20/01/2022

Arrendamento de terras: perpetuação do esbulho e das desigualdades nas comunidades indígenas

Se prática criminosa não for combatida, o direito de usufruto exclusivo das terras indígenas pelos povos originários pode ser inviabilizado, escreve Roberto Liebgott, do Cimi Regional Sul

O arrendamento de terras indígenas, apesar de proibido pela Constituição Federal, continua sendo em muitos territórios um gatilho de violências, que aniquila com o modo de ser e viver dos povos, divide, exclui e lança famílias indígenas à exclusão e à marginalidade. Foto: Lidiane Ribeiro/Ibama

O arrendamento de terras indígenas, apesar de proibido pela Constituição Federal, continua sendo em muitos territórios um gatilho de violências, que aniquila com o modo de ser e viver dos povos, divide, exclui e lança famílias indígenas à exclusão e à marginalidade. Foto: Lidiane Ribeiro/Ibama

Por Roberto Antonio Liebgott, do Cimi Regional Sul

Os conflitos que ocorrem hoje em áreas Kaingang, internamente e com pessoas ou grupos econômicos externos, são históricos e compõem o conjunto de intervenções estatais nos territórios indígenas desde a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), constituído em 1910, que foram seguidas pela Fundação Nacional do Índio (Funai), criada em 1967, e perduram até os dias de hoje.

Os órgãos de Estado ocuparam os territórios e desencadearam, primeiramente, a remoção forçada das comunidades para as reservas delimitadas pela União ou em áreas demarcadas pelos estados, em especial no Rio Grande do Sul, onde o governo estadual demarcou algumas terras entre os anos de 1900 a 1940, destinando-as aos índios. A Terra Indígena (TI) Serrinha é um desses casos.

Depois das remoções, os agentes de Estado desenvolveram “políticas de pacificações internas”, uma vez que os removidos compunham grupos de pessoas de diferentes povos ou clãs. Havia uma absoluta desarmonia nas relações entre as famílias e comunidades. Para contornar os conflitos, os militares introduziram nas reservas, entre outros elementos de dominação, as suas estruturas de mando, comando, punição e poder. Os modos de ser dos povos – suas culturas, relações sociais, religiosas, educacionais e de chefia – foram dramaticamente afetados.

As práticas “militarescas” serviram como base orientadora aos modelos de chefia nas terras Kaingang, como se fossem espelhadas nos “generais” – ou seja, o cacique assumia o papel de general e seus comandados passavam a ser denominados de capitães, sargentos, cabos e soldados, aqueles que faziam cumprir as determinações do cacicado. E, a partir dessa mesma lógica, impuseram-se regras de punição, como as explicitadas pelas cadeias, ainda existentes nos territórios Kaingang.

As expulsões de grandes contingentes de indígenas para as ditas reservas, visavam, portanto, consolidar o esbulho das terras originárias, destinando-as à colonização e a sua entrega aos Fóg (não-índios). Para alcançar este objetivo, buscou-se integrar o índio à comunhão nacional, isto é, fazer com que este passasse por uma doutrinação “branca” e, depois dela, ficasse apto a viver entre os “civilizados”. Toda a perspectiva era a de transformar aquele “selvagem” em homem branco, ou melhor, em mão de obra barata, muitas vezes escrava, para a lida com a terra.

Os militares usavam-nos para promover o desmatamento, realizar o plantio dos roçados e, naqueles locais – denominados pelos indígenas como “panelões” – a comida era feita num grande panelão, no qual todos ao seu redor comiam sob a tutela dos oficiais. O SPI transformou o indígena num despossuído, pois quem gerenciava a terra, inclusive todo o plantio, produção e lucratividade era o órgão indigenista. Tornaram aquele que era livre em escravo.

Ao longo de toda a primeira metade do século passado, na década de 1920, enquanto os homens indígenas trabalhavam na lavoura, as mulheres ficavam na aldeia recebendo uma espécie de “catequese ideológica”. Com ela aprendiam os modos e costumes dos brancos, rompendo-se com as práticas tradicionais. Mas, apesar de todo empenho financeiro, físico e de infraestrutura destinada à integração, a máquina governamental não conseguiu seu intento, ou seja, os povos não deixaram de ser eles mesmos, embora fossem assimilando aspectos das novas regras de poder e se adaptando a elas. Todavia, o ser Kaingang, o ser Xokleng, o ser Guarani permaneceu.

Vivenciamos, nos últimos anos, uma retomada incansável de ações ou omissões de dirigentes de órgãos públicos – que têm responsabilidades sobre a questão indígena – no sentido de acelerar o esbulho dos territórios

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 231, proibiu o arrendamento e esclareceu que as terras indígenas são bens da União para o usufruto exclusivo dos povos. Apesar da proibição, o arrendamento se manteve sendo praticado dentro de alguns territórios. Acabou sendo introjetado não apenas no uso da terra, mas também em outros ambientes da vida, como nas políticas públicas de educação e saúde, onde as atividades remuneradas ficam sob o controle de pessoas que detêm o poder dentro do território. Ou seja, o arrendamento passou a ser um costume naturalizado com o qual se obtém privilégios e vantagens.

Há, nos territórios, quem controla a terra, as políticas públicas e a renda, enquanto a maioria das pessoas permanece absolutamente excluída de tudo, vivendo à margem, sem acesso adequado aos serviços assistenciais e sem poder utilizar seu maior bem: a terra. Se percebe que a lógica do arrendamento contamina todas as relações internas.

