24/03/2025

Povo Guegue do Sangue: da Balaiada a Brasília, uma história de resistência e luta pela terra

Delegação com quase 30 indígenas está em Brasília durante esta semana para reivindicar direitos territoriais, de saúde e educação, além de ações contra o marco temporal

Família do cacique Aurélio Guegue do Sangue: história de resistência dos povos indígenas no Piauí. Foto: Hélio Pereira/Cimi Regional Nordeste

Por Assessoria de Comunicação – Cimi Regional Nordeste

A história dos Guegue do Sangue é a história das populações indígenas expropriadas, exploradas e violentadas no sul do Piauí a partir da segunda metade do século XIX. Há mais de uma década, os Guegue tomaram as rédeas da história e nesta semana desembarcam em Brasília para tratar de demandas territoriais, denunciar as agressões que sofrem e consolidar o povo nas lutas do movimento indígena.

Entre um território estabelecido e outros ainda sob regime de retomada, os Guegue do Sangue traçam o dia a dia. “Nossa situação é bastante complicada (…) a Prefeitura (de Uruçuí) não deixa a gente trabalhar em paz (nas terras reivindicadas), pessoal (grileiros) invadindo, caçando dentro da aldeia. Queremos a demarcação das nossas terras. Há 14 anos que a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) fez estudos no Sangue (território consolidado) e até agora estamos aguardando”, diz o cacique Aurélio Guegue do Sangue.

Na Capital Federal, os Guegue do Sangue, ao lado dos Akroá-Gamella do Piauí, que juntos compõem uma delegação com quase 30 indígenas, irão à Funai, aos ministérios dos Povos Indígenas (MPI), Meio Ambiente (MMA) e Educação (MEC), além do Ibama, Ministério Público Federal (MPF) e Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), ligado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC).

A delegação também irá ao Supremo Tribunal Federal (STF) acompanhar uma sessão, ocasião em que pretendem também fazer um ritual com toré na Praça dos Três Poderes, na Esplanada dos Ministérios. “A gente entende que a luta pela terra no Piauí é parte de uma luta geral, dos povos indígenas, e esse marco temporal existe para criar dificuldades ao nosso direito”, explica cacique Aurélio.

Racismo e ausência da Funai

“A gente quer voltar para o Piauí com um encaminhamento das nossas terras. A gente vive muito preconceito. Na rua chamam a gente “índio da shopee”. É meio complicada a vida do indígena em Uruçuí. Temos problemas com educação e saúde. Não andam lá, não dão satisfações”, explica o cacique Aurélio.

Quanto à Funai, o cacique explica que a atuação do órgão indigenista é restrita. “Tivemos que contratar um advogado particular para tratar dos nossos problemas (sobretudo reintegrações de posse). Fizemos um memorial, mapa da terra. A parte da Funai no Piauí está faltando porque eles não estão no estado. Se a Funai atuasse no Piauí seria muito importante pra gente”, afirma.

Piauí, Sergipe e Rio Grande do Norte são os estados do Nordeste que não contam com escritórios da Funai, conforme o mapa de unidades da Funai pelo Brasil, sendo cobertos de forma improvisada pelas coordenações regionais (CRs). A CR Nordeste 1 abrange os estados de Alagoas, Pernambuco e Sergipe. Já a CR Nordeste 2, atende o Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte. O estado do Maranhão tem a sua própria CR.

“A gente quer voltar para o Piauí com um encaminhamento das nossas terras. A gente vive muito preconceito. Na rua chamam a gente índio da shopee”, diz cacique

Contando com poucos servidores, esbarrando em questões orçamentárias e burocráticas, o órgão indigenista acaba atendendo de forma morosa as demandas dos povos no Piauí. A reivindicação, portanto, é que a Funai abra uma Coordenação Técnica Local (CTL) no estado.

Os Guegue do Sangue têm o povoado Sangue, na zona rural de Uruçuí, como território tradicional, para onde algumas famílias passaram a voltar na última década. Há outras famílias na sede e em outras localidades do município, além da Baixa Grande do Ribeiro. Há, ainda, famílias que se organizam em Minas Gerais, nas cidades de Belo Horizonte e Paraopeba, e em Goiás.

Artefato arqueológico encontrado pelos Guegue do Sangue em área retomada pelo povo. Foto: Hélio Pereira/Cimi Regional Nordeste

Sempre estivemos aqui

Conforme o professor e pesquisador João Paulo Peixoto Costa, do Instituto Federal do Piauí, as pesquisas sobre os povos indígenas no estado estão apenas no início, “mas já conhecemos registros de atuação desses povos em eventos como a Balaiada, quando comunidades e indivíduos ainda viviam de forma autônoma e sujeitos a genocídios e à escravidão”.

A Balaiada foi uma revolta popular que teve como epicentro o Maranhão entre 1838 e 1841 – como estado, o Piauí só foi criado em 1889, após a Proclamação da República. O movimento, protagonizado por indígenas e população negra escravizada, foi motivado pela insatisfação com a pobreza, escravidão e a violência perpetrada por latifundiários associados ao poder político e econômico da época.

O professor explica que com o fortalecimento das elites políticas locais durante a Ditadura Civil-Militar, entre os anos 1960 e 1970, e a consolidação do agronegócio a partir das décadas de 1980 e 1990, as dinâmicas territoriais dos Guegue do Sangue foram diretamente impactadas.

“A partir de meados dos anos 2000, mas, principalmente, da década de 2010, muitas comunidades passaram a se organizar politicamente em torno de pautas étnicas e territoriais, e os Guegue do Sangue fazem parte deste contexto. Iniciaram a luta pela posse do território tradicional na região do povoado Sangue, de onde foram expulsos há tempos, e de onde afirmam vir seus antepassados indígenas”, explica João Paulo.

Passaram então a reivindicar o etnônimo Guegue entre 2018 e 2019, grupo que historicamente habitava a margem sul-leste do rio Parnaíba, “mas sempre associando ao local de origem: por isso, Guegue do Sangue”. As histórias repassadas em sua oralidade, inclusive, batem com o que o pesquisador encontrou em documentação.

“Ou seja, contrariando os detratores, que, no mínimo, desconhecem a história do Piauí, os povos indígenas sempre estiveram por ali”, completa João Paulo

Retomada coletiva 

A retomada coletiva do território do Vão Seco, na zona rural de Uruçuí, é protagonizada pelos Guegue do Sangue e Akroá-Gamella, de forma coletiva, o que para o professor João Paulo “é a expressão de um contexto de fortalecimento dos movimentos e das consciências políticas dessas populações”.

Apesar de se tratar de dois grupos familiares diferentes, explica o professor, esses povos foram vítimas dos mesmos processos de violências, expulsões, mas, também, de aprendizado na luta popular.

“Seus membros estão se formando e crescendo juntos enquanto coletividades, tanto na ação quanto no compartilhamento das conquistas, que marca o movimento indígena no Piauí desde meados dos anos 2000, que é, por sua vez, uma etapa fundamental da luta política indígena no Nordeste. E tudo isso é feito por meio da reivindicação dos territórios que outrora foram ocupados pelos seus ancestrais”, explica João Paulo.

Há pouco tempo, o Piauí era listado como um dos estados “sem índios”

Há pouco tempo, o Piauí era listado como um dos estados “sem índios”. O discurso do extermínio indígena no estado se consolidou em meados do século XIX, conforme destaca o professor, de forma muito semelhante ao que ocorreu em outras províncias do Brasil.

“Os detalhes precisam ser melhor conhecidos pelas pesquisas em andamento, mas já sabemos que tanto o argumento da “mistura biológica”, tão caro a um cientificismo oitocentista, que trabalhava com “purezas raciais”, quanto o da perda de características culturais atuavam juntos na busca de comprovar uma inexistência, e, assim, evitar políticas especiais de proteção estatal e se apropriar de territórios tradicionais”, analisa.

