06/09/2021

Em todo o Brasil, povos indígenas mobilizam-se contra o marco temporal

Enquanto STF julga caso decisivo para futuro das terras indígenas, de norte a sul do país, ao menos 30 povos participaram de mobilizações em estradas, cidades e aldeias

O povo Pataxó Hã-Hã-Hãe se somou às manifestações indígenas contra o “marco temporal” em todo o Brasil. Foto: Olinda e Samuel Wanderley

Por Assessoria de Comunicação do Cimi

Nas últimas semanas, o acampamento “Luta Pela Vida”, em Brasília, chamou a atenção do mundo. Mobilizados na capital desde o dia 22 de agosto, indígenas de todo o país aguardam, com muita expectativa e persistência, o resultado do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que definirá o futuro das terras indígenas. Mas, apesar de Brasília ser o centro das atenções, as manifestações tomaram conta também de outros lugares do Brasil: de norte a sul, foram realizados cantos, rituais e manifestações, com faixas e cartazes contra a tese do “marco temporal”, sob análise do STF, em estradas e até nas próprias aldeias.

Fotos e vídeos gravados nas diferentes regiões mostram crianças, mulheres, homens e anciãos de ao menos 30 povos e de comunidades quilombolas, participando das mobilizações ao redor do país nos últimos dias. Os atos foram realizados nos dias 1º e 2 de setembro, datas em que a Suprema Corte deu andamento ao julgamento que deverá trazer uma posição definitiva dos ministros acerca das demarcações de terras indígenas e, especialmente, sobre a tese do “marco temporal”.

“O ‘marco temporal’ é uma medida inconstitucional, que prejudica o presente e o futuro de todas as gerações dos povos indígenas”

Em Brasília e nos territórios, os povos indígenas têm sido enfáticos em sua posição contra esta tese, defendida pela bancada ruralista e por outros grupos interessados na exploração e na apropriação de suas terras. Nas manifestações, os povos pedem à Suprema Corte que reafirme seus direitos constitucionais e enterre de vez esta tese inconstitucional.

As manifestações ocorreram em pelo menos onze estados, além do Distrito Federal. Um dos povos que estenderam os atos para fora da capital foi o povo Xakriabá, localizado no norte de Minas Gerais. Em um vídeo gravado pela equipe do Cimi Regional Leste, na BR-135, no município de São João das Missões (MG), Karine Xakriabá demonstrou profundo descontentamento perante a tese do “marco temporal”. “Acabamos de retornar de Brasília e agora nos mobilizamos na base. O ‘marco temporal’ é uma medida inconstitucional, que prejudica o presente e o futuro de todas as gerações dos povos indígenas”, afirmou.

Em Tefé, no Amazonas, também houve mobilização na última semana. Anilton Braz da Silva Kokama, liderança da aldeia Porto Praia,Terra Indígena (TI) Porto Praia de Baixo, reforçou que a luta não irá acabar agora. “Que o Supremo Tribunal Federal possa olhar para a causa indígena com humildade. A gente acredita que a nossa situação será resolvida, a situação dos ribeirinhos e daquelas pessoas que vivem e lutam no dia-a-dia para sobreviver. Nós somos contra o ‘marco temporal’ e o PL 490, que tira os nossos direitos. Mas iremos conseguir e vamos até o final”.

Enquanto os povos Kambeba, Kokama, Tikuna, Miranha e Madja Kulina realizaram uma manifestação conjunta na cidade de Tefé, o povo Matsés/Mayuruna do rio Jaquirana reuniu e registrou cartazes contra a tese do marco temporal na TI Vale do Javari, também no Amazonas. Em Roraima, os povos Macuxi, Wapixana, Patamona e Taurepang realizaram uma manifestação em Pacaraima, na região Norte do estado, em defesa de seus direitos constitucionais.

Em Mato Grosso, enquanto os Xavante da TI Marãiwatsédé fecharam a BR-158 em manifestação contra o marco temporal, na TI São Marcos o povo realizou uma manifestação dentro do próprio território.

