De Marçal a Dorvalino: um caminho para a punição dos assassinatos de lideranças indígenas
Matéria publicada originalmente na edição 461 do Jornal Porantim
Poucos dias depois do assassinato de Marçal completar quatro décadas, enquanto sua trajetória de vida e de luta eram relembradas em Dourados (MS), outro importante acontecimento tinha lugar a 450 quilômetros dali, em Presidente Prudente (SP): o júri dos acusados pelo assassinato de Dorvalino Rocha, importante líder Guarani e Kaiowá morto em 2005[1].
A vida e a morte de Dorvalino guardam relação direta – e algumas coincidências – com a vida e a trágica morte de Marçal. Dorvalino foi assassinado em 2005, num dia 24 de dezembro, mesma data de nascimento de Marçal. Ambos foram assassinados no município Antônio João (MS). Ambos eram primos.
E, mais importante: ambos foram assassinados a mando de fazendeiros, no contexto da luta pela terra – no caso, a Terra Indígena (TI) Nhande Ru Marangatu, território do qual faz parte a aldeia Campestre, onde Marçal teve sua vida interrompida.
No dia 28 de novembro, depois de ouvir as testemunhas e as sustentações orais da acusação e da defesa, o tribunal do Júri popular da 1ª Vara Federal de Presidente Prudente declarou o vigilante João Carlos Gimenez Brites culpado pelo assassinato de Dorvalino[2].
João Carlos era integrante da Gaspem [3], empresa de segurança privada acusada de envolvimento em diversas ações violentas contra comunidades Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul, entre elas o assassinato de Nísio Gomes, outra importante liderança do povo Guarani Kaiowá. A Justiça Federal determinou o encerramento das atividades da empresa[4], em 2018, após ação do Ministério Público Federal (MPF).
No entanto, a relação entre Marçal e a inédita condenação ao assassino de Dorvalino não é apenas simbólica, explica a advogada Michael Nolan, assessora jurídica do Cimi. O julgamento dos assassinos de Dorvalino só foi possível por causa de uma decisão obtida no caso de Marçal.
Além da investigação do assassinato de Marçal ter sido considerada morosa e falha, o processo criminal tramitava na Justiça estadual. A Constituição Federal determina que os temas indígenas são de competência federal.
Em 1993 – dez anos depois do homicídio – o fazendeiro Líbero Monteiro de Lima, acusado de ser o mandante do crime, e Rômulo Gamarra, acusado de ser o executor de Marçal, foram absolvidos por falta de provas. Lima chegou a ser submetido a um novo júri, cinco anos depois, com o mesmo desfecho.
A luta por justiça para Marçal, contudo, prosseguiu. A partir do segundo julgamento, os advogados Luiz Eduardo Greenhalg e a irmã Michael, assessores jurídicos do Cimi, passaram a atuar como assistentes de acusação no caso, representando Édina de Souza, filha de Marçal.
“O Cimi, como assistente de acusação, foi até o Supremo Tribunal Federal [STF] para reivindicar que fosse reconhecido que a competência era da Justiça Federal”, lembra a advogada. A Corte admitiu o pedido e decidiu favoravelmente no ano de 2001.
O processo chegou a ser retomado pela Justiça Federal, mas Líbero faleceu em 2009, sem chegar a passar por julgamento na instância adequada. Gamarra não foi mais encontrado e, até hoje, é considerado desaparecido[5]. Apesar da impunidade de seus assassinos, Marçal deixou mais um importante legado para todos os povos indígenas do Brasil.
“Embora o caso do Marçal tenha ficado impune, ele gerou um precedente importante para o julgamento de assassinatos de lideranças indígenas em todo o país. Quarenta anos depois, quase no aniversário de morte do Marçal, foram condenados os assassinos de Dorvalino”, explica a advogada.
“Foi o resultado desse julgamento do STF que trouxe os processos que nós temos agora na Justiça Federal. É isso que abre a possibilidade de condenação dos responsáveis por estes crimes. Até o caso do Marçal, essa atribuição não era reconhecida”, prossegue a irmã Michael.
“Isso passa, também, pela compreensão de que o homicídio de lideranças como Marçal não é um caso individual. É um caso coletivo, que se relaciona com a luta da comunidade pelo seu território. O caso do Marçal é típico dessa relação. Por isso, esse precedente foi importantíssimo”, sintetiza.
Mais de duas décadas depois da decisão do STF, o julgamento de Dorvalino também abre um novo e importante precedente. “É a primeira vez que um assassino de liderança indígena morta no contexto de conflito fundiário no Mato Grosso do Sul é condenado por homicídio”, explica Caroline Hilgert, advogada e assessora jurídica do Cimi.
Seguindo a tradição iniciada no caso de Marçal, Caroline atuou, junto à irmã Michael Nolan, como assistente de acusação no caso de Dorvalino.
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[1] https://cimi.org.br/2005/12/24260/
[3] https://cimi.org.br/2014/03/35786/?swcfpc=1
[5] https://apublica.org/2023/11/ha-40-anos-os-tiros-que-calaram-a-voz-indigena-do-brasil/