Que a universidade se pinte de povos
Mobilização de estudantes indígenas e quilombolas que surgiu como respostas às paralisações de programas sociais do MEC resiste mais diversidade no ensino superior
“Que a universidade se pinte de povo”, exclamava Ernesto Che Guevara em dezembro de 1959 ao receber o título de doutor honoris causa da Universidade de Las Villas em Santa Clara, Cuba. “A universidade não é património de ninguém, é pertencente ao povo”, afirmava o líder comunista em discurso.
Povos: negros, indígenas, ribeirinhos e toda diversidade étnica com seus conhecimentos valorizados e reconhecidos. Hoje, seis décadas depois, o clamor por uma universidade democrática se estende nos institutos e universidades federais do Brasil. As trincheiras que se erguem já não são físicas, como na revolução cubana contra o imperialismo norte-americano que de forma desumana vigorava no país da América Central. São resistências contra epistemicídios, desvalorização dos saberes tradicionais e vigilância contra todo retrocesso nas políticas sociais de educação. “Não aceitaremos mais doutores brancos que não conhecem nossas realidades”, sustenta firmemente a estudante Cláudia Hermano, indígena Pataxó.
Com que práticas educacionais sonham os estudantes indígenas e quilombolas? Quando os povos adentram os ambientes acadêmicos, não mais aceitam as mordaças coloniais: Permanência já, nenhum universitário indígena ou quilombola a menos, entoam em marchas e manifestações. “Nosso movimento é pela garantia da democratização do direito à educação como esforço de diminuir a exclusão e violências historicamente perpetrada no país”, afirmam em documento.
O coletivo de estudantes indígenas e quilombolas surge no país não apenas como luta pela continuidades das ações afirmativas conquistadas nos últimos anos. Mobilizam-se por uma descolonização dos centros de estudos e contra os racismos institucionais existentes na academia. Transformam a reivindicação pela manutenção da Bolsa Permanência em uma “pauta guarda-chuva”, como classificam. Com ela, desejam uma realidade sem porta onde os povos colorem a universidade com as cores que melhor lhes pareça. Para eles, os espaços de conhecimento devem cumprir um fim social coletivo: “encaramos essa luta para continuar nas universidades como compromisso com nosso povo”, sustenta a jovem indígena Pataxó.
“Queremos romper com esse racismo velado que existe dentro das instituições e que são um reflexo das políticas de Estado e de governo”
Contra Retrocessos
A organização iniciada há dois meses nas universidades surgiu por uma pauta específica: era contra a paralisação do Programa Bolsa Permanência (PBP). O Ministério da Educação, sem diálogo com as universidades, passou quatro meses sem comunicar os motivos da paralisação no auxílio. O movimento ganhou corpo contra os cortes de aproximadamente 4 mil vagas no programa e chegou em Brasília (DF) na semana de 18 a 22 de junho com 300 estudantes de 18 institutos e universidades federais. Inicialmente, a mobilização posicionava-se contra as políticas de corte do Ministério da Educação (MEC), que em maio decidiu resumir o auxílio do Bolsa Permanência a 800 bolsas em uma efetivo de inscritos que chegará a cinco mil para 2018.
Contudo, na medida que as realidades iam se encontrando e partilhando as experiências enfrentadas pelos povos e comunidades tradicionais que estão na academia, a gama de pauta estendeu-se. Sustentaram a importância da Bolsa Permanência e agregaram as lutas contra os racismos institucionais, continuidade das violências coloniais enfrentadas pelos povos há mais de cinco séculos. “Queremos uma universidade que respeite as diferenças. São mais de 305 povos que chegam nas universidades e veem o despreparo das instituições para receber a cultura e a tradição de diferentes povos, indígenas e quilombolas”, comenta Rodrigo Mariano, indígena Guarani Mbya.
“A permanência dos estudantes indígenas e quilombolas nas universidades vai além do programa de bolsa permanência do MEC. São muitas questões implicadas, e uma delas é o racismo, o preconceito na sala de aula. As instituições não estão preparadas para receber tanta diversidade cultural no espaço acadêmico”, avalia o indígena estudante de Direito na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
“Queremos romper com esse racismo velado que existe dentro das instituições e que são um reflexo das políticas de Estado e de governo”, resume o indígena.
Uma universidade democrática
Após dois meses de mobilização, estudantes indígenas e quilombolas construíram um coletivo que tem como embrião o desejo de uma universidade democrática. Transformaram uma ameaça aos direitos sociais em pauta de reivindicações e mantiveram as agendas de incidência no Governo Federal, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal mesmo após a tentativa de desmobilização do MEC. Na semana que antecedeu os atos em Brasília (DF), ministro da Educação e representantes do ministério telefonaram para as lideranças do movimento na tentativa de dissolver a organização.
Também, no dia 16 de junho o MEC divulgou uma proposta de 2.500 bolsa, quantitativa referente aos inscritos no primeiro semestre de 2018. A medida foi classificada como tentativa de desarticulação do movimento e a quantidade de bolsas insuficiente por não considerar os que ainda irão se inscrever no segundo semestre. Por isso, mantiveram a chamada de ato.
