07/02/2022

STF suspende atos administrativos da Funai que retiram proteção de terras indígenas

A política anti-indígena do órgão indigenista, constantemente, afronta a Constituição e coloca em risco a vida dos povos indígenas e seus territórios

Povos indígenas realizam manifestação nesta sexta (18), em Brasília, contra o marco temporal. Foto: Adi Spezia/Cimi

Povos indígenas realizam manifestação nesta sexta (18), em Brasília, contra o marco temporal. Foto: Adi Spezia/Cimi

Por Adi Spezia, da Assessoria de Comunicação do Cimi

Após mobilização de organizações indígenas e indigenistas, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu dois atos administrativos da Fundação Nacional do Índio (Funai), que desautorizam as atividades de proteção territorial em terras indígenas não homologadas. A decisão atende a um pedido feito nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 709 (ADPF 709) pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) à Corte no dia 14 de janeiro.

A decisão do ministro é de 1º de fevereiro deste ano e estabelece a suspensão imediata dos efeitos do Ofício Circular nº 18/2021, da Funai, e do parecer nº 13/2021, instrumento jurídico utilizado como base para a medida administrativa. Além disso, o ministro determina a implementação de atividade de proteção territorial nas terras indígenas pela Funai, independentemente de estarem homologadas. Caso o órgão insista em descumprir a decisão da Corte, “implicará a extração de peças e devido encaminhamento aos órgãos do Ministério Público para a apuração de crime de desobediência, nos termos do art. 330 do Código Penal”, lista Barroso.

“Suspender a proteção dos territórios abre caminho para que terceiros passem a transitar nas terras indígenas, oferecendo risco à saúde dessas comunidades, a exemplo do contágio pela Covid-19”

Ato em frente ao Palácio do Planalto durante o acampamento Luta pela Vida, em agosto de 2021. Foto: Marina Oliveira/Cimi

Ato em frente ao Palácio do Planalto durante o acampamento Luta pela Vida, em agosto de 2021. Foto: Marina Oliveira/Cimi

No entendimento do STF, suspender a proteção dos territórios abre caminho para que terceiros passem a transitar nas terras indígenas, oferecendo risco à saúde dessas comunidades, a exemplo do contágio pela Covid-19 ou por outras enfermidades. Portanto, a Funai deve implementar ações de proteção independente das terras indígenas estarem homologadas ou não, incluindo as habitadas por povos isolados e de recente contato, nas quais o STF já havia determinado a criação de barreiras sanitárias.

Na decisão, Barroso enfatizou que “ao afastar a proteção territorial em terras não homologadas, a Funai sinaliza a invasores que a União se absterá de combater atuações irregulares em tais áreas, o que pode constituir um convite à invasão de áreas que são sabidamente cobiçadas por grileiros e madeireiros, bem como à prática de ilícitos de toda ordem”.

“Ao afastar a proteção territorial em terras não homologadas, a Funai sinaliza a invasores que a União se absterá de combater atuações irregulares em tais áreas”

Manifestação dos povos indígenas contra o PL 490 em frente ao anexo 2 da Câmara dos Deputados, durante o Levante Pela Terra, em junho. Foto: Andressa Zumpano/Articulação das Pastorais do Campo

Manifestação dos povos indígenas contra o PL 490 em frente ao anexo 2 da Câmara dos Deputados, durante o Levante Pela Terra, em junho. Foto: Andressa Zumpano/Articulação das Pastorais do Campo

Em um contexto grave, no qual os territórios e os povos indígenas estão permanentemente sendo ameaçados e se tem um governo federal que estimula a exploração econômica desses territórios por não-índios, que não demarca as terras e que se omite na sua proteção, essa decisão mostra que o judiciário, quando provocado, está agindo em defesa dos povos indígenas e da Constituição Federal, avalia Paloma Gomes, advogada e assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

“Entendemos que a proteção deve se estender a todas as terras indígenas e não apenas àquelas homologadas. Há muitos territórios que sequer tiveram instaurados os procedimentos administrativos para constatação da tradicionalidade. Temos os povos isolados que não desejam ter contato, enfim, temos uma série de situações onde o Estado deixou de prover e cumprir com seu papel de demarcar e proteger esses territórios. Então, é uma decisão absolutamente importante”, explica Paloma.

A tentativa da Funai de se omitir na prestação de serviços aos povos indígenas, em especial os que vivem em terras não homologadas, também foi questionada pela Apib em sua solicitação à Suprema Corte. “Os atos administrativos contrariam normas constitucionais e infraconstitucionais de proteção aos direitos dos indígenas e a jurisprudência do STF”, destaca a organização indígena.