Na Bahia, os povos Tupinambá de Olivença, Pataxó Hã-Hã-Hãe e Pataxó realizaram manifestações em rodovias nas proximidades de seus territórios, nas regiões dos municípios de Camacan, Ilhéus e Porto Seguro. Enquanto os Tupinambá bloquearam a rodovia Ilhéus x Una, os Pataxó e os Pataxó Hã-Hã-Hãe bloquearam diferentes trechos da BR-101 e da BR-257.

No Maranhão, os povos Akroá-Gamella e Krikati realizaram manifestações contra a tese do marco temporal em rodovias estaduais. Os Guajajara das TIs Rio Pindaré e Caru e os povos Ka’apor e Awa, da TI Alto Turiaçu, por sua vez, interditaram a BR-316.

Na região sul, os Avá Guarani do Tekoha Curva Guarani manifestaram-se em seu território, no município de Santa Helena (PR). No norte do Rio Grande do Sul, o povo Kaingang realizou atos nos municípios de Iraí, na BR-386, em São Valentim, na RS-480, e em Getúlio Vargas, na rodovia que corta a TI Ventarra, além de uma manifestação na TI Nonoai/Pinhalzinho.

Em São Miguel das Missões (RS), os Mbya Guarani do Tekoa Koen’ju também realizaram uma manifestação local, com cartazes pedindo “marco temporal não” e “demarcação já”.

Em Florianópolis (SC) e em Porto Alegre (RS), os povos Guarani e Kaingang também realizaram manifestações no centro da cidade. Na capital gaúcha, o ato teve adesão de movimentos sociais e populares e de comunidades quilombolas urbanas, que se somaram ao grito contra a tese do marco temporal.

Além do “marco temporal”, o combate ao Projeto de Lei (PL) 490/2007, medida que busca inviabilizar a demarcação das terras indígenas, também foi relembrado pelos povos Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. Vanderleia Guarani Kaiowá, do tekoha Rancho Jacaré, pediu aos ministros do STF e ao poder Legislativo Federal que garantam justiça aos povos originários.

“Todos os povos Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, estão se manifestando contra o ‘marco temporal’ e contra o PL 490, pedindo justiça. Demarquem as nossas terras tradicionais”

“Todos os povos Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, estão se manifestando contra o ‘marco temporal’ e contra o PL 490, pedindo justiça. Demarquem as nossas terras tradicionais”, pediu Vanderleia. Entre outros ataques aos direitos constitucionais indígenas, o PL 490 pretende tornar lei a tese do “marco temporal”.

No estado do Mato Grosso do Sul (MS), nos dias 1º e 2 de setembro, também foram realizados atos contra o “marco temporal” e o PL 490 na BR-163. Além de somar à manifestação na BR 163, os Guarani e Kaiowá dos tekoha Gurya Kamby’i, Itay, Tajasu Igua e Laranjeira Nhanderu, nos municípios de Rio Brilhante e Douradina (MS), manifestaram-se em seus territórios.

 

Povos Guarani e Kaiowá dos tekoha Gurya Kamby’i, Itay, Tajasu Igua e Laranjeira Nhanderu, nos municípios de Rio Brilhante e Douradina (MS) manifestaram-se em seus territórios contra o “marco temporal” e o PL 490. Foto: Povos Guarani e Kaiowá

Além dos povos Guarani e Kaiowá, os Terena, das aldeias Pilad Rebua, Lalima, Taunay e Cachoeirinha, dos municípios de Miranda e Aquidauana, ocuparam a BR-262. É possível perceber nos registros feitos pelo próprio povo a presença significativa de crianças no movimento da última semana.

O dia 1º de setembro também foi marcado por atos realizados pelos povos Tupiniquim e Guarani, em Vitória, no Espírito Santo. Mesmo debaixo de chuva, os povos seguiram firmes e fizeram manifestações, com cantos e danças, em frente à Assembleia Legislativa do Espírito Santo.

As mobilizações vêm ocorrendo nas regiões desde a primeira semana do acampamento Luta Pela Vida, iniciado no dia 22 de agosto. No dia 25, homens, mulheres e anciãos do povo Apinajé bloquearam a rodovia estadual TO-210, em frente à estrada da aldeia Prata, no Tocantins. A mobilização foi realizada na data de retomada do julgamento no Supremo Tribunal Federal.

