28/05/2018

Projeto ruralista que altera Estatuto do Índio e cria lei antidemarcação pode ser votado na Câmara

Pronto para ir à votação na Comissão de Constituição e Justiça, projeto de lei ruralista estabelece marco temporal como critério para demarcações e retira direito de consulta

Indígena em frente ao Congresso Nacional durante o ATL 2018. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Indígena em frente ao Congresso Nacional durante o ATL 2018. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Por Tiago Miotto, da Ascom/Cimi

[Atualizado em 30/05/2018]

Os Projetos de Lei (PLs) 490/2007 e 6.818/2013, que tramitam em conjunto com outras dez medidas, estão em estágio avançado na Câmara dos Deputados. O parecer do relator, o ruralista Jerônimo Goergen (PP/RS), foi apresentado à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) em maio e está pronto para ser votado. O relatório chegou a ser incluído na pauta do dia 30 de maio, mas a reunião da CCJC foi cancelada.

O ruralista defende a aprovação de um substitutivo ao PL 6.818, que é um dos onze projetos apensados – ou seja, que tramitam juntos por tratarem de matéria semelhante – ao PL 490. Sua proposta descarta o inconstitucional PL 490, mas é ainda pior: altera o Estatuto do Índio e cria uma nova lei para “regular a demarcação de terras indígenas”.

Na prática, o substitutivo proposto por Goergen estabelece um conjunto de dispositivos que inviabilizam as demarcações, facilitam obras e a exploração de recursos em terras indígenas e retiram o direito de consulta prévia dos povos originários, consagrado internacionalmente.

Ele também insere no Estatuto do Índio – que data de 1973 – a tese do marco temporal, segundo a qual os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.

A partir do relatório de Goergen, o conteúdo do Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU) – chamado por indígenas de “Parecer do Genocídio” e apontado como inconstitucional pelo Ministério Público Federal (MPF) – também é incorporado ao projeto e pode ser fixado em lei.

“Trata-se de mais uma iniciativa anti-indígena por meio da qual a bancada ruralista tenta aprovar o conteúdo também presente na PEC 215 e no Parecer 001 da AGU de Temer”

Em parecer sobre o projeto, a Assessoria Jurídica do Cimi avalia que o substitutivo de Goergen “é inconstitucional, pois afronta os artigos 231 e 232 da Constituição Federal”.  A análise também aponta que o PL “se utiliza de precedentes já superados” pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e usa apenas partes de decisões que, fora de contexto, prejudicam os povos indígenas.

Os parlamentares Chico Alencar (RJ) e Ivan Valente (SP), ambos do PSOL, apresentaram um voto em separado no qual apontam que os PLs 490 e 6.818, assim como os outros apensados a eles, são inconstitucionais, restringem as demarcações e atendem aos “interesses de grupos econômicos específicos”, com a finalidade de “eliminar boa parte dos direitos conquistados pelos povos indígenas”.

“Trata-se de mais uma iniciativa anti-indígena por meio da qual a bancada ruralista tenta aprovar o conteúdo também presente na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215 e no Parecer 001 da AGU de Temer”, avalia Cleber Buzatto, secretário executivo do Cimi.

Caso seja aprovado na CCJC, o substitutivo de Goergen ao PL 6.818 passa à plenária e pode ser aprovado por maioria simples – ou seja, basta obter votos favoráveis da maioria dos parlamentares presentes.

Confira o parecer da Assessoria Jurídica do Cimi sobre o substitutivo de Jerônimo Goergen (PP/RS) ao PL 6.818/2013

Jerônimo Goergen, no microfone, ao lado do ruralista e colega de bancada Luís Carlos Heinze (PP/RS), que já disse que "quilombolas, índios, gays, lésbicas" são "tudo que não presta". Foto: divulgação

Jerônimo Goergen, no microfone, ao lado do ruralista e colega de bancada Luís Carlos Heinze (PP/RS), que já disse que “quilombolas, índios, gays, lésbicas” são “tudo que não presta”. Foto: divulgação

Emaranhado anti-indígena

Parado desde 2015, o PL 490 voltou a ser movimentado neste ano, depois que a intervenção federal no Rio de Janeiro foi decretada por Temer. Enquanto a intervenção vigora, emendas à Constituição Federal não podem ser aprovadas e, por isso, a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, principal proposta anti-indígena dos ruralistas na Câmara, também fica bloqueada.

Até o fim da intervenção, os ataques legislativos só podem ser concretizados por meio de projetos de lei. Por isso, parlamentares ruralistas têm movimentado uma série de projetos para flexibilizar o licenciamento ambiental, ampliar o uso de venenos e permitir a venda de terras para estrangeiros e liberar obras em terras indígenas – inclusive por meio da adulteração de medidas provisórias.

A proposta original do PL 490, apresentada em 2007 pelo também ruralista Homero Pereira (PSD-MT), tinha uma pretensão semelhante à da primeira versão da PEC 215: fazer com que as demarcações de terras indígenas passassem a ser uma atribuição do Legislativo, feitas por meio de projetos de lei – algo que o Ministério Público Federal (MPF) já apontou ser inconstitucional.

