13/03/2024

Povo Karaxuwanassu enfrenta batalha no TRF-5 para evitar despejo de retomada em contexto urbano

O processo corria na Justiça Estadual, mas recurso da DPU o transferiu para a instância federal. Sessenta famílias vivem na aldeia Marataro Kaeté

Integrantes da aldeia Marataro Kaeté na área de 120 hectares retomada no município de Igarassu (PE). Foto: Arnaldo Sete/Marco Zero Conteúdo

Renato Santana, da Assessoria de Comunicação do Cimi Regional Nordeste

Os povos indígenas de Pernambuco voltam mais uma vez seus maracás ao Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), com sede no Cais do Apolo, em Recife. Por lá tramita um novo processo judicial tratando de um antigo fantasma que assombra a vida desses grupos: o despejo de famílias e indivíduos de terras onde hoje prosperam de forma comunitária.

Depois da vitória dos Xukuru do Ororubá contra a reintegração de posse de uma de suas aldeias, no final do ano passado, três desembargadores da 4ª Turma do tribunal analisam um recurso da Defensoria Pública da União (DPU) contra decisão que visa retirar o povo Karaxuwanassu da retomada Aldeia Marataro Kaeté, na Estrada do Monjope, em Igarassu, região metropolitana da capital pernambucana.

Programada para esta terça-feira (12), a apreciação da matéria pelos desembargadores foi retirada de pauta no início da sessão e ainda não há uma nova data definida. O Ministério Público Federal (MPF) pediu o adiamento do julgamento alegando que não teve a oportunidade de se manifestar nos autos, ao que foi atendido pela 4ª Turma.

A ação de reintegração de posse é de autoria da Prefeitura de Igarassu e foi impetrada inicialmente na Justiça Estadual, considerada incompetente para tratar de assuntos indígenas envolvendo disputa territorial. Com a sinalização do interesse da Fundação Nacional do Índio (Funai) pelo caso, o processo foi deslocado em grau de recurso ao TRF-5, instância federal.

“Após o TRF-5 julgar este recurso da DPU, o processo deve voltar para a 1ª instância da Justiça Federal, onde já existe um processo aberto tratando do caso, dando, assim, seguimento à instrução processual”, explica o assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Daniel Maranhão, que acompanha o povo Karaxuwanassu.

O advogado diz ainda que a decisão dos desembargadores instruirá os autos, podendo permanecer a reintegração determinada pela Justiça Estadual, suspendê-la ou remeter o processo para a Comissão de Conflitos Fundiários.

A Prefeitura de Igarassu nega que a área estivesse abandonada

Terra abandonada

Este é mais um episódio da batalha iniciada pelos indígenas há pouco mais de um ano com o movimento de ocupação e permanência no território de 120 hectares, então abandonado pelo Poder Público municipal, com exceção de um galpão usado como depósito, em uma região de mata de Igarassu atrativa à reprodução física, cultural e social do povo.

Por meio de nota, a Prefeitura de Igarassu nega que a área estivesse abandonada quando retomada pelos indígenas, sendo dotada de energia elétrica, circuito interno de monitoramento e a circulação de funcionários. Todavia, os indígenas reiteram que apenas um galpão vinha sendo utilizado. Todo o resto da área, incluindo outras estruturas, estavam em situação de abandono.

No dia 28 de julho de 2023, o TRF-5 já havia dado decisão favorável ao pedido da Prefeitura de Igarassu determinando o despejo da comunidade Karaxuwanasu da área retomada. Baseada nessa decisão, a DPU ajuizou o recurso, chamado de agravo interno.

O papel do Estado é reconhecer as fronteiras das terras indígenas, mas não é este ato que constitui a terra como indígena

O Ministério dos Povos Indígenas enviou ofício aos desembargadores da 4ª Turma. No documento, a ministra Sônia Guajajara procura dialogar com o Judiciário para que, como poderes do Estado, possam se ater às prerrogativas constitucionais que asseguram aos povos indígenas direitos territoriais.

“As ações de recuperação territorial conhecidas como retomadas de terras têm sido levadas a cabo por povos indígenas de todas as regiões do país (…) constituindo forma de ação coletiva (…) decisiva para a efetivação dos direitos indígenas em um cenário de recorrente omissão e morosidade por parte do Poder Público”, ressalta trecho do ofício.

