Em audiência pública, bispo da Amazônia se manifesta contra o marco temporal e pede que Congresso emanem leis ecologicamente corretas
O pronunciamento se deu em audiência dentro da Semana de comemorações do oitavo ano da publicação pelo Papa Francisco da Encíclica ‘Laudato Si’
Em audiência pública na Comissão de Legislação Participativa, na Câmara dos Deputados, em Brasília (DF), o bispo da Prelazia de Itacoatiara (AM) e secretário da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil), dom José Ionilton de Oliveira, chamou atenção para o Projeto de Lei (PL) nº 490/07, que transfere do Executivo para o Legislativo a competência para realizar as demarcações de terras indígenas. “É uma coisa quase inacreditável que se tenha que chegar ao Senado para definir uma realidade que não tem lógica”, destaca o bispo.
“Esperamos que o Senado possa cumprir sempre a sua missão, de representantes do povo, como está na Constituição Federal. Que do Congresso emanem leis que sirvam para tornar nosso país ecologicamente correto e economicamente justo; leis que garantam nosso estado democrático, que defendam os direitos de todos os povos e da mãe natureza; leis que combatam o trabalho escravo e que colaborem para a superação da violência no campo e na cidade. Que o Ministério dos Povos Indígenas e o Ministério do Meio Ambiente consigam apoio desta casa e do senado para implementar suas ações, cumprindo assim aquilo que foi prometido durante a campanha do atual governo federal”.
“Esperamos que o Senado possa cumprir sempre a sua missão, de representantes do povo, como está na Constituição Federal”
“O progresso neoliberal, rentista e entreguista tem produzido na Amazônia cidades insustentáveis e marcadas pelas desigualdades sociais totalmente contrárias aos princípios do Bem-Viver de nossos ancestrais. As instituições públicas e da sociedade civil, que se posicionam em defesa da Amazônia e dos seus povos, sofreram nos últimos anos um processo intenso de criminalização e desmonte, especialmente o IBAMA, a FUNAI, o ICMBio e a Polícia Federal”, reforça Dom Ionilton.
Confira a íntegra do discurso:
“LAUDATO SI’: COMPROMISSO CRISTÃO COM A JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL”
Agradecer a Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados por realizar esta audiência pública, “Laudato Si’: Compromisso cristão com a justiça socioambiental”, tema tão importante para a sociedade, para as igrejas e para nós Igreja Católica, já que é uma audiência dentro da Semana de comemorações do oitavo ano da publicação pelo Papa Francisco da Encíclica Laudato Si’.
Agradecer ao deputado João Daniel (PT-SE), que propôs esta audiência.
Vou falar como bispo da igreja católica na Prelazia de Itacoatiara, Amazonas, mas, também, como Presidente da CPT – Comissão Pastoral da Terra, que completará 48 anos de fundação agora em junho e como secretário da REPAM (Rede Eclesial Pan-Amazônica REPAM-Brasil).
Portanto me dedicarei a falar da realidade de nossa Querida Amazônia, especialmente a realidade dos camponeses, dos indígenas e dos ribeirinhos.
Quero começar lembrando os processos de ocupação da Amazônia que causam impactos negativos à sua sociobiodiversidade, as hidrelétricas (Belo Monte, Tucuruí, Jirau, Santo Antônio e Balbina, por exemplo, as árvores que se adaptaram à vida submersa durante os longos meses das cheias na Amazônia podem sofrer mortandade maciça quando hidrelétricas interrompem o fluxo natural dos rios), mineração, agronegócio, industrialização invasiva, aumento vertiginoso do latifúndio e de monocultivos, implantação de espécies invasoras (vegetais e animais como a criação de aves em cativeiro e de pescado em escala comercial sem o devido manejo ambiental) que repercutem em processos de degradação ou conservação dos recursos naturais.
Os projetos voltados para a Amazônia que contam com financiamentos externos não consideram a diversidade étnica, sociocultural, econômica e ambiental, e nem os conhecimentos dos povos tradicionais, os povos indígenas, as comunidades quilombolas, os seringueiros, as comunidades extrativistas, os camponeses vinculados à agricultura familiar e de subsistência.
Há décadas a região amazônica é palco de conflitos socioambientais, por causa dos interesses capitalistas em se apropriar da Amazônia e torná-la uma região de integração ao desenvolvimento econômico nos moldes neocoloniais. Contando, muitas vezes, com o aparato do Estado, surgem disputas em torno dos territórios e da exploração intensiva de recursos como madeira, água, minerais, além do intenso desenvolvimento de obras de infraestrutura que trazem enormes prejuízos e deslocamentos para as populações locais.