Terras de ocupação tradicional Kaingang, Guarani, Xokleng e Charrua foram sendo destinadas ao assentamento de imigrantes oriundos, em geral, da Europa, com a complacência e apoio do SPI. Os governos estaduais e federal estabeleciam acordos e contratos com empresas colonizadoras – a quem se destinavam as terras em troca de serviços, como de abertura de estradas, por exemplo – e elas tornavam-se proprietárias de grandes glebas, que eram loteadas, e a posse de parcelas dessas áreas (em geral uma colônia, em torno de 25 hectares) transferidas aos novos colonos. Eles se apossavam das colônias e as transformavam em lavouras. Era com a venda ou troca de produtos colhidos e com a derrubada da madeira que se procedia ao pagamento, em prestações, pela área recebida. Mas somente depois de quitada a dívida o título de propriedade era transferido.

Das três ações de Estado, na relação com os indígenas, duas delas tiveram êxito em curto prazo: a remoção forçada e a entrega dos territórios para a colonização. A terceira, que se fundamentava na política de integração dos povos à sociedade nacional, se revelou perversa, desumana, cruel e se prolongou até o advento da Constituição Federal de 1988. A estratégia de “tornar o índio um branco” foi reveladora da perspectiva genocida dos órgãos indigenistas. Foram violados todos os direitos da natureza e da dignidade humana. Os que comandaram tais ações, em alianças com os que pretendiam explorar as terras, tornaram-se os agentes do genocídio. Para se saber mais sobre as crueldades do período, basta acessar páginas do Relatório Figueiredo, resgatado em agosto de 2012 por Marcelo Zelic, no Museu do Índio, no Rio de Janeiro.

Caso não sejam adotadas algumas medidas concretas que tenham o objetivo de enfrentar essas práticas criminosas de arrendamento de terras, poderá, mais adiante, ocorrer a normatização do esbulho e o fim do direito constitucional à terra e ao usufruto exclusivo dela pelos povos indígenas

Trago, neste breve relato, aspectos e reflexões históricos que revelam as origens e fatos geradores de violências, desagregação, exploração e arrendamento de terras entre os Kaingang na região Sul do Brasil – e que também compõem realidades de outros povos em todo o país. Vivenciamos, nos últimos anos, uma retomada incansável de ações ou omissões de dirigentes de órgãos públicos – que têm responsabilidades sobre a questão indígena – no sentido de acelerar o esbulho dos territórios.

Foram editadas pela Funai, Incra e Ibama, com essa finalidade, uma série de medidas administrativas denominadas de instruções normativas e resoluções, que caracterizam essa saga exploratória. Essas medidas formam um conjunto inédito de ações voltadas a favorecer os interesses econômicos nefastos que incidem sobre as terras indígenas. Como recentemente abordei em outro texto, essas medidas, que caracterizam a antipolítica indigenista do governo Bolsonaro, tem como consequência um aumento sem precedentes das violências contra a vida dos povos indígenas e contra o meio ambiente.

A Funai tem agido, quase sempre, em desfavor dos povos originários – portanto, contra os direitos indígenas. Exemplo disso foi o declarado apoio do presidente do órgão ao famigerado Projeto de Lei (PL) 490/2000. Além disso, o órgão tem atuado, através de alguns indigenistas, dentro das aldeias, fomentando a discórdia e o divisionismo em torno do uso abusivo da terra.

Na região sul, os conflitos têm sido latentes e cotidianos, acobertados por termos de ajustamentos de condutas, os quais estabelecem as condições para que sejam viabilizados os arrendamentos de terras, privatizando-as através de pseudocooperativas, parcerias entre caciques e arrendatários, com promessas de que todos terão acesso aos benefícios dos “negócios”, com a falsa alegação de que haverá geração de renda. Na prática, as desigualdades são aprofundadas entre as famílias, muitas sendo excluídas de qualquer possibilidade de viver da terra que vem sendo esbulhada por terceiros.

Caso não sejam adotadas algumas medidas concretas, por parte do Ministério Público Federal (MPF) e outros órgãos e entes públicos que atuam na questão indígena, com o objetivo de enfrentar essas práticas criminosas de arrendamento de terras, poderá, mais adiante, ocorrer a normatização do esbulho e o fim do direito constitucional à terra e ao usufruto exclusivo dela pelos povos indígenas. Dentre as medidas tornam-se indispensáveis:

  1. identificação de todos os arrendatários de terras indígenas e sua respectiva responsabilização criminal, por se tratar de atividade ilegal, já que as terras indígenas são bens da União, destinados ao usufruto exclusivo dos indígenas, portanto são inalienáveis, indisponíveis e o direito sobre elas é imprescritível;
  2. identificação e punição de todos aqueles que praticaram crimes contra as vidas dentro das terras indígenas, bem como os mandantes e os incentivadores dos conflitos;
  3. que se crie, para além da intervenção das forças de segurança na regiões onde há arrendamentos, comitês de cidadania e direitos humanos, compostos por lideranças indígenas e suas organizações, por indigenistas, personalidades, entidades, conselhos da sociedade civil, conselhos de direitos humanos e órgãos públicos para juntos atuarem solidariamente nas áreas, propondo mecanismos de diálogos e de pacificação, ajudando a pensar e construir, com as comunidades, soluções para a garantia das atividades de autossustentabilidade, tendo em vista os direitos internos de cada povo e comunidade.

Os órgãos públicos, especialmente os federais, devem dedicar esforços, através dos agentes de segurança, de fiscalização e proteção dos territórios, para colocar um fim às práticas criminosas de arrendamento das terras indígenas. Tal atividade se torna gatilho de violências, aniquila com o modo de ser e viver dos povos, divide, exclui e lança famílias indígenas à exclusão e à marginalidade. De outro lado, privilegia e enriquece um pequeno grupo de arrendatários, que passam a ter o controle político e econômico nas regiões onde se estabeleceram, enquanto comunidades inteiras passam fome e sede.

 

Porto Alegre, RS, 20 de janeiro de 2021

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