Durante sua tramitação, foram apensados ao PL 490/2007 outros onze projetos de lei que também tratam da demarcação de terras indígenas. Destes onze, dez são de autoria de ruralistas e têm viés claramente anti-indígena. Tecnicamente, o parecer de Jerônimo Goergen propõe uma nova redação a um substitutivo do PL 6.818/2013, que é um dos onze projetos apensados ao PL 490 e, agora, passa a ser o principal do conjunto.

 

Parcialidade ruralista

A fixação da tese do marco temporal é um dos principais aspectos da proposta de Goergen, e só não se aplicaria em casos de “renitente esbulho devidamente comprovado”, ou seja, nos casos em que a disputa pela terra indígena, seja ela por conflito físico ou jurídico, tenha se estendido até o dia 5 de outubro de 1988.

A revisão de limites de terras indígenas demarcadas com tamanho menor do que deveriam – chamada pelos ruralistas de “ampliação de terras indígenas” – também passaria a ser proibida por lei.

Ambos os pontos restringem o direito dos povos indígenas à demarcação de suas terras tradicionais e constam do “Parecer do Genocídio” da AGU. Conforme destaca a Assessoria Jurídica do Cimi, são proposições inconstitucionais e que subvertem julgamentos do STF – especialmente do caso Raposa Serra do Sol.

“Além de inconstitucional, a proposta é contraditória ao precedente mais importante citado pelo próprio relator, em prejuízo dos povos originários e dos seus direitos territoriais”

Naquele processo, o STF votou a favor dos indígenas e da demarcação contínua da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, descartando a proposta de uma demarcação em ilhas. A Corte também estabeleceu 19 condicionantes no julgamento, mas determinou que elas não deveriam ser aplicadas a outros casos.

Na avaliação da Assessoria Jurídica do Cimi, o substitutivo ao PL 6.818 “segue uma linha de reinterpretação do julgado no caso Raposa Serra do Sol”, ao extrair dele “excertos, teses marginais e periféricas” e ignorando o fato de que, no essencial, o julgamento favoreceu os indígenas.

Ironicamente, a proposta do deputado Jerônimo Goergen proíbe que uma terra seja demarcada para mais de um povo – uma proposição que desconsidera a realidade de diversas terras indígenas do Brasil e contraria exatamente o ponto principal da decisão do STF no caso Raposa Serra do Sol.

O parecer da Assessoria Jurídica do Cimi cita outros 29 precedentes recentes do STF que vão num sentido oposto ao defendido pelos ruralistas – entre eles, dois julgamentos do pleno do STF que, ao longo do último ano, reafirmaram o caráter originário dos direitos indígenas e afastaram a tese do marco temporal no caso dos quilombolas.

Ataque ao direito de consulta e autonomia

O projeto também prevê a participação de entidades da sociedade civil, estados e municípios “desde o início do processo administrativo demarcatório”, estes últimos com poder de “participação efetiva, voz e voto”.

Por outro lado, o direito à Consulta Livre, Prévia e Informada previsto na Convenção 169 da OIT é desrespeitado, com a autorização para que intervenções militares, construção de estradas, empreendimentos de energia e “o resguardo de riquezas de cunho estratégico” ocorram sem qualquer consulta às comunidades ou à Funai.

O ingresso, o trânsito e a permanência de não indígenas em terras tradicionais também seriam autorizados, desde que “justificados”.

Em sua análise, a Assessoria Jurídica do Cimi destaca que, em nenhum momento, indígenas foram consultados a respeito das mudanças propostas pelos PLs, o que em si já representa um “vício insanável” no projeto.

O substitutivo de Goergen ainda estabelece que, nos casos de sobreposição de unidades de conservação a terras indígenas, a área sobreposta ficaria sob gestão dos órgãos ambientais.

Congresso anti-indígena

O PL 490 é uma das 33 proposições que ameaçam os direitos dos povos indígenas no Congresso Nacional, segundo levantamento feito em 2017. Assim como este PL tramita com outros onze projetos apensados, as 33 proposições reúnem um conjunto de mais de 100 projetos de lei que visam alterar direitos indígenas – a maioria com a intenção de retirá-los ou restringi-los.

O próprio Jerônimo Goergen, integrante das Frentes Parlamentares da Agropecuária (FPA) e da Mineração, é autor de outros dois projetos que pretendem anular demarcações de terras indígenas: o PDC 348/2016, que pretende sustar a demarcação da TI Piaçaguera, em São Paulo, e o PDC 388/2016, que visa fazer o mesmo com a TI Mato Castelhano, no Rio Grande do Sul.

Não por acaso, 17 das 33 proposições buscam alterar o processo de demarcação de Terras Indígenas – todos com viés anti-indígena. Dos 11 deputados da atual legislatura que são autores de projetos, dez, incluindo Goergen, integrantes ativos da bancada ruralista.

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