Os grandes empreendimentos de grandes corporações internacionais ligados à mineração (principalmente ouro, ferro e calcário) e à exploração de recursos fósseis[1], se apresentam na atualidade como os de maior impacto socioambientais com grandes intervenções socioterritoriais e socioambientais, como os deslocamentos forçados, poluição, mudanças na sociabilidade e nos processos de trabalho.
O agronegócio ligado aos projetos de produção de carne bovina, soja e milho e a ampliação do ramo de logística e indústria de transformação implicam em desmatamento, expulsão de populações locais, grilagem de terras públicas, invasão de terras indígenas, utilização de fertilizantes e defensivos agrícolas altamente nocivos para a vida do bioma com contaminação direta da terra e das águas e indiretamente com a extinção das abelhas e outros polinizadores que afetam diretamente na produção dos recursos das florestas e na saúde das populações locais tanto do campo como das cidades.
As comunidades afetadas por processos de desapropriação, deslocamentos forçados e conflitos socioambientais se reproduzem em todos os estados da Amazônia Brasileira.
O modo de agir por parte do Estado nos sucessivos governos tem sido, quase sempre, uma mera repetição de promessas de indenizações preconizadas em processos de desapropriação, projetos de reassentamento das famílias deslocadas em processos lentos de desresponsabilização do Estado na garantia de moradia, sem considerar os aspectos que garantam a qualidade de vida das famílias nos novos destinos e com o antes da desapropriação, como a proximidade aos igarapés, agricultura e pesca como meios de subsistência, redes de sociabilidade e lazer.
Um dos problemas fundamentais da Amazônia é o modelo de desenvolvimento adotado para a região ignorando a vocação da floresta, seu papel no clima, no ciclo do carbono, a fragilidade de seus solos descobertos pelas queimadas, a contribuição para os demais biomas da América Latina, sobretudo no ciclo das águas. O avanço desse modelo tem sido um desastre denunciado no mundo inteiro por instituições comprometidas com o meio ambiente e com a vida na terra.
Portanto, o “progresso” trazido para a Amazônia tem transformado drasticamente a região em um processo tremendo de destruição e reconfigurações territoriais nem sempre condizentes com o papel que a região ocupa no planeta.
O progresso neoliberal, rentista e entreguista tem produzido na Amazônia cidades insustentáveis e marcadas pelas desigualdades sociais totalmente contrárias aos princípios do Bem-Viver de nossos ancestrais.
As instituições públicas e da sociedade civil, que se posicionam em defesa da Amazônia e dos seus povos, sofreram nos últimos anos um processo intenso de criminalização e desmonte, especialmente o IBAMA, a FUNAI, o ICMBio e a Polícia Federal.
Vivemos, portanto, um tempo desafiador. É necessário sair da lógica colonialista que nos trouxe até aqui e estabelecer um novo caminho. Esse novo caminho deve levar em consideração o respeito aos direitos de povos e comunidades tradicionais, já previstos pela legislação nacional e internacional – como o direito à autodeterminação, à consulta prévia livre e informada e à demarcação dos territórios – e o direito da Natureza – ainda não reconhecido pela legislação nacional.
Na perspectiva do Bem Viver o cuidado é um elemento fundamental e significa atitude de amor e de respeito, quase uma veneração. Ou seja, eu preciso cuidar da criação porque sou parte dela. E a terra é a casa comum de toda a criação. Nesse sentido, a terra significa uma realidade ampla que representa o território de vida e de sentido das pessoas ou grupos que habitam e convivem em determinada porção do planeta.
Na parte introdutória da Encíclica Laudato Si’ (2015) o Papa Francisco afirma que “esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra. O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos”. Nessa exortação, o Papa Francisco chama a atenção de toda a sociedade para a “comunhão universal” acenando para a interligação entre tudo e todos na grande casa comum.
Outro preceito importante para a definição do Bem Viver dos Povos da Amazônia é o princípio da Terra Sem Males, mito do Povo Guarani, presente na espiritualidade de praticamente todos os Povos Indígenas. A Terra Sem Males refere-se a outro modo de vida que se contrapõe ao entendimento do significado do progresso técnico e industrial desenvolvido pelos grandes empreendimentos empresariais economicistas que vêm provocando imensuráveis processos de destruição da natureza e da biosfera que tem como referencial a mundialização do mercado econômico, sem regulação externa que cria pequenas ilhas de riquezas e, simultaneamente, zonas crescentes de miséria, pobreza e exclusão social e econômica em todo o mundo.
