Cimi Regional Norte I realiza Fórum das Equipes, a roda de conversa reflete a missão e fortalece a esperança em defesa dos povos
Missionários, missionárias e organizações parceiras compartilharam análises, percepções, opiniões, abraços, fé e esperanças, quesitos que impulsionam a missionariedade do Cimi
“É preciso ter esperança, mas esperança do verbo esperançar. Porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, é ir atrás, é construir, é não desistir. Esperança é levar adiante, é juntar-se com outros para fazer de outro modo”.
Esse pensamento de Paulo Freire foi uma das reflexões que impulsionou missionárias, missionários e organizações religiosas indigenistas parceiras do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) reunidos no Fórum das Equipes do Regional Norte I, realizado nos dias 11 a 15 de julho, no Centro de Formação Xare, em Manaus.
“É preciso ter esperança, mas esperança do verbo esperançar”
As equipes do Cimi Regional Norte I estão distribuídas nas diferentes regiões dos estados do Amazonas e Roraima: Javari, médio Solimões, médio Juruá, Lábrea, Marmelos, Borba, Equipe de Apoio aos Povos Livres (Eapil), Equipe Itinerante, Roraima e Pastoral Indigenista de Roraima. Todos os anos se reúnem para celebrar, partilhar, socializar, se abraçar e avaliar os desafios enfrentados por cada equipe. Também é um momento de planejar ações que dão rumo ao caminhar, de forma abordar os desafios que os povos indígenas enfrentam diante dos ataques a sua existência, que parecem não ter fim.
O cenário político brasileiro para os povos indígenas a cada ano se apresenta mais violento. Apesar da mudança de governo, o poder econômico, que mercantiliza tudo e a todos, não dá trégua. Age com truculência, violenta à integridade física e assassina corpos, faz uso das leis para legitimar o extermínio das identidades e culturas indígenas.
“O cenário político brasileiro para os povos indígenas a cada ano se apresenta mais violento”
No entanto, esse cenário desolador é suplantado pelo sentimento que une e alimenta as forças das missionárias e missionários do Cimi, como foi visto e sentido no Fórum das Equipes do Regional Norte I. É o que diz Raimunda Paixão, missionária do Cimi integrante da equipe itinerante há mais de 20 anos, quando analisa o Fórum como um momento de integração.
“Nos encontramos para um abraço e para a partilha de vida e da missão, trazemos entre nós as notícias dos povos que estão sendo massacrados, sofrendo, mas que também estão resistindo, que estão na luta. Isso dá uma importância muito grande para que nós, juntos, continuemos crescendo como Cimi, ao lado dos povos indígenas na caminhada em busca da defesa da vida, em busca do bem viver, como eles próprios dizem. Somos poucos, mas crescemos em número e força quando nos encontramos e construímos a história de defesa dos direitos indígenas”.
“Nos encontramos para um abraço e para a partilha de vida e da missão, trazemos entre nós as notícias dos povos”
Ao navegar pelos rios do Amazonas e trilham as estradas de Roraima, Missionárias e missionários do Cimi Regional Norte I, trazem em sua bagagem direto dos territórios onde atuam, informações e conhecimentos, afetos, orações e esperanças vividas e partilhadas pelos indígenas.
À luz desses conhecimentos, o Fórum das Equipes avaliou temas que conduziram os mais de 50 anos de história do Cimi. Analisou a Lei 14.701/2023 e suas atrocidades. Sentiu a importância das parcerias que constroem unidas as estratégias de luta em defesa dos povos tradicionais, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) que esteve presente, e soma na construção de mais uma etapa da história do Regional Norte I.
“Fórum das Equipes avaliou temas que conduziram os mais de 50 anos de história do Cimi”
“Foi um momento de muita mística, de acolhida de novas pessoas, de (re)encontrar, partilhar e projetar a caminhada para o segundo semestre. De celebrar a vida, de olhar os problemas, planejar os próximos passos e ir mais à frente nos desafios da luta em favor dos povos indígenas, de suas vidas e comunidades”, diz Gilmara Fernandes, coordenadora colegiada do Cimi Regional Norte I, ao afirmar que o que move a missionariedade do Cimi é a prática do esperançar.
