26/07/2024

“A semente foi lançada”: 50 anos depois, povos reeditam Assembleia que impulsionou articulação nacional indígena

Cinco décadas após I Assembleia de Chefes Indígenas, nova geração de lideranças se reúne em Diamantino (MT) para discutir os caminhos e o futuro da articulação indígena

Em Diamantino, Mato Grosso, o segundo dia do evento realizado em celebração aos 50 anos da 1ª Assembleia de Chefes Indígenas foi marcado pela memória, por rituais e pela discussão das lideranças indígenas em relação à situação presente dos povos originários. Foto: Tiago Miotto/ Cimi

Por Maiara Dourado e Tiago Miotto, da Assessoria da Comunicação do Cimi

Entre os dias 24 e 25 de julho, lideranças indígenas, missionários e missionárias do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e entidades parceiras se reuniram em Diamantino, em Mato Grosso, para celebrar os 50 anos da primeira Assembleia dos Chefes Indígenas, realizada entre 17 e 19 de abril de 1974.

A Assembleia Indígena de 2024 foi realizada no mesmo local onde a primeira reunião ocorreu: a então sede da Missão Anchieta, dos jesuítas, que foi desativada nas décadas seguintes e hoje sedia o seminário diocesano “Jesus, o Bom Pastor”.

A primeira Assembleia de Chefes Indígenas, junto a outras 56 reuniões protagonizadas por importantes lideranças indígenas da época foram realizadas em territórios de pelo menos treze estados brasileiros. Ao longo de dez anos, entre 1974 e 1984, elas conformaram uma experiência inédita de articulação e união entre os povos indígenas, demarcando o protagonismo dos povos na luta por seus direitos. 

“Essas Assembleias foram dando voz aos povos que viviam oprimidos. O objetivo da Ditadura, de ‘integrar’ os indígenas à sociedade nacional, passava pela desintegração desses povos. Essa perspectiva foi rompida quando os índios começaram a ter a própria voz pelas Assembleias”, relembrou Egydio, primeiro secretário executivo do Cimi, na época recém-fundado em 1972. 

“Essas Assembleias foram dando voz aos povos que viviam oprimidos”

Em Diamantino, Mato Grosso, o segundo dia do evento realizado em celebração aos 50 anos da 1ª Assembleia de Chefes Indígenas foi marcado pela memória, por rituais e pela discussão das lideranças indígenas em relação à situação presente dos povos originários. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Para Isidoro Rikbaktsa, uma das quatro lideranças indígenas que estiveram presentes na Assembleia de 1974 e retornaram a Diamantino cinco décadas depois, o encontro serviu para “despertar a consciência de união dos povos indígenas na defesa dos seus direitos. Foi nesse contexto que devagarinho fomos entendendo que nosso desafio era fazer com que o Estado reconhecesse nós, indígenas”, considerou.

A realização dessas Assembleias se deu em um contexto de contraponto à vigência oficial da tutela, instrumento utilizado pelos militares para controlar os indígenas. Tutelados, eles não eram ouvidos e não podiam, sequer, sair de suas aldeias sem autorização do órgão indigenista: a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que, apesar de ter sido criada em 1967 para substituir o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), até a promulgação da Constituição de 1988 seguiu o paradigma de tutela estabelecido pelo seu antecessor.

“A tutela era uma espécie de guerra do Estado contra os povos indígenas”

Em Diamantino, Mato Grosso, o segundo dia do evento realizado em celebração aos 50 anos da 1ª Assembleia de Chefes Indígenas foi marcado pela memória, por rituais e pela discussão das lideranças indígenas em relação à situação presente dos povos originários. Foto: Tiago Miotto/Cimi

“A tutela era uma espécie de guerra do Estado contra os povos indígenas. A cada novo contato,novas formas de imposição se faziam presentes”, explicou Clóvis Brighenti, historiador e missionário do Cimi, ao evocar as palavras do antropólogo Antônio Carlos de Souza Lima para explicar os efeitos da política de controle e integração imposta pelo governo militar contra os povos indígenas. 

Das Assembleias desse período, participaram cerca de 85 povos, o que representava mais da metade da relação de povos originários oficialmente reconhecidos na época pelo Estado, o que impulsionou a presença indígena no cenário político nacional. Por meio delas, a pauta da demarcação de terras indígenas se fortaleceu e se consolidou em lutas pelo reconhecimento de territórios como a Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, em Roraima, e as TIs Nonoai, no Rio Grande do Sul, e Rio das Cobras, no Paraná.

50 anos depois

Cinquenta anos depois, reanimados em uma nova Assembleia, indígenas e missionários rememoram as formas de organização do passado a fim de buscar em seu legado caminhos para enfrentarem os desafios que se colocam sobre o presente e o futuro da luta indígena.

Mais de 100 pessoas participaram da Assembleia. Dentre elas, cerca de 60 lideranças indígenas de 20 povos e missionários e missionários de nove dos onze regionais do Cimi. Também participaram representantes de apoiadores, como a Misereor, e de organizações parceiras como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Operação Amazônia Nativa (Opan), cuja origem e história derivam do mesmo contexto de luta pela terra. 

Cinquenta anos depois, reanimados em uma nova Assembleia, indígenas e missionários rememoram as formas de organização do passado

Em Diamantino, Mato Grosso, o segundo dia do evento realizado em celebração aos 50 anos da 1ª Assembleia de Chefes Indígenas foi marcado pela memória, por rituais e pela discussão das lideranças indígenas em relação à situação presente dos povos originários. Tiago Mioto/Cimi

A participação dos povos do estado de Mato Grosso foi destacada pela presença de lideranças Bakairi, Kayabi, Rikbaktsa, Apyaka, Iny/Karaja, Myky, Chiquitano, Pareci, Xavante, Bororo, Umutina, Terena e Manoki/Irantxe, com a presença inclusive de representantes de povos que estiveram presentes na primeira edição da Assembleia Indígena. Somaram-se a eles, lideranças Macuxi (RR), Tupinambá (BA), Kaingang (RS), Kassupa (RO), Huni Kuî (AC), Guajajara (MA), Kanela Memortumré (MA).

As sementes

As memórias da luta contra a ditadura militar, contra a tutela do Estado e por direitos e territórios motivou a discussão, pelas lideranças, dos atuais desafios para o movimento indígena. 

“A semente foi lançada naquela época. E, a partir dessa semente lançada nesse solo, nós estamos vivenciando esse momento que, lá atrás, foi construído. Mas os 50 anos daqui para frente são mais desafiadores. Precisamos nos unir mais ainda para achar estratégias contra o marco temporal, porque estão rasgando os direitos conquistados naquela época”, considerou José Bororo, também presente na primeira Assembleia dos Chefes Indígenas.

“A semente foi lançada naquela época. E, a partir dessa semente lançada nesse solo, nós estamos vivenciando esse momento que, lá atrás, foi construído”

Em Diamantino, Mato Grosso, o segundo dia do evento realizado em celebração aos 50 anos da 1ª Assembleia de Chefes Indígenas foi marcado pela memória, por rituais e pela discussão das lideranças indígenas em relação à situação presente dos povos originários. Foto: Tiago Miotto/ Cimi

Na ocasião, foram apontados como elementos desse contexto a inércia nas demarcações de terras, os ataques contra os direitos indígenas, a continuidade da violência contra povos e comunidades e a proposta de “conciliação” em torno da Lei 14.701 e do marco temporal – entendida pelas lideranças como uma negociação inaceitável de seus direitos.

O descontentamento dos indígenas com o atual governo e o atual contexto de ataques aos seus direitos ficou evidenciado nos debates e em diversas críticas feitas pelas lideranças durante a Assembleia. Para o cacique Babau, liderança Tupinambá do sul da Bahia, ainda que este governo tenha sido eleito com o apoio dos povos indígenas e os tenha integrado como pasta ministerial, “governo vai ser governo, não importa o tempo”, frisou. 

“Governo vai ser governo, não importa o tempo”

Em Diamantino, Mato Grosso, o segundo dia do evento realizado em celebração aos 50 anos da 1ª Assembleia de Chefes Indígenas foi marcado pela memória, por rituais e pela discussão das lideranças indígenas em relação à situação presente dos povos originários. Foto: Tiago Miotto/ Cimi

Para Ninawa Huni Kui, do Acre, “pode estar indígena, não indígena, brasileiro, estrangeiro, que não vão conseguir mudar [o governo]. São pessoas diferentes, mas o sistema é o mesmo e vai  seguir sendo o mesmo, onde estivermos”, ponderou a liderança. Ninawa  reivindica outros caminhos de luta, para além daqueles feitos pelo “direito no papel”.

“O movimento da espiritualidade é o que verdadeiramente vai nos sustentar. E para quem não entende esse processo pode sofrer, porque a natureza está cobrando. A nossa espiritualidade ainda é a nossa esperança”, explicou Ninawa.

Mesa de conciliação

Outro ponto conecta a primeira Assembleia de Chefes Indígenas com a realidade presente dos povos: o local onde a primeira e a atual Assembleia ocorreram foi também, até a década de 1980, um internato e uma escola mantida pelos jesuítas para crianças da região, especialmente pobres e indígenas. Mas também estudou no local o atual ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, natural de Diamantino (MT), onde sua família possuía uma grande fazenda.

Mendes é relator de ações que questionam a constitucionalidade da Lei 14.701 e determinou que seja realizada uma “mesa de conciliação” sobre a lei – que está em vigor e reúne uma série de ataques aos direitos territoriais indígenas, incorporando inclusive a tese do marco temporal. A primeira reunião está marcada para o dia 5 de agosto.

