Povo Xukuru do Ororubá na pisada ligeira da história
Fundamentado em pesquisa documental e em relatos de memórias orais de indivíduos Xukuru, procura-se compreender como esse povo, a partir das experiências vivenciadas, estabeleceu relações com a história e expressa as interpretações que faz do passado, em função das situações do presente
O livro, com poucas alterações, é uma publicação da Tese de Doutorado em História Social na Unicamp, março/2008, e originalmente intitulava-se Xukuru: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá (Pesqueira/PE), 1959-1988. Fundamentado em pesquisa documental e em relatos de memórias orais de indivíduos Xukuru, procura-se compreender como esse povo, a partir das experiências vivenciadas, estabeleceu relações com a história e expressa as interpretações que faz do passado, em função das situações do presente. O trabalho mostra um amplo e significativo painel das lutas dos Xukuru de Ororubá pelo reconhecimento dos seus direitos às terras que reivindicavam e da importância que a memória transmitida oralmente teve no arcabouço dessas lutas. A partir do que foi relatado por um dos muitos entrevistados, Gercino da Silva, indígena que nasceu em 1924 e faleceu aos 83 anos em 2007, vemos como seu conhecimento transmitido pelos antepassados e a trajetória de sua vida são a expressão da história e da luta dos Xukuru desde o final do século 19, quando da extinção da aldeia de Cimbres. Amigo do cacique Xikão, assassinado em 1998, ele partiu e como o amigo “encantou-se”.
Na época da extinção do antigo aldeamento de Cimbres (1879), as terras estavam invadidas por fazendeiros criadores de gado e senhores de engenho. Muitas famílias indígenas perseguidas e expulsas se dispersaram pela região e a grande maioria passou a trabalhar em suas próprias terras tomadas pelos invasores onde moravam “de favor”. Acompanhando as memórias dos Xukuru, e de registros escritos, ficamos a par das conexões temporais entre as mobilizações indígenas pelas terras, nos anos 1980, e as ocorridas na década de 1950, quando os Xukuru conquistaram o reconhecimento oficial, com a implantação de um Posto do SPI na Serra de Ororubá. Na relação da memória em fins dos anos 1980, são lembrados os conflitos entre esse povo, que tinha direito às terras reivindicadas, e os fazendeiros. Foi nesse período que os indígenas repetidamente se reportaram a acontecimentos do passado, para legitimar seus direitos sobre o território. As memórias remetem ao século 19 quando da participação dos índios como voluntários da pátria, na Guerra do Paraguai, e o processo de extinção do Aldeamento de Cimbres, acima citado, na Serra do Ororubá. Ao afirmarem seus direitos sobre as terras onde habitam, os Xukuru dizem que esses direitos lhes foram garantidos pelo Governo Imperial, como recompensa pela participação dos seus antepassados na Guerra do Paraguai.
As memórias sobre a participação dos Xukuru na Guerra do Paraguai são relidas em diferentes contextos e pontuadas por acontecimentos, momentos e marcos por eles considerados fundamentais: a participação nessa guerra; a época da busca pelo reconhecimento do SPI, nos anos 1950; e, liderados pelo cacique Xicão, o período da mobilização para as retomadas das terras sob o domínio dos fazendeiros, nos anos 1980.
É significativa a lembrança da narração que Seu Gercino fez sobre o encontro dos Xukuru com a princesa Isabel ao retornarem da guerra. Em seu relato, foram os índios que, receando serem roubados pelos brancos, recusaram dinheiro ou carro oferecidos, e pediram, como recompensa, as terras onde habitam:
“Ela queria dar o dinheiro prá pagar. (…)´Bem, se é
da senhora dar o dinheiro, o ouro nós não quer. (…)
Os homem branco rouba, dar a coroa, eles carrega,
dar a espada eles toma. Assim nós queremos em terra´.
Ela deu a terra. E essa aldeia aqui, essa aldeia aqui
foi dada por ela”
Os depoimentos das quase três dezenas de entrevistados, as memórias passadas de geração para geração, sobre a participação na Guerra do Paraguai, além de serem dados como justificativas para retomar suas terras, também fazem conhecer o terror que, no passar dos dias, os indígenas sentiam de ser recrutados, visto as histórias que os que conseguiam voltar, relatavam. Houve muitas fugas e paralelamente intensificavam-se os meios violentos de recrutamento. Além da importância desses relatos, Edson Silva ouviu dos entrevistados, de um lado, toda a saga enfrentada por esse povo, a discriminação cultural, a perda progressiva do pedaço de terra que conseguiam, a destruição da colheita quando o fazendeiro usava a plantação como pasto para o gado, e, de outro, a transmissão do uso de plantas medicinais, os mutirões para o roçado, e as festas, estas de especial importância nas relações sociais. O Toré é lembrado por quase todos eles e era dançado em varias localidades na Serra do Ororubá.
Halbwachs, citado pelo autor: “Nos relatos das memórias orais dos Xukuru do Ororubá, é possível perceber outros momentos que expressaram o cotidiano, os espaços de sociabilidade criados na Serra do Ororubá, o significado de Cimbres como um espaço de referência da memória mítico-religiosa para a afirmação da identidade do grupo. (…) E ainda nas atividades exercidas para sobrevivência, por falta de terras, e em razão da seca, na lavoura canavieira na Zona da Mata Sul pernambucana, e Norte alagoana, ou nas plantações de algodão no sertão paraibano. São fragmentos colhidos de relatos individuais, de memórias autobiográficas mas que fazem parte de uma história coletiva, na medida em que toda memória individual se apoia na memória grupal, pois toda história de vida faz parte da história em geral.” (grifo nosso).
Edson Silva*, Recife : Editora UFPE, 2014
357 p.
*Professor efetivo no Centro de Educação/Col. De Aplicação na UFPE/Campus Recife, além de outras atividades docentes. Desenvolve pesquisas junto ao povo indígena Xukuru de Ororubá (Pesqueira e Poção/PE).