Povo Xokleng na marcha em direção à Praça dos Três Poderes, em Brasília, onde cerca de 1200 indígenas acompanharam a sessão do STF no dia 2 de setembro. Foto: Hellen Loures/Cimi

Povo Xokleng na marcha em direção à Praça dos Três Poderes, em Brasília, onde cerca de 1200 indígenas acompanharam a sessão do STF no dia 2 de setembro. Foto: Hellen Loures/Cimi

Teses em disputa no STF

No processo em análise pelo plenário do STF, a Corte irá analisar a reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à TI Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem os povos Guarani e Kaingang. O caso recebeu, em 2019, status de “repercussão geral”, o que significa que a decisão servirá de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça no que diz respeito aos procedimentos demarcatórios.

No centro da disputa há duas teses:

A tese do chamado “marco temporal”, uma proposta ruralista que restringe os direitos indígenas. Segundo esta interpretação, considerada inconstitucional, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Essa tese é defendida por empresas e setores econômicos que têm interesse em explorar e se apropriar das terras indígenas.

Oposta ao marco temporal está a “teoria do indigenato”, consagrada pela Constituição Federal de 1988. De acordo com ela, o direito indígena à terra é “originário”, ou seja, é anterior à formação do próprio Estado brasileiro, independe de uma data específica de comprovação da posse da terra (“marco temporal”) e mesmo do próprio procedimento administrativo de demarcação territorial. Esta tese é defendida pelos povos e organizações indígenas, indigenistas, ambientalistas e de direitos humanos.

“A nossa história não começou em 1988, e as nossas lutas são seculares, isto é, persistem desde que os portugueses e sucessivos invasores europeus aportaram nestas terras para se apossar dos nossos territórios e suas riquezas”, reafirma o movimento indígena em nota divulgada no sábado (28). Os indígenas também asseguram seguir “resistindo, reivindicando respeito pelo nosso modo de ver, ser, pensar, sentir e agir no mundo”.

Mobilização indígena

Entre as últimas semanas de agosto, seis mil indígenas, de 176 povos de todas as regiões do país, estiveram presentes em Brasília, reunidos no acampamento “Luta pela Vida” para acompanhar o julgamento no STF e lutar em defesa de seus direitos, protestando também contra a agenda anti-indígena do governo Bolsonaro e do Congresso Nacional, na maior mobilização indígena desde 1988.

Após o início do julgamento e os adiamentos das sessões, parte dos indígenas decidiu manter a mobilização em Brasília e nos territórios. Assim, cerca de 1.200 lideranças indígenas, representando seus povos, permaneceram em Brasília, e o acampamento “Luta pela Vida” foi transferido para um novo local, a Funarte.

Seguindo os protocolos sanitários de combate à Covid-19, o grupo seguirá acompanhando o julgamento e une forças com a Segunda Marcha das Mulheres Indígenas, que acontece entre os dias 7 e 11 de setembro. Os indígenas seguem mobilizados também nos territórios, de forma permanente.

Próxima sessão no STF

Após a apresentação de todas as sustentações orais, a previsão é de que a sessão no STF seja retomada na próxima quarta-feira, 8 de setembro, a partir das 14h. A expectativa é que ocorra e leitura do voto do ministro relator Edson Fachin e, na sequência, dos demais ministros da corte.

Para relembrar: PL 490

O Projeto de Lei 490/2007, defendido pela bancada ruralista, prevê uma série de modificações nos direitos territoriais garantidos aos povos indígenas na Constituição Federal de 1988, inviabilizando, na prática, a demarcação de terras indígenas e abrindo terras demarcadas para os mais diversos empreendimentos econômicos, como agronegócio, mineração e construção de hidrelétricas, entre outras medidas. Na avaliação da Assessoria Jurídica do Cimi, a própria forma da proposta é inconstitucional, pois a Constituição Federal não pode ser modificada por um projeto de lei.  

O parecer do relator do PL 490, deputado federal Arthur Maia (DEM-BA), foi aprovado por 41 votos a 20 pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara Federal, em junho. Agora, o projeto pode ser pautado pelo plenário da Casa.

A aprovação do PL 490 na CCJ ocorreu sem ouvir as centenas de lideranças indígenas que se manifestavam há semanas contra a medida e que, no dia anterior à aprovação, foram violentamente reprimidas pelas polícias legislativa e militar.

Share this:
Tags: