Certificação de propriedades avança sobre terras indígenas no Maranhão, beneficiando empresas e fazendeiros
Sob o governo Bolsonaro, ao menos 83 propriedades foram certificadas sobre terras indígenas no estado, favorecendo grandes proprietários e fomentando conflitos
No Maranhão, povos que aguardam há décadas a demarcação de suas terras tradicionais viram, nos últimos anos, a pressão de fazendeiros e empresários sobre seus territórios aumentar consideravelmente, facilitada por medidas do governo federal. Entre 2019 e o final de 2020, 83 propriedades privadas foram certificadas sobre terras indígenas no estado.
As certificações, feitas por meio do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) do Incra, atingem as Terras Indígenas (TIs) Bacurizinho, do povo Guajajara, Kanela Memortumré, do povo de mesmo nome, e Porquinhos, do povo Apãnjekra Canela. Todas elas foram obtidas por empresas e fazendeiros durante o governo de Jair Bolsonaro.
A maioria destas certificações, 52, ocorreu após a publicação da Instrução Normativa (IN) 09 pela Fundação Nacional do Índio (Funai), no dia 22 de abril de 2020. Cerca de um terço das propriedades foi certificada no dia ou nas semanas imediatamente posteriores à publicação da medida, que liberou o reconhecimento de imóveis privados sobre terras indígenas ainda não homologadas. Os dados foram obtidos cruzando a base pública do Sigef com a base cartográfica da Funai.
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Demarcadas com uma área menor do que a reivindicada pelos indígenas na década de 1980, as TIs Bacurizinho, Kanela Memortumré e Porquinhos dos Apãnjekra Canela passam por processos de revisão de limites. Localizadas no Cerrado maranhense, elas formam um mosaico de territórios vizinhos, limitados entre si. As certificações sobrepõem-se apenas às áreas em revisão, ainda não regularizadas.
Até o final de 2020, foram 35 certificações aprovadas sobre a TI Porquinhos, 16 delas após a IN 09; 26 sobre a TI Bacurizinho, 20 das quais após a normativa; nove sobre a TI Kanela Memortumré, todas após a IN 09; e outras 13 que se sobrepõem a ambas as TIs Kanela Porquinhos e Kanela Memortumré, sete das quais aprovadas após a IN 09.
Tomadas em conjunto, quase metade da área não regularizada das três terras indígenas está sobreposta por fazendas certificadas pelo Incra: são 171 mil hectares de sobreposição ao todo. A área total das três terras indígenas, excluídas as porções já regularizadas, soma aproximadamente 373 mil hectares.
“Há uma grande má vontade política para dar continuidade a essas demarcações, que se arrastam por anos. Essas certificações são uma coisa muito trágica, porque exacerbam uma situação de conflito que é histórica”
Estagnação e retrocesso
As novas demarcações das TIs Bacurizinho, com 51 mil hectares, e Porquinhos dos Canela Apãnjekra, com 222 mil hectares, já possuem Portaria Declaratória expedida pelo Ministério de Justiça e se encontram, portanto, em fase avançada de demarcação; a TI Memortumré Kanela, com 100 mil hectares, encontra-se identificada e delimitada, numa fase anterior às outras duas TIs.
Quase uma década, entretanto, separa o atual momento do última avanço administrativo na demarcação destas terras indígenas: a movimentação mais recente ocorreu em 2012, quando o relatório da TI Kanela foi publicado pela Funai. A estagnação só foi interrompida por retrocessos – tanto administrativos quanto judiciais.
Desde 2014, a portaria declaratória da TI Porquinhos encontra-se anulada por decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF). Os Apãnjekra Canela recorrem da decisão, que ainda não transitou em julgado e foi baseada na tese do marco temporal e em condicionantes do caso Raposa Serra do Sol, contrariando jurisprudência da própria Corte.
“A anulação da portaria declaratória ocorreu com base num processo eivado de nulidades. A comunidade indígena, que é a principal interessada, não foi citada no processo, o que viola um princípio constitucional e processual”, explica Lucimar Carvalho, assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Maranhão.
A demarcação, em décadas passadas, de áreas menores que a reivindicada pelos indígenas e a consequente necessidade de reestudo dessas terras, explica a assessora, se deve aos históricos conflitos fundiários na região – que incluem, no caso da TI Porquinhos, um massacre ocorrido no início do século XX. Nos anos 1910, parte do povo Apãnjekra Canela foi dizimado justamente na área que hoje está em processo de demarcação e disputa judicial.
No caso da TI Memortumré Kanela, o retrocesso foi administrativo: em 2019, já sob o governo Bolsonaro, ela foi uma das 27 terras indígenas que aguardavam a emissão da Portaria Declaratória pelo Ministério da Justiça e foram devolvidas à Funai pelo então ministro Sérgio Moro, para averiguações com base na tese do marco temporal.
“Há uma grande má vontade política para dar continuidade a essas demarcações, que se arrastam por anos. Essas certificações são uma coisa muito trágica, porque exacerbam uma situação de conflito que é histórica naquela região. A normativa acentua os conflitos e demonstra mais ainda a vulnerabilidade desses povos”, afirma Lucimar.
“Esses particulares, empresas, latifundiários e fazendeiros que estão conseguindo certificar as propriedades vão se assegurando mais ainda nessa região, e começam a fazer um processo tremendo de devastação naquela área para as grandes plantações, com destaque para a soja. Foi isso que a gente observou numa viagem a campo feita recentemente. É uma violência legalizada contra os direitos desses povos indígenas, praticada pelo órgão que deveria exercer sua proteção”, avalia.
“A empresa diz que é dona, mas não é. Nós que somos donos desse lugar, onde massacraram nosso bisavô”
Além da destruição do território, Olímpio Apãnjekra Canela, liderança da TI Porquinhos, preocupa-se também com a falta de espaço para seu povo e suas práticas tradicionais, à medida que a população aumenta e as áreas preservadas diminuem.
“Nós que somos os donos [da terra], nós que somos o cimento, a raiz. E o branco quer tomar conta de nosso território. Eu tô pedindo para demarcar nosso território, porque nós precisamos. Nossa população já está aumentando. Temos netos, filhos, bisnetos, e nesse território que estamos morando é muito pequeno”, reivindica Olímpio.
O indígena lamenta a situação da região da aldeia Travessia, onde ocorreu o massacre que marcou o povo Apãnjekra Canela no início do século XX. A área foi excluída da primeira demarcação da TI Porquinhos, mas graças à mobilização dos indígenas, consta da nova demarcação.
“Ali na Travessia diz que eles já tem campo, já acabaram todo o Cerrado lá, o pé de bacuri, o pé de buriti, o pé de cocunhã”, relata a liderança. “O governo não quer ajudar os povos indígenas. A empresa diz que é dona, mas não é. Nós que somos donos desse lugar, onde massacraram nosso bisavô”.
Cinco empresas obtiveram 11 certificações que cobrem, ao todo, 32 mil hectares das três terras indígenas
Empresas e grandes propriedades
Segundo dados do Sigef, as propriedades certificadas com sobreposição total ou parcial às três TIs do Cerrado maranhense somam um total de 185 mil hectares e pertencem a 57 proprietários. Apenas dez destes proprietários detém sozinhos, contudo, mais da metade dessa área.
Com 21,7 mil hectares distribuídos em oito propriedades contínuas, a fazenda Faedo é o maior imóvel sobreposto a terras indígenas no Maranhão. As certificações da fazenda, que incidem sobre as TIs Porquinhos e Kanela Memortumré, foram todas obtidas ainda em novembro de 2019 – antes da publicação da IN 09 pela Funai.
Também chama atenção a quantidade e a área das propriedades privadas certificadas por empresas, principalmente do agronegócio, sobre as terras dos povos Kanela e Guajajara. Cinco empresas obtiveram 11 certificações que cobrem, ao todo, 32 mil hectares dessas terras indígenas.
A maior parte dessa área pertence às empresas Genesisagro S/A, Ferro Gusa do Maranhão (Fergumar) e Coppersteel Bimetálicos. Segundo a Receita Federal, a Genesisagro, sediada em São Paulo, tem suas atividades principais voltadas à agropecuária e à extração de madeira e declarou possuir um capital social de R$ 97,4 milhões.
