1] Conselho Indigenista Missionário. Outros 500: Construindo uma Nova História. São Paulo : Editora Salesiana, 2001.



[2] CASALDÁLIGA, Pedro. In: Conselho Indigenista Missionário, Idem, p. 10.




[4] Jornal Porantim, Cimi, ano  XXIII,  n.º 235, Brasília – DF, maio de 2001, pág. 8-9.



[5] Declaração do Comitê Indígena Brasileiro contra o legado continuado de Discriminação e Racismo contra os povos indígenas do Brasil. Apresentado na Conferência das Nações Unidas contra Racismo, Xenofobia e Intolerância, 7 de setembro, 2001. Texto disponibilizado na home page do Cimi na internet (http://www.cimi.corg.br/).



[6] LACERDA, Rosane F. “Situação de Direitos Humanos dos Povos Indígenas no Brasil no ano 2000.” In: Justiça Global, Direitos Humanos no Brasil 2000. p. 20.



[7]Jornal Porantim, Cimi, ano  XXIII,  n.º 238 , Brasília – DF, setembro de 2001, p. 14.



[8] Vide os jornais Hoje em Dia, Folha de Londrina e  Gazeta do Povo, edições de 25 e 26 de abril. de 2001.



[9] Jornal de Santa Catarina, edição de 10.02.2001. “Colonos se armam contra índios no Alto Vale”.



[10] Em dezembro de 2000 tentou-se, através de um projeto de Emenda à Constituição Estadual, de autoria do Deputado Pedro Uczai, obrigar o Estado de Santa Catarina a se responsabilizar pela indenização dos colonos, mas o projeto foi derrubado pelos parlamentares governistas, maioria na Assembléia Legislativa.



[11] A competência  para as causas em que se discutam direitos indígenas é da Justiça Federal (CF/88 art. 109, XI ).



[12] Aldeia onde “se concretiza o modo de ser próprio dos Guarani Kaiowá”. BRAND, Antônio.  “Os suicídios entre os Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul”. In: Jornal Porantim, Cimi, ano XVII, n.º 178, setembro de 1995, pág. 8.



[13] Jornal Porantim, Cimi, ano  XXIII,  n.º 234, Brasília – DF, abril de 2001, p. 14.



[14] Lei n.º 4.898, de 09 de dezembro de 1965.

Fonte: Cimi - Assessoria Jurídica
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