Este antigo preceito dos povos indígenas, antes da chegada dos colonizadores, expressa uma inter-relação de equilíbrio e interdependência entre os seres humanos e a natureza, em uma permanente atitude de responsabilidade, de cuidado e proteção da sociobiodiversidade, em função de uma civilização justa, solidária e sustentável, totalmente diversa do progresso moderno. É alternativa ao modo capitalista de produção, distribuição e consumo.
De acordo com os preceitos do Bem Viver, ou destruímos a natureza e nos afundamos com ela, ou nos salvamos através de uma nova forma de relação em que a vida dos seres humanos e de toda a natureza esteja em primeiro lugar.
Por isto estamos aqui para celebrar esta semana Laudato Si’ e reconhecer a grande contribuição do Papa Francisco ao publicar a Encíclica Laudato Si’ em 24 de maio de 2015 para salvar o planeta Terra e sua biodiversidade, juntamente com a vida humana.
A Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Rede Eclesial Panamazônica (REPAM), a Comissão Episcopal Especial para a Amazônia, a Comissão Episcopal Especial para a Ecologia Integral e mineração da CNBB, temos, seguindo o exemplo de Jesus que veio para que todos tivéssemos vida (Jo 10, 10), temos trabalhado pastoralmente, em defesa da nossa Casa Comum, junto com os Povos Indígenas e Tradicionais e junto com todos os homens e mulheres de todas as raças e crenças em defesa da terra, dos territórios e das águas.
Que esta Casa e o Senado possam cumprir sempre a sua missão, de representantes do povo, como está na Constituição Federal. Que do Congresso emanem leis que sirvam para tornar nosso país ecologicamente correto e economicamente justo; leis que garantam nosso estado democrático, que defendam os direitos de todos os povos e da mãe natureza; leis que combatam o trabalho escravo e que colaborem para a superação da violência no campo e na cidade.
Esperamos que o Ministério dos Povos Indígenas e o Ministério do Meio Ambiente consigam apoio desta casa e do senado para implementar suas ações, cumprindo assim aquilo que foi prometido durante a campanha do atual governo federal.
Esperamos que projeto de lei nº 490/07 que transfere para o Legislativo a palavra final sobre demarcações e adota a tese do marco temporal, que só considera as áreas ocupadas por indígenas até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, não seja aprovada por esta casa.
Priscila Terena, assessora jurídica do Conselho do Povo Terena, citou 156 terras, oito etnias e mais de 80 mil indígenas impactados, em caso de aprovação desse texto. “A aprovação é a declaração do nosso extermínio e o início da institucionalização do nosso genocídio”, disse ela.
Que esta Casa possa apoiar o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) que negou licença para a Petrobras perfurar poço de petróleo no litoral do Amapá. A Petrobras aguardava apenas essa autorização para iniciar perfuração de teste na bacia da Foz do Amazonas, a cerca de 175 quilômetros da costa amapaense. O documento técnico apontou que o plano da Petrobras para a área não apresenta garantias para atendimentos à fauna em possíveis acidentes com o derramamento de óleo.
Seria importante que esta Casa pudesse se dedicar a rever a aprovação da exploração de petróleo e gás em todo a Amazônia brasileira, como está acontecendo na região do baixo médio Amazônia, nos municípios de Silves, Itapiranga, Itacoatiara, São Sebastião de Uatumã, Urucará e Urucurituba, com a exploração de gás, sem ter havido a discussão prévia necessária com as comunidades que sofreriam os impactos desta exploração.
LS 38. Que cada governo cumpra o dever próprio e não delegável de preservar o meio ambiente e os recursos naturais do seu país, sem se vender a espúrios interesses locais ou internacionais.
LS 56. Os poderes econômicos continuam a justificar o sistema mundial atual, onde predomina uma especulação e uma busca de receitas financeiras que tendem a ignorar todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e sobre o meio ambiente.
LS 82. Quando se propõe uma visão da natureza unicamente como objeto de lucro e interesse, isso comporta graves consequências também para a sociedade.
LS 95. O meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda a humanidade e responsabilidade de todos.