19/07/2023

Liderança Kaiowá denuncia genocídio e a militarização do Estado brasileiro ao Mecanismo de Peritos da ONU

As denúncias foram realizadas ao Mecanismo de Peritos sobre os Direitos dos Povos Indígenas; o evento ocorre neste mês, na sede da ONU

Por Adi Spezia, da Assessoria de Comunicação do Cimi

“Sou sobrevivente do massacre de Guapoy, hoje estou aqui para denunciar a militarização contra os povos indígenas no Brasil”, assim Josiel Kaiowá iniciou sua contribuição ao Mecanismo de Peritos sobre os Direitos dos Povos Indígenas (EMRIP) da Organização das Nações Unidas (ONU). O evento, em sua 16ª sessão, está sendo realizado de forma presencial no Palácio das Nações, na sede da entidade em Genebra (Suíça), de 17 a 21 de julho de 2023.

Representando a Aty Guasu – Grande Assembleia Guarani e Kaiowá –, Josiel relatou ao Mecanismo de Peritos que, em junho de 2022, após indígenas dos povos Guarani Kaiowá retomarem parte do território de Guapoy, no município de Amambai, no Mato Grosso do Sul, policiais militares e fazendeiros invadiram a área no intuito de expulsar, por meio da força, os indígenas – mesmo não havendo ordem judicial.

“Sou sobrevivente do massacre de Guapoy, hoje estou aqui para denunciar a militarização contra os povos indígenas no Brasil”

Josiel Kaiowá no Mecanismo de Peritos sobre os Direitos dos Povos Indígenas (EMRIP) da Organização das Nações Unidas (ONU). Foto: Paulo Lugon/Cimi equipe de Incidência Internacional

Josiel Kaiowá no Mecanismo de Peritos sobre os Direitos dos Povos Indígenas (EMRIP) da Organização das Nações Unidas (ONU). Foto: Paulo Lugon/Cimi equipe de Incidência Internacional

Nesse dia, “o meu povo foi atacado violentamente por forças policiais do estado de Mato Grosso do Sul, numa ação ilegal da polícia militar”, conta Josiel. A ação policial resultou em um Guarani Kaiowá morto e pelo menos outros nove indígenas feridos, incluindo “crianças, jovens, idosos, famílias que decidiram, depois de muito esperar sem alcançar seu direito, retomar um território que sempre foi deles e que foi roubado no passado de nosso povo”, denunciou, à época, a Aty Guasu.

A retomada havia sido realizada na tarde do dia anterior, 23 de junho de 2022, pois para aos Guarani Kaiowá, Guapoy é parte de um território tradicional que lhes foi roubado – quando houve a subtração de parte da reserva de Amambai.

“Meu povo foi atacado violentamente por forças policiais do estado de Mato Grosso do Sul, numa ação ilegal da polícia militar”

Enterro Vitor Guarani Kaiowa, em Guapoy, Amambai (MS) – Foto povos Guarani Kaiowa – 27 de junho de 2022

Sobrevivente do massacre de Guapoy, Josiel relata que está não foi a primeira vez que a força policial age com truculência contra os indígenas no estado. Em 2018, houve uma ação ilegal da Polícia Militar com uso de helicóptero que resultou em conflito territorial, conta aos Peritos da ONU.

Os indígenas registraram a ação policial no tekoha Guapoy no dia 27 de agosto de 2018, quando, sem mandado de reintegração de posse ou de busca e apreensão, policiais militares expulsaram os Guarani e Kaiowá da retomada e avançaram sobre um acampamento estabelecido há mais de dois anos. Um ancião foi preso e outros indígenas ficaram feridos. Casas e pertences dos indígenas foram destruídos pela polícia.

“Sem mandado de reintegração de posse ou de busca e apreensão, policiais militares expulsaram os Guarani e Kaiowá da retomada”

Frente aos relatos, a liderança Josiel Kaiowá fez um apelo ao Mecanismo de Peritos e à ONU. “Peço ao Mecanismo que recomende ao Estado brasileiro que reparem os danos causados pelo estado do Mato Grosso do Sul, Brasil. Conforme os Artigos 8 e 28 da Declaração das Nações Unidas sobre Povos Indígenas”.

