08/03/2018

Dia Internacional da Mulher: A memória e a luta de Maninha Xukuru Kariri; guerreira, intelectual e feminista

Neste Dia Internacional da Mulher, o Cimi lembra da guerreira Maninha Xukuru Kariri. A indígena foi a primeira mulher dirigente da Apoinme, liderou a luta pela terra junto ao seu povo e ajudou a construir retomadas por todo o Nordeste. Trouxe para a questão indígena a pauta da mulher

Maninha Xukuru Kariri ao lado de Xikão Xukuru e Luís Tomás Pankararu (sentados) em audiência com Miguel Arraes, então governador de Pernambuco (1995-1998). Arquivo/Cimi

Por Renato Santana, Ascom/Cimi

Etelvina Santana da Silva saiu da então retomada Mata da Cafurna, Terra Indígena Xukuru Kariri, Palmeira dos Índios (AL), em 1986. Tinha 20 anos. Seguiu para o Recife (PE) com o objetivo de vencer na vida: cursar medicina e ter tudo aquilo que desejava. Dois anos depois de intensa luta, trabalhando duro para mal conseguir pagar o cursinho preparatório ao vestibular e o transporte, decidiu voltar à aldeia para “vencer na terra”. Na cidade não conseguia ser ela mesma, tampouco tinha conseguido ser aquilo que desejava, ou seja, o retrato tedioso e caricato de quem vence na vida: diploma, remuneração alta, uma boa casa, um carro, boas roupas e dinheiro farto para o que desejasse. Quando em 1988 o ônibus saído de Recife chegou à rodoviária de Palmeira, quem dele desceu não foi Etelvina, mas Maninha Xukuru Kariri.

“Eu percebi quem eu era, quem eu sou e qual o meu lugar. Precisei sair da aldeia pra sonhar quem eu sou. A partir daquele momento, eu queria vencer na terra, mas acontece que meu povo não tinha terra. Então vencer na vida passou a ser conseguir a nossa terra”, contou Maninha ao documentarista Bruno Pacheco em uma videobiografia que compõe o acervo do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. A ironia trágica é que Maninha Xukuru Kariri morreu em 2006, por desassistência médica, 20 anos depois de partir para o Recife com o intuito de cursar medicina. “Sabe, apesar daquela minha alienação eu queria ser médica para ter uma vida melhor, mas eu queria mesmo era poder ajudar os outros”, disse Maninha. Na manhã do dia 11 de novembro de 2006, Maninha apresentou problemas respiratórios e se dirigiu ao hospital de Palmeira dos Índios. Sem atendimento, teve uma parada cardiorrespiratória e morreu.  

Nascida e criada na aldeia Fazenda Canto, Maninha sempre esteve envolvida nas lutas do povo Xukuru Kariri – mesmo no período em que ela se dizia alienada e “sem entender o por quê daquele povo estudado do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) viver no meio da gente, das nossas dificuldades, comendo da nossa comida, dormindo na dureza da retomada e nos apoiando”. Os bisavós e avós já enfrentavam a batalha pelo território tradicional. Com o pai, seu Antônio Celestino, e os irmãos de Maninha não foi diferente. “Meu irmão cobrava muito a minha participação, mas meu pai… ele me conduziu pra luta sem eu perceber, de um jeito muito especial”. Então quando ela volta do Recife, faz o famoso caminho da volta que muitos povos e lideranças indígenas fizeram por todo o Nordeste. Xikão Xukuru do Ororubá, por exemplo, vivia em São Paulo, atrás de vencer na vida, mas venceu na terra onde foi plantado – tal como Maninha.

Ambos, Maninha e Xikão, compartilham não apenas esse caminho de volta, mas a presença na Comissão Indígena Leste Nordeste, a partir de 1990. Dois anos depois, criam, ao lado de outras lideranças, caso de Girleno Xocó e Nailton Pataxó Hã-hã-hãe, a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme). Maninha era a única mulher no meio de tantos caciques e lideranças masculinas. Num contexto machista, levou a pauta feminista e as questões da mulher para o debate indígena no Nordeste. