18/10/2020

Xokleng Laklãnõ: a luta pela Terra Indígena que pode ser o marco de uma reparação histórica

Das reduções territoriais e impactos da Barragem Norte até se tornar caso de repercussão geral, o povo Xokleng jamais desistiu da Terra Indígena Ibirama La Klãnõ

Lideranças do povo Xokleng, durante audiência no STF. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Lideranças do povo Xokleng, durante audiência no STF. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi

Ibirama está localizada a poucos quilômetros de José Boiteux, no interior frio de Santa Catarina. Para chegar à Terra Indígena Xokleng Ibirama Laklaño é preciso cruzar Ibirama e riscar uma meia lua na rotatória encravada na avenida principal, onde se encontra o Monumento ao Centenário da cidade.

No centro da praça circular está um espiral feito de pedras, que começa quase rente ao chão e avança ao céu, encravado de esculturas de bronze representando os grupos fundadores da cidade. As esculturas reproduzem a clássica linha evolutiva humana, ensinada nas escolas, mas no caso relativa à Ibirama. Um indígena, esculpido abaixado, na parte inferior do monumento, está na ponta menos evoluída da linhagem; o passado australophiteco e selvagem ibiramense.

Agricultores e imigrantes estão em pé, ao lado de suas esposas e filhos, caminhando e convertendo paragens inóspitas em campos férteis, chegando à ponta evoluída dos habitantes de hoje: homo sapiens repletos de orgulho que pagam com o trabalho, uma espécie de fé cega passada de geração para geração, o pedágio moral para toda a matança registrada contra os nativos da região. O indígena no chão é, sem dúvida, um Xokleng. E o chão, território tradicional.

O povo Xokleng habitava grandes extensões de terras entre os estados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul. O território seguia de Porto Alegre até Curitiba e os Xokleng tinham como vizinhos os Guarani no litoral e os Kaingang no Oeste. Como esta grande casa passou a ser tomada pelos colonizadores, os Xokleng tiveram o território reduzido à Terra Indígena onde estão hoje, na região de Ibirama e José Boiteux, no Alto Vale do Itajaí.

Naquelas matas, tomadas por araucárias e imbuias, na foz do rio Platê, um grupo Xokleng permaneceu, por decisão própria, sem contato com os brancos que os acossavam até 1914, quando indigenistas do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) estabeleceram um posto de atração e contato. No mesmo ano foi reservada uma área de 40 mil hectares para o povo.

O intuito era obrigar os Xokleng a se restringirem a esse espaço delimitado para que o restante do território pudesse ser entregue aos colonizadores, que rapidamente passaram a invadir as áreas e a registrá-las nos cartórios de Ibirama.Em 1956, a demarcação é realizada pelo SPI, mas com apenas 14 mil hectares confirmando o conluio dos agentes do órgão indigenista do Estado com os interesses privados sobre as terras do povo Xokleng.

Em 1954, o indígena Brasílio Priprá viajou à sede do SPI, no Rio de Janeiro, sem autorização do chefe de posto. Denunciou a violência, a invasão e reivindicou ao menos 37 dos 40 mil hectares reservados aos Xokleng em 1914. Quando regressou, foi assassinado

Protesto do povo Xokleng pela demarcação do território, no ano 2000. Foto: Clóvis Brighentti/Cimi

Protesto do povo Xokleng pela demarcação do território, no ano 2000. Foto: Clóvis Brighentti/Cimi

O indígena Brasílio Priprá, dois anos antes, viajou à sede do SPI, no Rio de Janeiro. O fez sem autorização do chefe de posto. Brasílio denunciou a violência, a invasão e a perda das terras. Reivindicou ao menos 37 mil hectares dos 40 mil reservados aos Xokleng em 1914. Quando regressou, em 24 de agosto, foi assassinado nas proximidades na casa do chefe de posto Eduardo Hoerhan, que por conta do episódio foi exonerado do cargo.

Hoerhan era um sujeito bruto, cruel e odiava os Xokleng. Não era raro o SPI manter figuras com este perfil nas chefias de postos das Terras Indígenas. Outras acusações recaiam sobre Hoerhan: ele costumava experimentar as armas de fogo utilizando os Xokleng como alvo e estuprava as indígenas virgens para ser o primeiro a deflorá-las.

Acusações documentadas, com acesso aos pesquisadores e em parte presentes no Relatório Figueiredo. Hoerhan submetia ainda os indígenas a trabalhos em condições análogas à escravidão, fazendo-os cumprir jornadas exaustivas em troca de comida. É assim mesmo.

“Mas quem disse que iam deixar a gente quieto nos 14 mil? Começaram a invadir… madeireiro grileiro. O sufoco era não permitir que isso acontecesse e chegou a ter conflito”, lembra Brasílio Pripá, neto do Xokleng assassinado após denunciar o chefe de posto ao SPI.

Conforme cronologia organizada pela missionária Osmarina Oliveira, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), e pelo professor do Departamento de História da Unila, Clovis Brighenti, em 1962 os Xokleng precisaram expulsar um grupo de invasores que buscavam esbulhar lotes da Terra Indígena.

Os Xokleng chegaram a realizar caminhadas até Florianópolis para audiências com o Governo do Estado. Pediam proteção, ajuda para manter os invasores longe desse pequeno quinhão de terra tradicional.

No entanto, em 1975 foi o próprio governo a atacar os Xokleng. Em outubro, o Decreto Federal n.º 76392 declara como de utilidade pública parte da Terra Indígena Xokleng para a construção, no rio Hercílio ou Itajaí do Norte, da Barragem Norte no Alto Vale do Itajaí.

Dos 14 mil hectares, o povo vivia em 15%, local onde a aldeia estava instalada. O restante era a área de mata, preservada. “A Barragem Norte foi construída exatamente dentro desses 15%. Então o povo foi desalojado dentro do próprio território”

Vista da Barragem Norte e o local onde estava instalada a antiga aldeia Xokleng, vítima do despejo dentro da própria Terra Indígena. Foto: Renato Santana/Cimi

Vista da Barragem Norte e o local onde estava instalada a antiga aldeia Xokleng, vítima do despejo dentro da própria Terra Indígena. Foto: Renato Santana/Cimi

O Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), no ano seguinte, invade a Terra Indígena para construir a barragem de contenção contra as cheias no Vale do Itajaí. São alagados 900 hectares dentro dos 14 mil reservados aos Xokleng, em 1956, justamente onde se encontrava a aldeia e as melhores terras para cultivo. Os indígenas não puderam se manifestar contrários à barragem porque sofreram várias ameaças por parte da Polícia Federal.

As dissociações geradas pela Barragem Norte são sentidas até os dias de hoje. De uma aldeia, o povo passou a ter oito com diferentes caciques. Os conflitos internos, então, estouraram com a conversão da Terra Indígena em um grande canteiro de obras. Muita gente de fora chegou ao território.

“O povo foi se esparramando. Perdemos áreas planas e boas para o plantio. O sustento, a terra já não dava mais. Muitos Xokleng passaram a ter de arrumar trabalho nas cidades do entorno. Ficou muito difícil”, explica Brasílio Pripá.

A liderança Xokleng ressalta um dado fundamental para justificar a intensidade do impacto: dos 14 mil hectares, o povo vivia em 15%, local onde a aldeia estava instalada. O restante era a área de mata, preservada, destinada à caça, coleta e retirada de materiais para rituais e artesanatos. Não era apropriada para moradia e agricultura, com muitas encostas e barrancos; terrenos acidentados.

“A Barragem Norte foi construída exatamente dentro desses 15%. Então o povo foi desalojado dentro do próprio território. A fundação das novas aldeias esbarrou na dificuldade”, conta.

A dispersão passou a ser um jogo de tentativa e erro. As famílias se mudavam para um lado, percebiam que não conseguiriam viver e se mudavam para outro lugar.

A dificuldade ainda se tornou maior depois da barragem pronta, com as cheias que inundavam parte da Terra Indígena, incluindo estradas de locomoção. Famílias chegavam a ficar ilhadas semanas durante semanas. Os escombros desse passado ainda estão aparentes em muitas aldeias.

Sassafrás foi uma das áreas destinadas à colonização. Empresas madeireiras passaram décadas esbulhando a mata. Quando não havia mais nada, a devolveram ao governo, que criou uma Reserva Biológica

Vista da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ. Foto: Renato Santana/Cimi

Vista da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ. Foto: Renato Santana/Cimi

Como compensação pela extinção da aldeia, casas foram construídas para as famílias. Entregues em terrenos impróprios e condições estruturais, em menos de um ano as cas começaram a rachar. Aos poucos o terreno foi cedendo e a Defesa Civil as condenou, ordenando que os moradores se retirassem delas. A reportagem do Porantim visitou cinco dessas casas, nas aldeias Coqueiro e Palmeira, hoje em escombros ou já totalmente engolidas pelo desbarrancamento da encosta.