A Fergumar, com capital social de R$ 37,4 milhões declarado ao Fisco, pratica o beneficiamento de minério de ferro e o comércio de produtos como soja, açúcar e cacau. A Coppersteel, com sede em Campinas (SP), atua na fabricação de fios, cabos e condutores elétricos. Além destas três, as empresas Formosa Agroflorestal e Agro Serra Industrial também obtiveram a certificação de fazendas sobre as TIs Porquinhos e Memortumré Kanela.
No Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), outra base de dados do Incra voltada ao cadastro de imóveis rurais, a Agro Serra Industrial figura como uma grande proprietária de terras. A empresa, que declara atuar na fabricação de álcool e no cultivo de grãos, entre outras atividades, possui oito imóveis Maranhão, os quais somam mais de 100 mil hectares.
Os imóveis, conforme a legislação rural, podem ser compostos de várias matrículas ou “parcelas”. São essas parcelas que o Sigef certifica, e que estão sempre vinculadas a um imóvel cadastrado no SNCR. Ao contrário do Sigef, o SNCR não é georreferenciado – ou seja, não é possível visualizar os imóveis rurais cadastrados em mapas.
Este mesmo sistema do Incra indica que a Genesisagro S/A, que certificou 9 mil hectares sobre as TIs Bacurizinho e Porquinhos, também possui grande extensão de terras no estado, com 18 imóveis que somam mais de 35 mil hectares. A Fergumar e a Coppersteel Bimetálicos possuem, cada uma, mais de 15 mil hectares de terras maranhenses, ainda segundo o cadastro.
Terra disputada
Uma breve sucessão de eventos registrada na base pública do Sigef ilustra algumas das disputas e dos impasses gerados pela normativa da Funai.
A maior área certificada por uma empresa sobre as terras indígenas do Maranhão pertencia à Agropecuária e Reflorestamento Serra Grande, voltada ao cultivo de eucalipto, segundo seu registro na Receita Federal. A empresa obteve cinco certificações sobrepostas à TI Porquinhos entre 2019 e março de 2020, com um total de 21,7 mil hectares.
Em dezembro de 2020, no entanto, o Incra identificou irregularidades e cancelou as certificações da empresa que incidiam sobre a terra indígena. Segundo o órgão, as certificações foram canceladas porque uma única matrícula de imóvel foi certificada em cinco diferentes propriedades. “Houve um desmembramento antes da certificação e confirmação de registro da área total”, informa o processo na página do Incra.
As parcelas canceladas também possuíam o mesmo código de imóvel rural, identificado no SNCR como “Fazenda Serra Grande” e cadastrado neste outro sistema com uma área 30% maior do que a soma das parcelas sobrepostas à terra indígena: 29 mil hectares.
Algumas das parcelas certificadas pela agropecuária eram distantes entre si. É comum que um imóvel seja composto de mais de uma parcela ou matrícula, mas, segundo o Estatuto da Terra e o próprio Incra, um imóvel rural é uma área “de terras contínuas” de um mesmo proprietário.
A disputa é intensa: apenas um dia depois das parcelas serem canceladas, outra propriedade, com 991 hectares, foi certificada sobre uma das áreas antes reivindicadas pela agropecuária – e, consequentemente, sobre a terra tradicional dos Kanela Apãnjekra.
“Essas propriedades acabam trazendo consigo esses projetos de infraestrutura, para garantir que a soja seja transportada”
Estradas, soja e carvão
Sobre o rio Mearim, que limita a nova demarcação da TI Bacurizinho a oeste, uma placa avisa que uma ponte de concreto armado está sendo construída pela prefeitura de Grajaú. Abaixo, logotipos das empresas Suzano, AgroFutura, Genesisagro e Faedo indicam as parceiras da prefeitura municipal na construção. As duas últimas possuem grandes áreas certificadas recentemente sobre as TIs Bacurizinho, Porquinhos e Kanela (no caso da Faedo, o detentor das certificações é o proprietário da empresa).