“Como é que você é o dono do direito e vai sentar para dialogar seu direito com quem é invasor, com quem roubou seu direito, com quem te matou, com quem tomou tudo que é seu?”

Em 24 de julho de 2024, mais de 100 pessoas participaram do primeiro dia do evento que celebra a memória da 1ª Assembleia de Chefes Indígenas, ocorrida em abril de 1974, em Diamantino, Mato Grosso. Foto: Maiara Dourado/Cimi

“Como é que você é o dono do direito e vai sentar para dialogar seu direito com quem é invasor, com quem roubou seu direito, com quem te matou, com quem tomou tudo que é seu?”, questionou o cacique Babau. “Olha se isso não é uma loucura. Eu não sento para negociar com fazendeiro. Eu não sento pra negociar com governo a minha terra. Cabe ao governo demarcar como a gente determinar”.

Primeira Assembleia

A preocupação em fazer uma Assembleia dos indígenas, e não com ou para indígenas, marcou fundamentalmente a realização do primeiro encontro em Diamantino (MT).

O encontro de 1974, que reuniu 16 lideranças de nove povos – Kayabi, Rikbáktsa, Apyaká, Nambikwara, Chiquitano, Paresi, Xavante, Bororo, Irantxe e Tapirapé – “não teve outro objetivo senão propiciar aos chefes indígenas a oportunidade de se conhecerem e de falarem com toda a liberdade, sem nenhuma pressão, sem nenhuma orientação de fora”, afirmou padre Antonio Iasi, em relato publicado em maio de 1974 no boletim do Cimi.

O encontro de 1974 “não teve outro objetivo senão propiciar aos chefes indígenas a oportunidade de se conhecerem e de falarem com toda a liberdade”

Em Diamantino, Mato Grosso, o segundo dia do evento realizado em celebração aos 50 anos da 1ª Assembleia de Chefes Indígenas foi marcado pela memória, por rituais e pela discussão das lideranças indígenas em relação à situação presente dos povos originários. Foto: Tiago Miotto/ Cimi

Para isso, a dinâmica da Assembleia foi organizada de forma que as lideranças indígenas pudessem definir por conta própria os caminhos e as soluções para problemas comuns que coletivamente os atravessavam. A participação de não-indígenas na ocasião foi limitada a cinco pessoas e em apenas alguns momentos, com pouco espaço de fala. Um documento produzido à época registra a riqueza das discussões (acesse aqui).

“O resultado foi surpreendente: os índios redescobriram que devem ser sujeitos de seus destinos, não é a Funai, nem são as Missões, os que resolverão os problemas deles. Mas, ‘nós mesmos’, como afirmaram insistentemente”, explicou então padre Iasi, também um dos fundadores do Cimi.

“O resultado foi surpreendente: os índios redescobriram que devem ser sujeitos de seus destinos”

Em 24 de julho de 2024, mais de 100 pessoas participaram do primeiro dia do evento que celebra a memória da 1ª Assembleia de Chefes Indígenas, ocorrida em abril de 1974, em Diamantino, Mato Grosso. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Os participantes, no entanto, não passaram apenas a se reafirmar indígenas, mas indígenas desde suas diferenciações étnicas como “Pareci”, “Kayabi”, “Rikbáktsa”, sujeitos que integravam uma mesma coletividade, mas reconhecendo suas devidas diferenças.

A mesma dinâmica conduzida pelos povos indígenas naquela primeira Assembleia de 1974 se repetiu neste encontro de lideranças. Elas se reuniram, sem a participação de missionários e não indígenas, para elaborar suas próprias estratégias e pensar, coletivamente, a articulação atual do movimento indígena.

Os participantes, no entanto, não passaram apenas a se reafirmar indígenas, mas indígenas desde suas diferenciações étnicas

Em Diamantino, Mato Grosso, o segundo dia do evento realizado em celebração aos 50 anos da 1ª Assembleia de Chefes Indígenas foi marcado pela memória, por rituais e pela discussão das lideranças indígenas em relação à situação presente dos povos originários. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Como resultado, os indígenas produziram uma carta que repudia a atual postura do governo e do STF, que tem mediante a criação de uma mesa de conciliação colocado em risco os direitos territoriais garantidos pelos artigos 231 e 232 da Constituição Federal. 

“Repudiamos o posicionamento do ministro Gilmar Mendes, por não reconhecer de ofício a inconstitucionalidade da lei 14.701 de 2023, pois o próprio STF julgou contra a tese do marco temporal. Exigimos que o STF, por meio do ministro relator julgue pela nulidade desta lei na sua íntegra. Informamos que nós, povos indígenas, do Mato Grosso e de todo o Brasil não reconhecemos a validade desta lei e iremos tomar todas as medidas necessárias para se fazer garantir e respeitar os nossos direitos originários”. 

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