27/09/2019

STJ decide se indígenas terão direito a tradução, perícia antropológica e intérprete em processo penal

Resolução 287, Constituição Federal e Convenção 169 baseiam ingresso de habeas corpus, pela defesa dos indígenas, no STJ

Os Kaingang reivindicam a conclusão da demarcação e o pagamento de indenização aos não indígenas que estão em seu território. Foto: Ivan César Cima

Os Kaingang reivindicam os pagamentos de indenizações aos agricultores que estão em seu território. Foto: Ivan César Cima/Cimi

Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgará na próxima terça-feira (1), em Brasília, um habeas corpus pedindo a tradução do processo, intérprete e perícia antropológica na ação que acusa 19 indígenas Kaingang pela morte de dois agricultores, durante conflito ocorrido em abril de 2014 no município de Faxinalzinho, no Alto Uruguai (RS).

Na relatoria da matéria está o ministro Rogério Schietti Cruz, que solicitou a paralisação da tramitação do processo penal, já em fase final de alegações, até o julgamento do habeas corpus. Uma delegação Kaingang acompanhará a sessão do STJ. Os 19 indígenas acusados respondem em liberdade.  

Cinco indígenas chegaram a ser presos sem qualquer evidência de participação e seguem inscritos, junto a outros 14, nos crimes dos quais são acusados de forma genérica e sem individualização de condutas no processo penal. Os Kaingang acusados são das terras indígenas Votouro e Kandoia

Durante o ano de 2014, o povo Kaingang realizou mobilizações pela regularização de seus territórios tradicionais. Foram manifestações no Rio Grande do Sul e em Brasília. A prisão dos cinco Kaingang ocorreu durante uma mesa de diálogo sobre as demarcações, que ocorriam por todo o país, em que o ex-ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, por coincidência, cancelou a ida de última hora.  

Conforme argumenta a defesa dos indígenas, a tradução do processo na língua Kaingang, um intérprete nas oitivas e perícia antropológica são direitos referendados pela Constituição Federal, pela Convenção 169 e agora pelo CNJ

Antes de ingressar com o habeas corpus no STJ, a defesa dos Kaingang, feita pela Assessoria Jurídica do Conselho indigenista Missionário (Cimi), fez o mesmo pedido ao juiz da ação, que corre na Justiça Federal de Erechim, mas o magistrado indeferiu a solicitação. A defesa recorreu então ao Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, que manteve a decisão de primeira instância.

Conforme argumenta a defesa dos indígenas, a tradução do processo na língua Kaingang, um intérprete nas oitivas e perícia antropológica, realizado por um perito nomeado pelo próprio tribunal, são direitos referendados pela Constituição Federal, pela Convenção 169 e agora pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) com a Resolução 287, publicada em 25 de junho de 2019. 

A resolução estabelece procedimentos ao tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, e dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do Poder Judiciário. A resolução determina ainda a observação a convenções internacionais.

De acordo com o artigo 5º “a autoridade judicial buscará garantir a presença de intérprete, preferencialmente membro da própria comunidade indígena, em todas as etapas do processo em que a pessoa indígena figure como parte”. Neste mesmo artigo, a resolução do CNJ diz que a presença do intérprete pode ocorrer mediante solicitação da defesa ou da Fundação Nacional do Índio (Funai).

Já no artigo 6º, a resolução determina que “ao receber denúncia ou queixa em desfavor de pessoa indígena, a autoridade judicial poderá determinar, sempre que possível, de ofício ou a requerimento das partes, a realização de perícia antropológica, que fornecerá subsídios para o estabelecimento da responsabilidade da pessoa acusada”. 

Neste laudo deve constar a qualificação, a etnia e a língua falada pela pessoa acusada; as circunstâncias pessoais, culturais, sociais e econômicas da pessoa acusada; os usos, os costumes e as tradições da comunidade indígena a qual se vincula; o entendimento da comunidade indígena em relação à conduta típica imputada, bem como os mecanismos próprios de julgamento e punição adotados para seus membros.

Reunião entre lideranças Kaingang: espiritualidade e luta são as marcas de um povo resistente. Crédito da foto: Ivan Cesar/Cimi

Amigos da corte

Após a negativa do TRF-4 ao direito dos indígenas à tradução, dez organizações de defesa dos direitos humanos, entre instituições da Colômbia, México, Peru e Estados Unidos, e clínicas de direitos humanos de universidades do Brasil e do Canadá, ingressaram no processo com pedido de amicus curiae (amigos da corte) ao STJ. 

O relator da ação, ministro Rogério Schietti Cruz, não aceitou os ingressos, mas incorporou as petições respectivas ao processo legal.  

O amicus curiae é um instrumento pelo qual instituições com conhecimento e atuação reconhecidas no tema em discussão pela corte podem participar de processos, produzindo subsídios e contribuindo para a qualificação da decisão a ser tomada pelo tribunal.

A Fundação para o Devido Processo Legal, uma das organizações que ingressaram com pedido de amicus curiae, se posicionou em nota afirmando que o Brasil “é um dos poucos países do continente no qual um juiz penal pode aferir, sem qualquer apoio em perícia antropológica ou linguística, o grau de compreensão do indígena sobre um determinado idioma”.

Atentando aos parâmetros do Direito Comparado e do Direito Internacional dos Direitos Humanos, as organizações apontam que a tradução, a interpretação e a perícia antropológica devem ser observadas desde a primeira etapa do processo penal para evitar que o devido processo legal e a ampla defesa sejam prejudicados.

 

Fonte: Assessoria de Comunicação - Cimi
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