A ponte de concreto servirá para melhorar a infraestrutura de uma rede de estradas que cruza as TIs Bacurizinho, Porquinhos e Kanela e é utilizada pelas empresas e fazendeiros para escoar a produção de soja feita dentro da porção não regularizada dessas áreas, explica Gilderlan Rodrigues, coordenador do Cimi Maranhão.
“Essas estradas já estão sendo pavimentadas e interligam toda a região, formando um anel da soja, com beneficiamento pelas prefeituras de Grajaú, Fernando Falcão, Formosa. Elas já garantem o fluxo de caminhões que transportam a soja, passando por essas propriedades que avançam cada vez mais, destruindo o Cerrado”, explica.
“Essas propriedades acabam trazendo consigo esses projetos de infraestrutura, para garantir que a soja seja transportada sem nenhum problema até o porto em São Luís, de onde sai para outros destinos”, prossegue Gilderlan.
A placa da obra foi fotografada pela equipe do Cimi Regional Maranhão em incursão aos três territórios afetados pela IN 09, realizada em novembro de 2020. O regional percorreu e fotografou algumas das estradas que cortam as terras indígenas e conectam as fazendas certificadas sobre elas pelo governo federal.
Esta rede liga-se, também, a uma estrada que atravessa a área regularizada da TI Kanela e vem sendo denunciada pelos Kanela Memortumré devido ao alto fluxo de veículos em meio a suas aldeias, agravado durante a pandemia.
“Os indígenas têm visto com muita preocupação a instalação dessas empresas no entorno e dentro do seu território em processo de demarcação, porque elas desmatam as cabeceiras dos riachos, tratam as plantações com veneno, e tudo isso afeta as vidas dos povos. Além disso, áreas que são de caçada, de uso histórico desses povos, acabam sendo destruídas. Sem contar que eles ficam ilhados”, relata Gilderlan.
Ele destaca que a presença desses empreendimentos foi potencializada pelo Matopiba, projeto federal de expansão da fronteira agrícola que abrange os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia e atinge especialmente o Cerrado.
“Esse bioma predomina em 65% do território maranhense e possui uma riqueza de biodiversidade, ecossistemas, além dos saberes dos povos e comunidades do Cerrado. Com o Matopiba, muitas empresas foram chegando, se instalando e destruindo o Cerrado para a plantação da soja. Essa expansão do agronegócio muda a dinâmica do ambiente e da vida das pessoas, trazendo desiquilíbrio econômico, social e ecológico”, avalia.
“O processo de instalação dessas empresas inicia com as carvoarias, responsáveis por limpar o território para depois vir outros plantios, como soja, eucalipto, milho. Todo o Cerrado que ali existia você transforma em carvão”
A equipe do Cimi Regional Maranhão também identificou, durante a incursão, carvoarias em plena atividade na área em processo de demarcação da TI Bacurizinho. O carvão é utilizado, especialmente, no beneficiamento do minério de ferro para a produção de ferro-gusa, utilizado na fabricação do aço.
A Fergumar, que certificou três propriedades com um total de 10 mil hectares sobrepostos à TI Porquinhos, é uma das principais produtoras de ferro-gusa do estado. Para Gilderlan, além de fornecer carvão às siderúrgicas, as carvoarias cumprem o papel de abrir caminho para a instalação de monocultivos em territórios até então preservados.
“O processo de instalação dessas empresas inicia com as carvoarias, que são responsáveis por limpar o território para depois vir outros plantios, como soja, eucalipto, milho. Então, todo o Cerrado que ali existia você transforma em carvão”, explica o coordenador do Cimi Regional Maranhão.
No caso da TI Porquinhos, a atuação das administrações municipais contra a demarcação do território Kanela foi explícita. A portaria declaratória da terra indígena, publicada em 2009, foi anulada com base numa ação movida pelas prefeituras de Fernando Falcão, Barra do Corda, Formosa da Serra Negra e Grajaú.
“Além das prefeituras, fazendeiros, empresas, deputados, juízes e senadores vêm se mobilizando contra a revisão demarcatória das terras indígenas em prol de interesses privados na região”, salienta Gilderlan.