A ministra lembra ainda de recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), caso da Ação de Descumprimento de Preceito Constitucional (ADPF) 709, reforçando que o papel do Estado é reconhecer as fronteiras das terras indígenas, mas não é este ato que constitui a terra como indígena, lembrando que esta condição é preexistente e a demarcação é ato meramente administrativo.

No documento, a ministra Sônia Guajajara também faz referência à condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no caso povo Xukuru do Ororubá x Estado brasileiro, pela morosidade na garantia dos direitos territoriais dos povos indígenas, bem como ressalta a Resolução 454 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) envolvendo o acesso ao Judiciário pelos indígenas.

A retomada é um “processo de revitalização cultural e uma reconfiguração social e política do nosso povo”

O MPI “manifesta sua preocupação com a possibilidade de o desfecho desse julgamento obstaculizar ou mesmo inviabilizar os direitos do povo Karaxuwanassu”, destaca trecho do ofício.

Na retomada, o povo já realizou duas assembleias e possui uma organização representativa, a Associação Indígena em Contexto Urbano Karaxuwanasu (Assicuka). A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) atende a aldeia e a Funai está ciente da demanda territorial e abriu procedimento para a demarcação física da terra.

Os Karaxuwanassu, etnônimo que abarca famílias indígenas de povos variados, sobretudo residentes em contexto urbano na região metropolitana do Recife, afirmam, em manifesto de março de 2023, que a retomada é um “processo de revitalização cultural e uma reconfiguração social e política do nosso povo”.

“Logo na primeira conversa a prefeita Elcione Ramos (PSDB) já falou em despejo, reintegração de posse”, pajé Juruna Karaxuwanassu

Tentativas de conversa

O pajé Juruna Karaxuwanasu afirma que a Prefeitura de Igarassu se mostrou irredutível sobre a demanda do povo. “Logo na primeira conversa a prefeita Elcione Ramos (PSDB) já falou em despejo, reintegração de posse. Tentamos mostrar que uma Terra Indígena traz benefícios para os municípios, além de um direito nosso”, diz.

Posteriormente, a Prefeitura alegou que usaria o espaço para a construção de uma escola municipal. Na ocasião não havia mais detalhes a respeito do projeto, mas os Karaxuwanassu afirmaram que poderia ser proveitosa a iniciativa: a escola e a Terra Indígena poderiam formar uma parceria em benefício dos estudantes do município, coexistindo em um espaço voltado à educação ambiental.

Na retomada vivem ainda famílias do povo Warao, imigrantes da Venezuela que encontraram na aldeia a possibilidade de uma vida em comunidade, diferente da realidade vivenciada nos centros urbanos onde a elas eram destinadas estruturas precárias e sobrava preconceito. Ao menos 86 famílias, totalizando 239 pessoas, circulam por Igarassu há cerca de quatro anos.

Proprietários de terras vizinhos costumam soltar animais sobre as plantações de comida cultivadas pelos indígenas

A liderança espiritual do povo relata que voos de drones ocorreram enredados à ação judicial pedindo a reintegração, que teve aval da Justiça Estadual, mas evitada pelos recursos da Defensoria Pública do Estado (DPE) – a DPU assumiu quando o processo seguiu para a instância federal.

Proprietários de terras vizinhos costumam soltar animais (bois, cavalos e jumentos) sobre as plantações de comida cultivadas pelos indígenas, e o pajé cita como exemplos o bananal e o canavial degradados.

Há duas décadas pelo menos a área ocupada pelos indígenas estava sem utilização. “Sem uso social aqui. Os encantados nos trouxeram aqui e não sabíamos o que tinha exatamente. Encontramos os galpões e a casa, mas não mexemos neles. Preferimos ficar nesse espaço, em outras três casas que estavam abandonadas”, explica.

São mais de 60 famílias que residem na área retomada morando nas casas vazias e em acampamentos. “Não temos estrutura para todo mundo ficar aqui. Muitos precisam sair, inclusive, para trabalhar na cidade. Assim estamos construindo nossos barracos, agrofloresta, agricultura familiar, viveiro, galinheiro. Cada vez mais vemos nosso modo de vida se estabelecer”, afirma.

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