Durante os estudos sobre a Lei 14.701, o sentimento foi de que ela é uma grande investida contra as esperanças de fazer valer a Constituição Federal, em especial os artigos 231 e 232 que protegem os direitos e a vida indígena. Além de trazer a tese do marco temporal em destaque, a lei desconsidera as violentas expulsões dos indígenas de seus territórios, permite exploração dos recursos naturais nos territórios sem consulta aos indígenas, dificulta demarcações e coloca as já demarcadas em risco, entre outras atrocidades.
“Foi um momento de muita mística, de acolhida de novas pessoas, de (re)encontrar, partilhar e projetar a caminhada para o segundo semestre”
Os trâmites e a aprovação da lei pelo Congresso Nacional, aconteceu logo após o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), declarar o marco temporal inconstitucional, evidenciando a intenção da bancada ruralista em não acatar a decisão da Suprema Corte.
Da mesma forma, a proposta de Emenda Constitucional nº48/2023, que “altera o artigo 231 da Constituição Federal para definir marco temporal de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas” é uma provocação para desafiar as esperanças na luta.
“A aprovação da lei pelo Congresso Nacional, aconteceu logo após o plenário do STF, declarar o marco temporal inconstitucional”
Com essas duas ações, que têm a frente a bancada ruralista no Congresso Nacional, o sentimento é de que a causa indígena está perdida e que suas vidas terão fim. Mas, não para missionárias e missionárias do Cimi. A fé e a esperança são sentimentos que impulsionam a vida missionária. Quanto mais estratégias e ataques, mais força se encontra para lutar e vencer.
Com relação a Lei 14.701, seguem alguns depoimentos, que mostram a força e o esperançar dos missionários e missionárias do Cimi Regional Norte I.
Pe Fernando Lopes, jesuíta e um dos formadores da Equipe Itinerante
Certa vez, um jovem Tikuna que vive no tríplice fronteira entre Brasil, Colomba e Peru disse: “eu não entendo isso das fronteiras. Meu pai vive do outro lado do rio Solimões, na margem direita, e vocês dizem que ele é peruano. Meu irmão, ele sobe o rio Solimões, na margem esquerda, e vocês dizem que ele é colombiano. Eu moro aqui e vocês dizem que eu sou brasileiro. Essa lógica de fronteira é um problema de vocês. Nós somos Tikuna estamos aqui antes de vocês chegarem”. O marco temporal é uma fronteira que se quer impor para demarcação e reconhecimento de povos indígenas, é uma doidice nossa [dos não indígenas], porque eles estão aqui antes do Estado Nacional instalar-se. A grande coerência ou incoerência é que essa imposição tem o interesse do grande capital de explorar até os últimos recursos que ficam dentro das áreas indígenas que são as mais protegidas. É mercantilizar tudo e destruir nossa própria existência.
Esperançar: devemos cultivar e praticar o esperançar. A espiritualidade, a compreensão profunda dos povos indígenas de que somos parte de um todo interligado. Os povos indígenas são a lembrança viva de que somos seres como os outros seres e que a vida só pode fluir.
Hoadson Leonardo Silva, missionário do Cimi Norte I, Equipe Borba
Essa lei e essa PEC 48 vieram como um estrangulamento dos povos indígenas e de todos que lutam em favor deles. Vimos um tempo muito feio se fechando, mas ao mesmo tempo estamos redobrando as forças.
Esperançar: sabemos que é possível reverter isso tudo. Nossa esperança se alimenta cada vez mais porque não estamos sozinhos. Somamos nossas forças às forças dos povos indígenas, que são os mais resistentes. Caminhamos juntos para resolver essa situação que é muito grave. Temos que ter esperança redobrada, respirar fundo, levantar a cabeça e conversar, dialogar com as comunidades, com as bases e organizações, para que não nos empurrem num canto de parede, acuados. Estamos reagindo.
Raimundo Freitas. missionário do Cimi Norte I, Equipe médio Solimões
Essa lei é desafiadora e algo que não se consegue enxergar nenhuma brecha de salvação da forma que ela foi aprovada pelo Senado. Os elementos são muito nocivos, que totalmente modifica o artigo 231 da Constituição. Eles tentaram fazer isso através da tese do marco temporal e não deu certo e implementaram isso dentro dessa lei. E isso de uma maneira muito agressiva, fecha todos os espaços e abre para que outros setores do Estado brasileiro também interfiram na demarcação. Antes era só o interesse relevante da União, agora Estados e municípios lei também são partes interessadas dentro dos territórios. Isso é muito nocivo.
Esperançar: a mobilização ainda seria a melhor estratégia, a pressão, a forma de mobilizar para pressionar, de uma forma geral, o judiciário mesmo. E acreditar que o judiciário, o Supremo Tribunal Federal, nossos ministros que estão lá, eles são os guardiões da Constituição, então podem muito bem reverter isso.
Pedro da Silva Souza, missionário do Cimi Norte I, Equipe Marmelos
Essa lei é imposta pelo sistema capitalista devastador. Há mais de 500 anos os povos indígenas vêm sendo oprimidos. Em pleno ano 2023, o Congresso brasileiro, que sempre foi anti-indígena, coloca um marco para a destruição da vida dos povos indígenas. Na Amazônia, muito foram dizimados e expulsos dos territórios pelas frentes extrativistas. Os que sobreviveram dizem: “até uns anos atrás, a gente não falava que a gente era índio, porque se a gente falasse, o patrão expulsava nós daqui. Mas eu nasci aqui, meus filhos nasceram aqui, meu pai é daqui”. Eles não estão aqui só há 500 anos. Eles estão aí, sei lá, 5 milhões de anos vivendo aqui.
Esperançar: eu acredito que dá pra ter esperança porque é uma luta constante. Durante a ditadura, resistiram apesar dos assassinatos. Os militares diziam que até o ano 2000 não iria existir mais ‘índio’ nesse país porque iriam estar todos integrados. “Vão ser todos cidadãos brasileiros”, diziam. Mas, não contavam com a resistência indígena. Estamos em um momento difícil, complicado, mas eu vejo esperança no fortalecimento da luta do movimento indígena.
Queops Silva Melo, missionário do Cimi Norte I, Equipe Lábrea
Essa Lei 14.701 é totalmente inversa àquilo que está na Constituição, ao que foi conquistado pelos povos indígenas. Ela só vem tentar fazer o que já iniciaram em 1500: acabar com os povos indígenas ou fazer a total integração [deles à nossa sociedade]. É um projeto de morte, que só vem a beneficiar o grande capital.
Esperançar: a gente vê com esperança a luta do movimento indígena. Toda essa mobilização que acontece ao redor da lei. E isso fortalece a esperança de que o poder judiciário de fato faça justiça. Que não dê brecha, não dê esse entendimento que o capital quer impor sobre o direito dos povos indígenas.
Daniel Lima, missionário do Cimi Norte I, Equipe Lábrea
Os indígenas estão se sensibilizando e resistindo diante das propostas de assédio para mercantilizar seus territórios. Porque eles estão vindo como um trator de esteira com suas estratégias. Eles chegam de forma a aliciar as comunidades.
Esperançar: há esperança de os indígenas perceberem a armadilha. A esperança sempre brota. Ela é sempre é viva. E eu acredito na capacidade das comunidades despertarem, apesar de toda essa malícia que os cercam. Eles também têm o seu modo de ver as realidades. Aqui no Fórum, apesar de ser dolorido tudo o que ouvimos da lei, fortalecemos as esperanças. Estamos diante do monstro do marco temporal, mas essa unidade nos torna corajosos.
Raimunda Paixão Braga, missionária do Cimi Norte I, Equipe Itinerante
É como um trator que vem passando por cima de tudo. Estamos num Brasil que parece que não é o nosso Brasil. Que se fala tanto em democracia, enquanto que um grupo de políticos fica mandando em tudo, como se o resto do povo não existisse. Principalmente os povos indígenas. Eu sou indígena e isso me dói profundamente. Sinto indignação e me dói o coração de saber que o que é nosso está sendo violado.
Esperançar: sinto isso como desafio e desafios fazem a gente crescer na luta por aquilo que é nosso. Somos brasileiros e brasileiras e vamos lutar para não nos mandarem embora. Tenho esperança porque confio na luta do povo indígena. Tem muita gente que quer destruir, tem esse agronegócio passando por cima, mas tem pessoas que lutam para reverter o quadro. Todas as vidas que existem na Amazônia estão em jogo. Por isso sei que os povos indígenas vão continuar lutando. Não vão deixar que o mal prevaleça sobre o bem, sobre a vida tanto a biológica como a vida do planeta.
Urbano Mueller, missionário do Cimi Norte I, Equipe Javari
Essa lei é um retrocesso tremendo da democracia, das leis, da Constituição. É uma afronta total à Constituição, porque se ela é a lei máxima no país, o próprio Congresso não a respeita. É um desgoverno que está aí com um novo colonialismo, onde o senhor manda. Os escravos são os povos indígenas e os poucos políticos que mandam fazem o que querem. É uma forma de exterminar, de tirar esses povos dos seus territórios, assim como foi em 1500 e como foi na ditadura militar. Hoje, eles não matam ou caçam como matavam e caçavam os ‘índios’. A forma hoje é sutil de acabar com os indígenas. Com essa lei, não vão ter mais seu lugar, sua maneira de viver, seu sustento. É um extermínio que vai acontecendo de forma invisível.
Esperançar: esperança é como dizia Dom Pedro Casaldáliga: “esperar contra toda esperança”. Mas, a esperança está na união e na continuação da resistência. Apesar de parecer impossível diante da imensidão desse retrocesso, desse poder econômico que está massacrando, a esperança está na resistência dos povos que há mais de 500 anos resistem e se fortalecem.
Raimundo Francisco de Souza Silva, missionário do Cimi Norte I, Equipe médio Juruá
Da forma como foi aprovada [a PEC 48] não se consegue enxergar uma brecha de salvação. Os elementos são muito nocivos, que modifica totalmente o artigo 231 da Constituição. Eles tentaram fazer isso através da tese do marco temporal e não deu certo, mas, implementaram dentro dessa lei. De maneira muito agressiva, fechando todos os espaços para os indígenas e abrindo para que outros setores, o Estado brasileiro também interfere nas demarcações. Antes era só o interesse relevante da União, agora, estados e municípios também são partes interessadas dentro dos territórios. E todos os pontos, artigos e incisos mostram o quanto é nociva para os direitos territoriais dos povos indígenas.
Esperançar: os povos indígenas vão achar um mecanismo, uma estratégia para enfrentar a situação. A saída são as mobilizações e a pressão junto ao judiciário, junto à mídia para dar visibilidade tanto nacional quanto internacionalmente. E acreditar que eles [ministros do STF] vão votar pela inconstitucionalidade do marco temporal. Nós e os povos acreditamos que os ministros, que são os guardiões da Constituição, podem reverter isso. Se eles não fizerem será contradizer a história do Brasil. O jogo político é duro, mas, uma luz no final do túnel é acreditar ainda na justiça e no judiciário.
Pe Mattia Bezze, Pastoral Indigenista de Roraima
A experiência mais chocante ao ler a lei foi ver as besteiras, não sei que palavra usar, com o jeito tão horrível que esta lei tem. Ler frase por frase, ver até onde chegou à ideia de quem fez esta lei. Foi muito chocante ver que foram pensados todos os detalhes para poder passar em cima e eliminar qualquer direito dos povos originários que já estão nestas terras desde sempre. Com esta lei os indígenas vão ter menos direitos que qualquer outra pessoa na terra deles. Entender profundamente a lei e debater com os missionários e missionárias foi uma experiência difícil, mas útil para perceber que tem muitas pessoas lutando e que, às vezes, parece sempre a luta do Davi contra o Golias, do pequeno contra o impossível.
Esperançar: a esperança sempre vem, sobretudo dos povos originários, que eles não têm medo de lutar, eles vão para frente. Lá da minha terra de Roraima, o Tuxaua maior do CIR [Conselho Indígena de Roraima] falou muito claro para os políticos que ele não vai aceitar [a lei]. A esperança vem da base, da luta dos povos originários que não têm medo de seguir para a frente.