“O Cupen [não indígena] está levando madeira escondida, está levando fogo na nossa reserva que escapa nas matas, está desmatando nosso buriti, está desmatando nossa floresta”
“O pessoal fazendeiro diz que não quer que demarquem a nossa terra, mas nós temos direito, sim”, criticam Pio Apãnjekra Canela e Antonio Iogo Apãnjekra, lideranças da TI Porquinhos. “Os fazendeiros vieram morar aqui depois que o Mehin [indígena] já estava dentro da terra”.
“E o Cupen [não indígena] está levando madeira escondida, está levando fogo na nossa reserva que escapa nas matas, está desmatando nosso buriti, está desmatando nossa floresta. Queremos que o governo demarque a terra e o Cupen saia da nossa reserva, senão fica ruim pra nós. Onde que nosso neto vai viver?”, questionam as lideranças.
“De posse dessas certidões negativas, tal particular poderá comercializar, transferir, dar em garantia e até lotear áreas situadas em terras indígenas, conseguindo realizar negócios jurídicos com terras públicas”
Grilagem e insegurança jurídica
A IN 09 autoriza a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas ainda não homologadas, recorte que inclui tanto as terras indígenas em estudo quanto aquelas já identificadas ou declaradas, além das áreas com portarias de restrição de acesso devido à presença de indígenas isolados.
A medida foi publicada pela Funai sob a justificativa de levar “segurança jurídica” e “pacificar os conflitos” no campo. Na avaliação do Ministério Público Federal (MPF), entretanto, a IN 09 provoca efeitos que vão no sentido oposto, causando insegurança jurídica não só para os povos indígenas, mas também para proprietários e eventuais compradores destas áreas.
Em artigo, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha definiu a IN 09 como “flagrantemente inconstitucional”, ressaltando que, segundo a Constituição Federal, as terras indígenas não dependem da regularização para serem reconhecidas como tais.
“A sua regularização fundiária com demarcação e homologação, uma obrigação constitucional da União, é proteção importante, mas costuma se arrastar por muito tempo e passa por vários estágios, com limites já georreferenciados, antes da demarcação final. Eliminar essas TIs com perímetro já georreferenciado do cadastro do Sigef é escandaloso”, afirma a antropóloga.
A certificação de imóveis rurais, segundo o Incra, é uma exigência para a obtenção de financiamentos bancários e para transições imobiliárias em cartório, como compra e venda, desmembramento, hipoteca e partilha.
Existe o risco de que a obtenção do certificado sirva para recolocar estas terras no mercado – mesmo que já tenham sido reconhecidas como território de ocupação tradicional indígena e estejam em vias de demarcação. A morosidade nos processos demarcatórios, paralelamente, emperra indenizações a proprietários de boa-fé e acirra os conflitos pela terra – além de abrir margem para apropriações indevidas.
Esse é um dos pontos levantados pelo MPF do Maranhão, que ingressou com uma Ação Civil Pública, em outubro de 2020, para anular a IN 09 no estado. Os procuradores argumentam que a normativa gera “grave insegurança jurídica e severos conflitos rurais”, ao excluir as terras indígenas das bases de dados e permitir “que qualquer particular, seja posseiro, seja grileiro, obtenha certidão da entidade com a informação de que ‘seu’ imóvel não estaria situado em terra indígena”.
Além de liberar a certificação de propriedades por meio do Sigef sobre terras indígenas não homologadas, a normativa também exclui essas terras das “declarações de reconhecimento de limites” emitidas pela própria Funai a partir da requisição direta de proprietários.
“De posse dessas certidões negativas, tal particular poderá comercializar, transferir, dar em garantia e até lotear áreas situadas em terras indígenas, conseguindo, destarte, realizar negócios jurídicos com terras públicas”, destaca o MPF.
A ação do MPF no Maranhão segue uma iniciativa nacional adotada pelo órgão, que já ingressou com 27 ações em treze estados e acumula, até o momento, 17 decisões favoráveis, entre as quais 16 liminares determinando a suspensão da normativa e uma sentença, na região de Santarém (PA), determinando a sua anulação.
Reportagem publicada originalmente na edição 432 do jornal Porantim