“Nosso movimento é pela democratização do direito à educação. Estudar não pode ser mais um privilégio de poucos”
A mobilização em Brasília
Após a semana de mobilização em Brasília (DF), que se estendeu de 18 a 22 de junho, movimento dos estudantes indígenas e quilombolas pontuou em documento os avanços nas políticas de permanência e acompanhamento dos povos e comunidades tradicionais no ensino superior.
Os primeiros questionamentos feitos pelo movimento ao Governo se referiam ao número de vagas divulgadas pelo MEC no dia 16 de junho. “As ofertas, de 2.500 bolsas, não contemplavam todos e todas estudantes indígenas e quilombolas”, expõe a nota final da mobilização. Por isso, as representações, em reunião com Casa Civil e Ministério da Educação, questionaram a efetividade dos diálogos do MEC com o coletivo. Em resposta aos questionamentos, representante da Secretaria de Ensino Superior, Vicente de Paula Almeida Júnior, afirmou que o quantitativo exposto pelo ministério trata-se de uma estimativa. “O MEC irá atender todos os inscritos”, garantiu.
A segunda conquista: o MEC comprometeu-se a inserir os estudantes retirados do PBP por ultrapassar tempo estimado de curso. Para representações indígenas e quilombolas, limitar a bolsa ao tempo padrão do curso é desconsiderar as especificidades dos povos, como “situação de vulnerabilidade socioeconômica no enfrentamento de condições logísticas e financeiras para se manter na universidade, a realidade de escolarização básica defasada e de inserção nos novos ambientes de aprendizado e de avaliação, despreparados para a diversidade”.
Na Câmara dos Deputados, após incidência nas Comissões de Educação e de Direitos Humanos e reuniões com deputados, a delegação garantiu que ações afirmativas para indígenas e quilombolas sejam incluídas como parecer ao Projeto de Lei (PL) 1434/2011, que está sob relatoria da deputada Alice Portugal (PCdoB – BA). Ainda, uma audiência pública agendada para a primeira semana de agosto na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados debaterá as políticas públicas de educação para indígenas e quilombolas.
“Desejamos que o Programa Bolsa Permanência se torne uma política de Estado, independente de governos, com leis que amparem a eficiência do programa”
Projeto de Lei 1434/2011
O PL 1434/2011 cria um Fundo Nacional de Assistência Estudantil (Funaes), que assumirá projetos de moradia estudantil de instituições de educação superior públicas, concederá bolsas de manutenção voltadas à permanência no ensino superior e apoiará o desenvolvimento de projetos de assistência à saúde dos estudantes. As conquistas sempre levarão em conta às tradições culturais. Uma subcomissão foi criada para acompanhar a relatoria que incluirá as demandas dos povos indígenas e quilombolas no PL 1434/2011.
Trincheiras de resistência
Além das conquistas pontuais nos poderes Executivo e Legislativo, a mobilização “constitui-se como trincheira de resistência”. A unidade entre estudantes indígenas e quilombolas foi pontuado pela mobilização como fato histórico que permanecerá “contra qualquer retrocesso nas políticas sociais” que afete os povos e comunidades tradicionais.
Em documento, o movimento afirma que se dispõe a dialogar com MEC para aperfeiçoar políticas de educação continuada, alfabetização, diversidade e inclusão. Todavia, garantem não recuar nos direitos conquistados. “Nenhum indígena ou quilombola ficará fora da universidade por cortes orçamentários realizado pelo Governo de Michel Temer no Ministério”, afirma a nota.
Durante a semana de lutas, a delegação de aproximadamente 300 estudantes, de 18 universidades e institutos federais, cumpriu agendas na Câmara dos Deputados, nas Comissões de Educação e Direitos Humanos, na Casa Civil, Ministério da Educação, Secretaria de Planejamento, Secretaria de Articulação Social da Presidência da República e Secretaria de Promoção de Igualdade Racial.
“O Bolsa Permanência é uma política de ação afirmativa criada para atender uma vulnerabilidade, como fazer distinção de quem é vulnerável ou não entre os vulneráveis?”
800 bolsas? Não aceitamos!
Com justificativa de que Ministério da Educação (MEC) trabalha com rombo de quase 11 milhões no Programa Bolsa Permanência, Rossieli Soares, comunicou oficialmente no dia 29 de maio os cortes no auxílio financeiro à indígenas e quilombolas que estudam em universidades federais. Em reunião com 20 representantes que viajaram à Brasília (DF) em nova incidência para defender o programa, o ministro da educação informou que dispunha únicas 800 vagas anuais.
A realidade: a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi/MEC) divulgou que no primeiro semestre universidades federais receberam matrículas de 2.492 indígenas e quilombolas.
A proposta do MEC apresentada para a delegação com representações das cinco regiões do país é de que, para o corte de mais de aproximadamente 4 mil vagas anuais da Bolsa Permanência, se criasse um Grupo de Trabalho composto pelos próprios indígenas e quilombolas. A equipe teria missão de “cunhar critérios” para estabelecer quem receberia a bolsa. A proposição foi repudiada sob a argumentação de que “não irão legitimar a retira direitos e a exclusão dos próprios parentes”.
“Pedir para criar uma comissão para que quatro pessoas resolvam o problema do governo? Não aceitaremos. É uma maneira que o MEC está arrumando de diminuir o acesso de indígenas e quilombolas no ensino superior”, comentou Marcley Pataxó.
“O ministro nos trouxe até Brasília para ser frio, ríspido, não se dispor a ouvir as demandas e saber das realidades. Veio só para dar a decisão que já estava tomada e dizer que precisava sair para reunião com Temer. Não veio para um diálogo, somente para uma imposição?”, questionou Luana Kumaruara. “O Bolsa Permanência é uma política de ação afirmativa criada para atender uma vulnerabilidade, como fazer distinção de quem é vulnerável ou não entre os vulneráveis? “, questionou a estudante da UFOPA.
Após oferta do Ministério da Educação, indígenas e quilombolas reuniram-se em assembleia e decidiram recusar a proposta. Foi então que se gestou a mobilização da semana de 18 a 22 de junho com o intuito de pressionar MEC a reavaliar sua proposta. Para representações, aceitar os cortes seria legitimar as medidas do ministério.
“A paralisação do programa põe em risco nossa permanência na universidade” – Cláudia Pataxó
Histórico da Mobilização
Se passavam quatro meses desde que o ano letivo iniciara e o Programa Bolsa Permanência, administrado pela Secretaria de Ensino Superior (SISU) do MEC, não tinha iniciado os procedimentos de inscrição. O auxílio de R$ 900,00 concedido pelo programa é destinado a indígenas e quilombolas e até 2016 incluia estudantes de baixa renda. Costumeiramente, desde o primeiro ano do programa em 2013, as inscrições ocorriam logo no primeiro mês do semestre.
Diante a passividade do MEC em cumprir a Portaria 389/2013, que estabelece o auxílio, uma agenda de mobilizações levou para os ambientes de debates das universidades as fragilidades das políticas públicas sobre educação diferenciada para povos e comunidades tradicionais. Em Brasília (DF), iniciaram as reivindicações que buscavam explicações para paralisação do programa.
A primeira mesa de diálogo entre mobilização e Ministério da Educação ocorreu durante o 14ª Acampamento Terra Livre, no dia 25 de abril, quando o ministro da educação Rossieli Silva recebeu uma delegação de estudantes e professores indígenas. Na ocasião, representações afirmaram ao governo que mesmo com o acesso às universidades garantido por meio das políticas de cotas, a permanência de indígenas em cursos de graduação e pós-graduação não está assegurada por causa da paralisação do auxílio.
“A universidade não está preparada de todas as formas para nos ensinar, até mesmo para nos receber. Não está preparada para entender as formas com que os indígenas pensam” lamentou Luana Kumaruara na reunião de abril. Estudante de antropologia na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), a liderança indígena Kumaruara é uma das 400 indígenas que estuda na universidade paraense. “Sem dinheiro, não tem como o indígena se manter na cidade”, assegurou.
O primeiro argumento utilizado pelo governo foi de que os atrasos na entrega das bolsas de permanência seriam decorrência da desatualização nos cadastros dos alunos. Ao atribuir a culpa nas universidades, passaram-se dois meses sem providências do MEC. Indígenas e quilombolas iniciaram incidência na capital federal e continuaram o debate nos campos locais.
No dia 22 de junho, uma delegação de 50 acadêmicos de universidades e institutos federais da Bahia cobrou providências do MEC diante a paralisação do auxílio. Os estudantes dos povos Pataxó, Tumbalalá, Tuxá e Tupinambá, durante uma semana de mobilização na capital federal, exigiram a continuidade do auxílio financeiro que contribui na manutenção dos estudantes – moradia, alimentação e transporte.
“Começamos nossa faculdade por contar com esse apoio. Sem a continuidade os nossos estudos estão ameaçados”, comentou Cláudia Pataxó. Para a indígena, a fragilização das políticas sociais “é um projeto que retira a diversidade das universidades”. “Não queremos mais doutores brancos. Exigimos condições para nos formarmos e ajudarmos nossas comunidades a viverem de forma autônoma. É a única oportunidade de darmos um futuro melhor para nossas aldeias”, completou Claudia Pataxó, acadêmica de economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Nas agendas da delegação de estudantes da Bahia, quando ainda não se tinha previsão para divulgação do edital do programa, representação do MEC afirmava aguardar aprovação orçamentária da Subsecretaria de Planejamento do ministério. Primeiro, a paralisação da bolsa era problema nos documentos. Agora, aprovação orçamentária.
Na reunião com as Secretarias de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) e de Ensino Superior (SESU), ambas do MEC, Vicente de Paula Almeida Júnior afirmou que ministério analisa orçamento e que fim do programa é “boato para fazer terrorismo”. Ainda, que o ministério “precisa aguardar o aumento da arrecadação dos impostos para abrir o programa”. Vicente é da Diretoria de Políticas e Programas de Educação Superior.