08/12/2022

Governo de Transição, governabilidade e a visão do Cimi sobre a efetivação dos direitos indígenas

Em nota, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) elenca dez demandas indígenas que o novo governo deverá cumprir

Conselho Indigenista Missionário - Cimi

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), diante do cenário que se avizinha, com a assunção de um novo governo, eleito no último pleito nacional, com fortes indicativos de que os direitos indígenas serão respeitados e que os povos originários serão ouvidos, se manifesta sobre a transição em curso e sobre os desafios de governar um país em escombros, seja na sua estrutura de funcionamento, seja em relação aos dejetos reacionários deixados na sociedade.

De plano, é inadmissível que a fome, a miséria e a violência sejam vistas como elementos da normalidade. Também não se poderia admitir que o Estado, por falta de responsabilidade dos seus gestores, não tenha elaborado uma política de planejamento para combater as mazelas que atingem a sociedade e, de forma mais dura, os povos indígenas.

Garimpeiros, madeireiros, invasores de toda estirpe, que, além de cometerem diversos tipos de crimes ambientais, violam os direitos humanos mais básicos das populações indígenas. Diante desse cenário, o Estado tornou-se um dos principais atores para a manutenção dessas práticas criminosas, que são inaceitáveis.

Os dois últimos governos, de Michel Temer e de Jair Bolsonaro, estruturaram uma antipolítica no Executivo, a partir da qual suspenderam todas as demarcações de terras, romperam com as ações de proteção e fiscalização dos territórios demarcados e destruíram a política de proteção dos povos em isolamento voluntário. Para garantir o êxito total da política de esbulho e exploração, transformaram a Fundação Nacional do Índio (Funai) numa agência de negócios espúrios, além de completamente desestruturada e sucateada.

Neste mesmo período, as violências contra as comunidades, suas lideranças e territórios mais que dobraram, como se pode constatar no Relatório de Violência contra os Povos Indígenas no Brasil, anualmente lançado pelo Cimi. São violências contra pessoa, esbulho territorial, exploração ilegal das riquezas naturais existentes em terras indígenas e violência religiosa.

No mínimo, o próximo governo deve contribuir na apuração dos crimes cometidos nas duas últimas gestões, que enraizados num fomento institucional golpista, senão tomados por fanatismo extremista de direita, deixou rastros de ódio e uma obsoleta divisão nacional que afeta direta e particularmente os povos indígenas.

Precisará, por meio do diálogo e da ampla participação dos povos indígenas, recuperar e restabelecer uma política indigenista alicerçada nos dispositivos da Constituição Federal de 1988, que determinam a valorização das diferenças étnicas e culturais, das crenças, costumes, línguas e tradições, bem como asseguram a demarcação das terras indígenas como um direito fundamental, originário, inalienável, indisponível e imprescritível, contribuindo com o sepultamento da inconstitucional, senão perniciosa tese do marco temporal.

Ainda, o Estado deverá estar atento e fazer cumprir suas obrigações quanto aos Acordos, Tratados, Pactos e Convenções e liderar, no âmbito da comunidade internacional, o efetivo cumprimento e o avanço desses instrumentos de proteção e promoção de direitos.

O futuro governo tem desafios enormes, mas precisará, desde logo, nos primeiros dias e independentemente da estrutura orgânica que a política indigenista finalmente tenha dentro do Executivo, apontar o caminho que deseja seguir em relação aos povos indígenas, evitando em todo momento utilizar os direitos indígenas como moeda de troca em qualquer diálogo ou negociação. Caso contrário, deixará aberto um flanco de amplificação de uma violência sem controle.