“Entendemos que a proteção deve se estender a todas as terras indígenas e não apenas àquelas homologadas. Então, é uma decisão absolutamente importante”

II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, setembro, 2021. Foto: Hellen Loures/Cimi

Sobre o Ofício Circular da Funai

No dia 29 de dezembro do ano passado, a Coordenação-Geral de Monitoramento Territorial da Funai emitiu o Ofício Circular nº 18/2021, no qual estabeleceu medidas que norteiam a execução de atividades de proteção territorial em terras indígenas, excluindo dessas atividades as terras indígenas que não estivessem homologadas.

Expedido pelo coordenador de Monitoramento Territorial da Funai, Alcir Amaral Teixeira, depois de consultar a Diretoria de Proteção Territorial (DPT) à Procuradoria Especializada do órgão indigenista, o documento foi destinado às Coordenações Regionais, aos Serviços de Gestão Ambiental e Territorial (SEGATs) e às Coordenações Técnicas Locais (CTLs) da Funai, com ampla divulgação de seu conteúdo aos setores subordinados, demonstrando se tratar de uma diretriz a ser seguida no desempenho das funções do órgão indigenista.

“O documento foi destinado às Coordenações Regionais, aos Serviços de Gestão Ambiental e Territorial e às Coordenações Técnicas Locais da Funai, com ampla divulgação junto aos setores subordinados”

Ato em frente ao Palácio do Planalto nesta sexta (27). Foto: Hellen Loures/Cimi

Ato em frente ao Palácio do Planalto nesta sexta (27). Foto: Hellen Loures/Cimi

Para o Conselho Indigenista Missionários (Cimi), excluir terras indígenas não homologadas dos planos de proteção territorial da Funai é inconstitucional e ataca diretamente os direitos territoriais indígenas. Além de deixar desassistidas 282 terras indígenas que estão em processo de demarcação – inclusive 14 terras indígenas com portarias de restrição devido à presença de povos em isolamento voluntário – a medida tornava ainda mais desamparadas as comunidades de 536 terras indígenas que ainda não tiveram providências do Estado para seu reconhecimento, segundo dados do relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil.

A medida “afronta a Constituição Federal e as leis que tratam da matéria, vulnerabilizando ainda mais os povos indígenas que sofrem cotidianamente com a invasão e destruição de seus territórios”, analisou a entidade em nota técnica. O Cimi também avalia que a medida “escancara mais uma vez o afastamento da atual gestão do governo federal de suas atribuições constitucionais na proteção dos direitos indígenas”.

“A medida afronta a Constituição Federal e as leis que tratam da matéria, vulnerabilizando ainda mais os povos indígenas”

II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, setembro, 2021. Foto: Rafael Vilela

Política anti-indígena da Funai

Esta não foi a primeira medida adotada pelo órgão indigenista do governo federal que afronta a Constituição e coloca em risco a vida dos povos indígenas e seus territórios. Há quase um ano, em 16 de março de 2021, a Suprema Corte já havia suspendido a Resolução 04/2021 da Funai que estabelecia “critérios de heteroidentificação” para avaliar a autodeclaração de identidade dos povos indígenas.

Assim como entidades indígenas e indigenistas, à época, o ministro relator da ADPF 709, Luís Roberto Barroso, já havia chamado a atenção para o desmonte das políticas públicas voltadas à fiscalização e proteção dos territórios e povos indígenas.

“A atual gestação da Funai busca diminuir a proteção indígenas e de seus territórios, dando ‘carta branca’ aos invasores, grileiros e grandes empreendimentos interessados na exploração dos recursos ambientais”

Indígenas durante a marcha do último dia do Acampamento Terra Livre. Foto por Verônica Holanda/Cimi

Indígenas durante a marcha do último dia do Acampamento Terra Livre. Foto por Verônica Holanda/Cimi

Além destas suspensas pelo STF, outras instruções normativas e resoluções têm sido editadas pela Funai, Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). É o caso, por exemplo, da Instrução Normativa Conjunta 01/2021, publicada pela Funai e pelo Ibama, e da Instrução Normativa 09, publicada pela Funai em abril de 2020 – que permite a certificação de propriedades privadas sobre essas terras indígenas, causando grave insegurança jurídica em todo o país, além de expor a política anti-indígena do atual governo.

Na avaliação do Cimi, de forma corriqueira a atual gestação da Funai busca diminuir a proteção indígenas e de seus territórios, dando “carta branca” aos invasores, grileiros e grandes empreendimentos interessados na exploração dos recursos ambientais dessas áreas, e aumentando de forma considerável da violência contra os povos indígenas. Como registra o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2020 da entidade, os casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio aumentaram 137% desde o início do governo de Jair Bolsonaro.

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