Vista da retomada Guegue do Sangue, no sul do Piauí. Foto: Hélio Pereira/Cimi Regional Nordeste

Tomada de consciência

As investigações acadêmicas não param de encontrar registros dessas populações que, na verdade, seguem vivas no Piauí. Casos como os do Guegue do Sangue e dos Akroá-Gamella tendem a ganhar ainda mais densidade e desdobramentos.

Algumas dessas populações já eram bem diferentes de seus antepassados de séculos atrás. Nada disso as “desindianizava”, conforme os pesquisadores constatam: “ao contrário, tais mudanças revelavam o quanto suas condições étnicas e culturais eram históricas, já que eram, assim como qualquer povo de ontem e hoje, seres humanos”, diz João Paulo.

A ideia de um “estado sem indígenas”, consolidada no século XX, não passava de uma farsa articulada entre autoridades políticas e intelectuais

Umas das maiores provas do que o professor atesta são os censos populacionais de 1872 e 1890, uma das ramas da pesquisa, que colocavam o Piauí entre a 6ª e a 7ª província com a maior população percentual indígena do império do Brasil.

“Logo, a ideia de um “estado sem indígenas”, consolidada no século XX, não passava de uma farsa articulada entre autoridades políticas e intelectuais, e os movimentos indígenas que temos hoje podem ser só o começo de uma tomada de consciência inimaginavelmente mais ampla, conclui.

Grilagem em território reivindicado pelos Akroá-Gamella de Uruçuí e Guegue do Sangue tem distribuição de placas com nomes e telefones dos beneficiados. Foto: Comunidade Akroá-Gamella

Histórico recente

“Queremos a demarcação do Toco Preto, do Sangue, do Vão Seco. O Sangue tem 14 anos que a Funai fez levantamento. O indígena vive de caça, pesca, frutos. Precisamos da floresta para fazer nossos remédios, nossas danças, nossa cultura (rituais) e ensinar os nossos filhos como é um indígena”, diz cacique Aurélio. Sem a demarcação, os Guegue do Sangue e Akroá-Gamella resistem a uma verdadeira corrida grileira nos territórios que habitam e reivindicam.

A grilagem em território reivindicado pelos povos Akroá-Gamella e Guegue do Sangue aumentou a partir de setembro do ano passado. Interessada nos desdobramentos das atividades ilegais contrárias à presença indígena em uma terra cobiçada, a Prefeitura de Uruçuí chegou a se dirigir à população, em novembro de 2024, para informar que ingressou com uma ação de reintegração de posse contra a retomada Vão Seco, dividida entre os povos Akroá-Gamella e Guegue do Sangue.

Mesmo operação, a grilagem não parou. Dias depois da operação, mais pessoas apareceram para colocar placas como se fossem donos de lotes

A Polícia Federal (PF) deflagrou no dia 19 de fevereiro a Operação Aldeia Verde, nos estados do Piauí e do Paraná. Foram realizadas prisões e cumpridos mandados de busca e apreensão com o intuito de desbaratar quadrilha envolvida em grilagem de terras dos povos Akroá-Gamella e Guegue do Sangue.

No esquema, conforme a investigação, empresários investem elevadas cifras, mas ainda assim bem abaixo dos valores praticados no mercado, para a aquisição de terras indígenas por meio da utilização de falsos posseiros, que atuavam como “laranjas” de intermediários, em processos administrativos forjados no Instituto de Terras do Piauí (Interpi).

“Mesmo com a operação, a grilagem não parou. Dias depois da operação, mais pessoas apareceram para colocar placas como se fossem donos de lotes. Isso aumenta as ameaças. Nossas lideranças vivem ameaçadas. Por isso demarcar é importante também, é uma forma de dizer que aquelas terras ali tem dono, são nossas terras”, afirma o cacique Aurélio.

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