Nota do Cimi: Constituição veda indenização por terra nua em demarcação de terras indígenas
Voto do ministro Alexandre de Moraes afasta o marco temporal, mas previsão de indenização prévia a proprietários é inconstitucional e acirrará conflitos
Está em curso no Supremo Tribunal Federal (STF) o julgamento do Recurso Extraordinário 1017365, que trata da natureza jurídica e constitucional do direito dos povos indígenas a seus territórios, e cujo desfecho é aguardado com grande expectativa pelos povos indígenas e pela sociedade brasileira.
Ao mesmo tempo, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei (PL) 2903/2023, que busca retirar direitos constitucionais dos povos indígenas e aplicar a tese do marco temporal como critério para as demarcações de terras, além de outras medidas também contrárias aos direitos destes povos. A iniciativa, além de inconstitucional, invade a atribuição da Suprema Corte e busca, de forma pouco republicana, adiantar-se à conclusão do julgamento.
Diante deste cenário, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), reafirma a convicção de que a tese apresentada pelo ministro relator Edson Fachin neste julgamento é a posição que se encontra em completa consonância com o texto constitucional, pois reconhece a natureza originária do direito dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam, conforme preconizado pela Constituição Federal de 1988.
Com relação ao voto proferido na última sessão do julgamento pelo ministro Alexandre de Moraes, destacamos a firmeza com que o ministro, seguindo o entendimento do relator, Edson Fachin, afastou a tese do marco temporal de sua interpretação constitucional, o que, em nossa compreensão, firma dentro do STF um caminho de consenso no sentido da superação definitiva desta tese inconstitucional.
Entretanto, o voto do Ministro Alexandre de Moraes, justificando uma tentativa de conciliação de direitos, deixa de ser adequado constitucionalmente quando cria a possibilidade de indenização prévia pela terra nua a não indígenas e ao prever compensação de terras indígenas por outras equivalentes (itens IV e V da tese proposta).
A Constituição Federal é cristalina ao estabelecer que os títulos incidentes sobre terras indígenas são nulos e extintos e que a única indenização possível é pelas benfeitorias de boa-fé, jamais pela terra nua. O parágrafo 6º do artigo 231 não deixa margem para interpretações diversas. Ao legitimar um título de propriedade ou posse de particular sobre terras indígenas, e, ao mesmo tempo, reconhecer a tradicionalidade da ocupação, numa espécie de sobreposição de direitos, como consta do voto, e na impossibilidade orçamentária da União para realizar o pagamento do valor da terra nua de forma prévia, o conflito é certo.
O Cimi conta mais de 50 anos de atuação junto aos povos indígenas, sempre com o compromisso evangélico em defesa da vida e dos direitos destes povos e, através dessas décadas, acumulou experiência sobre a matéria. Nesse sentido, podemos afirmar que a pacificação no campo não virá a partir da indenização prévia da terra nua e a compensação, sugeridas pelo excelentíssimo ministro Alexandre de Moraes. Ao contrário, a proposta pode acirrar os ânimos e os conflitos.
Passados quase 35 anos desde a promulgação da Constituição Federal, muitas comunidades que ainda aguardam do Estado o cumprimento de seus deveres constitucionais serão submetidas a uma espera ainda maior, caso o exercício da posse indígena fique atrelado à discussão de boa-fé e ao pagamento prévio de indenização a terceiros, especialmente se tais discussões vierem a ocorrer dentro do procedimento administrativo demarcatório.
Além disso, em alguns casos, comunidades que ocupam áreas ainda não regularizadas poderão ser imediatamente despejadas em função da inexistência de pagamento prévio pela terra nua. Onde o Estado vai alocar essa enorme quantidade de famílias indígenas que estão em áreas ainda não demarcadas ou pendentes de regularização? Esses elementos acima levantados podem ser o estopim para uma crise humanitária. O resultado, todos nós já sabemos.
Quanto à chamada compensação de áreas, além de inconstitucional, ela nos parece ser uma prática distante da nossa realidade. Primeiro, porque não considera a proteção constitucional aos sistemas culturais dos indígenas, conforme explicitado no § 1º do artigo 231, e nem sua relação anímica e imaterial com o sagrado, com a terra. A ligação dos povos originários com suas terras tradicionalmente ocupadas implica numa conexão que não se dá com qualquer área, mas com territórios específicos, de fundamental importância não só para sua sobrevivência física, mas também espiritual e cosmológica.
Mesmo que se desconsidere esse elemento central, ainda pode ser impossível encontrar áreas equivalentes em regiões próximas àquelas de ocupação tradicional; por fim, pode não haver áreas para aquisição ou não haver vontade do proprietário em alienar o bem. Isso pode levar anos num cansativo processo de desapropriação, que pode se desdobrar em um processo judicial mais longo ainda.
Não poderíamos deixar de considerar que a sobrecarga financeira da União, como propôs o ministro, tornaria inviável o processo de demarcação e poderia aumentar as tensões entre indígenas e particulares.
Além de romper com o texto da Constituição, a proposta rompe também com a jurisprudência da Suprema Corte, há muito tempo sedimentada, sobre o direito originário, tradicional, e sobre a nulidade de títulos e seus efeitos. Ainda, cria uma fase nova para o processo de demarcação, regulado pelo Decreto 1775/1996, quanto ao pagamento prévio da terra nua, tornando ainda mais moroso o procedimento demarcatório, o que pode fazer desaguar em conflito possessório.
Consideramos que, caso o STF entenda que pode assistir aos ocupantes de boa-fé alguma espécie de indenização, esta não poderia ser pela terra nua, dada a sua proibição constitucional. Sendo o caso, que ela se dê por evento danoso em face da União e dos estados federados por terem titulado ou estimulado o apossamento de particulares em terras sabidamente indígenas, tendo como base o artigo 37, § 6º, da Constituição, mas nunca pela terra nua.
Consideramos, por fim, que a referida indenização por evento danoso, caso seja comprovado o dano, deve se dar sempre fora do procedimento administrativo demarcatório, a fim de que não haja mais morosidade na tão penosa materialização do direito constitucional de acesso à terra para os povos indígenas e, consequentemente, não se aprofunde ainda mais a vulnerabilidade e o risco de inviabilizar as próprias condições de existência dos povos e da cultura indígena em nosso país.
Por essas razões, é com muita preocupação que manifestamos nossa posição como entidade indigenista ligada à Igreja Católica e esperamos uma reflexão acurada da Suprema Corte em face dos riscos da tese apresentada pelo ministro Alexandre de Moraes.
Reiteramos o nosso apreço pelo STF na sua missão de interpretar a Constituição e a nossa confiança em que este tribunal reafirmará os direitos constitucionais dos povos indígenas, afastando a violenta tese do marco temporal nos termos do voto do ministro Edson Fachin.
Brasília (DF), 21 de agosto de 2023
Conselho Indigenista Missionário – Cimi