Nesse sentido, diante do que está previsto na Carta Política de 1988, as mais urgentes demandas indígenas para o novo governo, no entendimento do Cimi, são:

1. Retomar, desde logo, os procedimentos de demarcação. Para tanto, no nosso entendimento, é imprescindível:

  • Criar um amplo grupo de trabalho para analisar os procedimentos e identificar os encaminhamentos mais urgentes nos territórios que se encontram em cada uma das fases do procedimento administrativo de demarcação, ou ainda sem providências, encarregando uma consultoria técnica para análise segura e célere de todos os casos;
  • Fortalecer a Funai para que cumpra com efetividade a sua missão institucional e reassuma as demandas de demarcação, proteção e fiscalização das terras. Nesse sentido, é fundamental também revogar a Portaria FUNAI Nº 570, de 23 de setembro de 2022, que modifica o Estatuto da Funai e que retira da fundação funções primordiais dos seus órgãos descentralizados, bem como ampliar a atuação das Frentes de Proteção Etnoambiental;
  • Priorizar a demarcação de terras indígenas em contexto de maior vulnerabilidade social e resolver as demandas fundiárias das comunidades assentadas nas áreas cedidas pelos Estados, bem como garantir atenção prioritária às comunidades que estão em situação de retomadas ou em condições de acampamentos, submetidas às mais variadas formas de vulnerabilidade social, cultural e econômica;

2. Revogar de forma imediata o Parecer 001/2017 e o Parecer 763/2021, ambos da AGU, com manifestação explícita quanto a rejeição da tese ruralista do marco temporal (em especial no âmbito do RE 1.017.365) e contra os projetos de lei que restringem direitos, a exemplo dos PLs 191 e 490 e da PEC 215/2000;

3. Revogar obstáculos administrativos, a exemplo da Instrução Normativa 09/2020 e da Resolução 04/2022, ambas da Funai, e da Resolução Conjunta 01/2021, da Funai/Ibama, que afetam, de forma negativa e direta, os direitos territoriais dos povos indígenas;

4. Enfrentar e combater as invasões de terras por madeireiros, garimpeiros e outros agentes criminosos para retomar, aperfeiçoar e efetivar uma política de proteção territorial consistente, bem como para punir os ilícitos até então cometidos;

5. É prioritário retomar a política de proteção e o não contato com povos em isolamento voluntário. Para tanto, é preciso:

  • Reconhecer e dar visibilidade aos registros existentes da presença de povos indígenas isolados. Agilizar os estudos para qualificação e localização de povos isolados cuja existência ainda não foi confirmada, e promover a imediata demarcação dos territórios desses povos;
  • Assegurar recursos suficientes e infraestrutura, logística e servidores capacitados para atender as demandas de proteção desses territórios;
  • Adotar medidas, com base no princípio da precaução, como a restrição de uso desses territórios, criação de Bases de Proteção Etnoambiental (Bapes) e outros mecanismos de proteção, notadamente nas situações que apresentam maior risco e onde os seus direitos territoriais não tenham sido reconhecidos;

6. Romper com as práticas de exploração das terras por arrendamentos, promovendo por meio de fomentos, práticas de produção vinculadas à recuperação ambiental, pesca, coleta e demais atividades econômicas tradicionais dos povos;

7. Retomar as ações de controle e participação social dos povos indígenas em todas as instâncias, com efetivo poder deliberativo, particularmente o Conselho Nacional de Política Indigenista. Empreender os esforços necessários na efetivação do direito à consulta prévia, livre e informada e de boa fé, como garante a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT);

8. Investir em políticas públicas de saúde, educação, habitação e sustentabilidade das comunidades. Quanto à Política de Atendimento à Saúde Indígena, garantir o fortalecimento do Subsistema com a retomada dos programas de atendimento nos Distritos, ampliação do investimento em saneamento e desmilitarização do setor;

9. Garantir políticas públicas e proteção aos indígenas em contextos urbanos, bem como a identificação e legitimação de seus territórios;

10. Fortalecer ou retomar os programas de proteção aos defensores e defensoras de direitos humanos, bem como enfrentar e combater a violência, especialmente contra as mulheres indígenas e contra a liberdade religiosa.

Brasília-DF, 08 de dezembro de 2022

 

Conselho Indigenista Missionário – Cimi

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