Durante o evento, Josiel fez duas contribuições ao Mecanismo de Peritos, uma na segunda-feira (17), quando, a concluir sua contribuição, a presidente da mesa, Membro Especialista e Vice-Presidente do Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas (UNPFII), Dra. Dalee Sambo Dorough reforçou, “muito obrigada por sua declaração, lamentamos escutar esta realidade e estamos muito agradecidos por estar hoje aqui”.

“Muito obrigada por sua declaração, lamentamos escutar esta realidade e estamos muito agradecidos por estar hoje aqui”

Retomada alvo da ação policial é composta por apenas 24 famílias, mas com muitas crianças e adolescentes. Foto: Flávio Vicente Machado/Cimi

Retomada alvo da ação policial é composta por apenas 24 famílias, mas com muitas crianças e adolescentes. Foto: Flávio Vicente Machado/Cimi

A segunda contribuição de Josiel ocorreu nesta quarta-feira (19), quando deu voz à Declaração Oral da Aty Guasú e outras 28 organizações, entre elas a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, Conselho Indigenista Missionário (Cimi), União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Anistia Internacional – Brasil, Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), Terra de Direitos, Justiça Global e Associação dos Remanescentes de Quilombo Rio dos Macacos.

Na oportunidade, o jovem Kaiowá destacou a visita da sub-secretária-geral das Nações Unidas e assessora especial para Prevenção do Genocídio, Alice Wairimu Nderitu, ao Brasil em maio deste ano. “A Assessora Especial da ONU pôde verificar no território o alto risco que sofre meu povo e outros povos no Brasil”, listou.

“A Assessora Especial da ONU pôde verificar no território o alto risco que sofre meu povo e outros povos no Brasil”

Em Genebra, Alice Wairimu Nderitu e Josiel Kaiowá, em julho de 2023. Foto: Paulo Lugon Arantes / Cimi

Em Genebra, Alice Wairimu Nderitu e Josiel Kaiowá, em julho de 2023. Foto: Paulo Lugon Arantes / Cimi

Pela primeira vez no Brasil, Alice visitou comunidades indígenas em Roraima e no Mato Grosso do Sul com o objetivo de conhecer a situação dos povos e verificar as práticas de genocídio contra os povos originários. Os Avá-Guarani, Guarani e Kaiowá (MS) receberam a comitiva da ONU no tekoha Guyraroka e no tekoha Guapoy, onde ocorreu o massacre do qual Josiel sobreviveu.

Vários outros povos no mundo também sofrem diante de tantas atrocidades, “mas não há estudos específicos e atualizados sobre como crimes internacionais impactam as vidas dos povos indígenas. Além disso, não há também uma documentação que guie os Estados na prevenção de atrocidades e massacres”, aponta o jovem Kaiowá.

“Não há estudos específicos e atualizados sobre como crimes internacionais impactam as vidas dos povos indígenas, nem um guia os Estados na prevenção de massacres”

O encontro entre os Avá-Guarani e Alice Wairimu Nderitu, na retomada do tekoha Guapo’y, município de Amambai, Mato Grosso do Sul. Maio de 2023. Foto: Cimi Regional Sul

O encontro entre os Avá-Guarani e Alice Wairimu Nderitu, na retomada do tekoha Guapo’y, município de Amambai, Mato Grosso do Sul. Maio de 2023. Foto: Cimi Regional Sul

Fazendo ecoar a voz dos Guarani e Kaiowá e todos os povos indígenas do Brasil, Josiel propõe ao Mecanismo de Peritos da ONU que “elabore um estudo temático sobre prevenção de atrocidades contra povos indígenas, esclarecendo as obrigações positivas e negativas dos Estado, o marco legal de agentes não estatais e a questão de cumplicidade. Além das questões jurídicas, vemos que a questão de prevenção de atrocidades deve ser visibilizada no Conselho de Direitos Humanos, com a expertise única do EMRIP”.

Sob aplausos dos presentes, Josiel afirma que “a própria visibilidade no Conselho ajuda na prevenção de atrocidades”, encerrando sua contribuição nesta edição do EMRIP.

“A própria visibilidade no Conselho ajuda na prevenção de atrocidades”

 

Sobre o Mecanismos de Peritos

Criado em 2007 pelo Conselho de Direitos Humanos (CDH), é o principal órgão de Direitos Humanos das Nações Unidas. O o Mecanismo de Peritos sobre os Direitos dos Povos Indígenas (EMRIP) tem por função subsidiar o CDH por meio de experiência e assessoria sobre a questão de povos indígenas.