Para acrescentar, o governo de Santa Catarina cria a Reserva Biológica Estadual do Sassafrás, em 1977, sobre parte da terra tradicional Xokleng, pegando um pedaço dos 14 mil hectares e restringindo a circulação dos indígenas para além deles.

Sassafrás, na verdade, foi uma das áreas destinadas à colonização. Empresas madeireiras passaram décadas esbulhando a mata. Quando não havia mais nada para desmatar, a devolveram ao governo, que criou a Reserva.

“Tudo isso fez a Terra Indígena diminuir para o povo. Vivíamos confinados: nos 15% onde tínhamos moradia e comida está a barragem, em outra parte não dá pra viver, fazer casa, agricultura… por isso então decidimos reivindicar a demarcação dos 37 mil hectares”, analisa Brasílio.

A partir do início da década de 90, os Xokleng passam a realizar retomadas de áreas tradicionais. Primeiro foi a aldeia Palmeirinha, em 1995, anos mais tarde os indígenas retomaram a região onde hoje está a aldeia Bugio, então dominada pela madeireira Berri.

Depois de muita pressão, a Fundação Nacional do Índio (Funai) cria o Grupo Técnico para identificação e delimitação. Em 1999, a Funai publica o relatório reconhecendo 37.108 hectares. Mais de 300 contestações foram feitas ao término do prazo, em março de 2000.

Naquele ano, os 500 anos da invasão portuguesa, quando a Marcha Brasil Outros 500 acabou com festejos organizados pelo governo Fernando Henrique Cardoso, os Xokleng viram o Ministério da Justiça mandar duas vezes o relatório de volta para a Funai, na intenção de que fosse refeito por pressão do governo de Santa Catarina e madeireiros.

Até 2003, quando Luís Inácio Lula da Silva inicia seu mandato na Presidência da República, o relatório iria retornar para a Funai mais três vezes, mas o então ministro Márcio Thomaz Bastos assina a portaria e no ano seguinte a demarcação física teria início sem ainda chegar ao término.

“Em 1952, quando essas terras foram negociadas, o governo expulsou. Se usar o marco temporal, tira o nosso direito da terra. Se as comunidades não estão nas áreas é porque alguém chegou depois e expulsou quem estava. Mas sempre estivemos nelas e quando nos expulsaram, passamos a brigar por elas”

Indígenas do povo Xokleng e outros povos da região Sul acompanham audiência no STF. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Indígenas do povo Xokleng e outros povos da região Sul acompanham audiência no STF. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Se por um lado os invasores da Terra Indígena passaram a atacar e ameaçar a comunidade, inclusive incendiando um dos marcos colocados pela Funai demarcação física, em 2008, começa também a longa trajetória na Justiça que culminou, em 2019, no caso ter sido enquadrado como de Repercussão Geral pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Os 14 mil hectares estão dentro dos 37 mil. Nesta área total, há 486 famílias não indígenas: 340 ocupantes de boa-fé e 146 de má-fé, ou seja, que não têm direito à indenização.

“Na verdade a grande maioria quer sair, mas só saem quando receberem as indenizações. Agora enquanto isso não se resolve, os conflitos acontecem”, diz Brasílio.

Um destes conflitos terminou com a condenação de três indígenas, em 2010. Cunllung Vêi-Tcha Têie Winklr, Vaihecu Ndilli e o cacique Jeremias Pattã foram condenados pela Justiça Estadual de Santa Catarina a penas que variaram entre 10 e 12 anos.

O juiz se negou a transferir o processo para a esfera federal porque não considerou os Xokleng como indígenas. Os índios foram julgados por impedir a retirada ilegal de madeira nativa e reflorestada de suas terras (situadas dentro dos 37 mil hectares). A manifestação aconteceu no dia 13 de janeiro de 2006, após várias denúncias sem respostas feitas à Funai.

No STF, o governo de Santa Catarina faz uso do marco temporal para questionar a ocupação Xokleng, de que o povo não estava na área que reivindica em 5 de outubro de 1988, na proclamação da Constituição Federal.

“O marco temporal seria uma covardia… em 1952, quando essas terras foram negociadas, o governo expulsou. O pacificador disse que tinha que sair… fomos expulsos, tocados… há cemitérios e tudo nas áreas que fomos obrigados a deixar. Se usar o marco temporal, tira o nosso direito da terra. Se as comunidades não estão nas áreas é porque alguém chegou depois e expulsou quem estava. Mas sempre estivemos nelas e quando nos expulsaram, passamos a brigar por elas”, encerra Brasílio.

Reportagem originalmente publicada no jornal Porantim 413
Conheça a história do povo Xokleng, no centro do debate sobre direitos indígenas no STF

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