“O Mecanismo de Peritos sobre os Direitos dos Povos Indígenas é o principal órgão de Direitos Humanos das Nações Unidas”

Cabe também ao EMRIP auxiliar os Estados Membros a alcançar as metas da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e realizar estudos para avançar na promoção e proteção dos direitos dos povos indígenas, bem como:

  • Esclarecer as implicações de princípios-chave, como autodeterminação e consentimento livre, prévio e informado;
  • Examinar boas práticas e desafios em uma ampla gama de áreas pertencentes aos direitos dos povos indígenas;
  • Sugerir medidas que os Estados e outros possam adotar no nível de leis, políticas e programas.

“O Mecanismo de Peritos sobre os Direitos dos Povos Indígenas é o principal órgão de Direitos Humanos das Nações Unidas”

Mulheres indígenas e quilombolas denunciam marco temporal em Genebra. Foto: Paulo Lugon/Cimi equipe de Incidência Internacional

Mulheres indígenas e quilombolas denunciam marco temporal em Genebra. Foto: Paulo Lugon/Cimi equipe de Incidência Internacional

Composto por sete especialistas independentes em Direitos Indígenas, nomeados pelo CDH, o Mecanismo se reúne uma vez por ano, durante cinco dias na sede das Nações Unidas. Participam das sessões representantes de Estados, Povos Indígenas, organizações de Povos Indígenas, sociedade civil, organizações intergovernamentais e academia.

 

Confira o discurso na Integra:

Declaração Oral de Aty Guasú, apoiada por várias outras organizações.

Meu nome é Josiel Machado, do povo Kaiowá, Mato Grosso do Sul no Brasil. Fui testemunha visual do massacre de Guapoy, como expliquei na minha intervenção na segunda-feira.

Meu povo recebeu o apoio e a visita da Assessora Especial para Prevenção do Genocídio, em maio deste ano. A Assessora Especial da ONU pode verificar no território o alto risco que sofre meu povo e outros povos no Brasil.

Infelizmente, vários outros povos no mundo também sofrem risco de atrocidades, mas não há estudos específicos e atualizados sobre como crimes internacionais impactam as vidas dos povos indígenas. Também não há uma documentação que guie os Estados na prevenção de atrocidades e massacres.

Por isso, propomos ao Mecanismo elaborar um estudo temático sobre prevenção de atrocidades contra povos indígenas, esclarecendo as obrigações positivas e negativas dos Estado, o marco legal de agentes não estatais e a questão de cumplicidade. Além das questões jurídicas, vemos que a questão de prevenção de atrocidades deve ser visibilizada no Conselho de Direitos Humanos, com a expertise única do EMRIP. A própria visibilidade no Conselho ajuda na prevenção de atrocidades.

Obrigado!

 

Assinam a de Declaração Oral:

  1. Aty Guasu
  2. Conselho Indigenista Missionário
  3. Associação das Mulheres (AMIM)
  4. RCA – Rede de Cooperação Amazônica
  5. Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé)
  6. Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN)
  7. Plataforma de Pueblos Indígenas y Afrodescendientes Nicaragua-Diáspora
  8. Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT)
  9. Ação Franciscana de Ecologia e Solidariedade (AFES)
  10. American Civil Liberties Union (ACLU)
  11. Consejo del Pueblo Maya CPO de Guatemala
  12. Crimean Tatar Resource Centre
  13. Crimean Tatar Youth Centre
  14. International Institute on Race, Equality and Human Rights
  15. Society for Threatened Peoples
  16. União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja)
  17. Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil
  18. Associação dos Remanescentes de Quilombo Rio dos Macacos
  19. Serviço Inter-Franciscano de Justiça, Paz e Ecologia (Sinfrajupe)
  20. Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos (IDDH)
  21. Minority Rights Group International (MRG)
  22. Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM)
  23. American Civil Liberties Union (ACLU)
  24. Assessoria Popular Maria Felipa
  25. Anistia Internacional Brasil
  26. Washington Brazil Office
  27. Indígenas em Mutirão
  28. Terra de Direitos
  29. Justiça Global
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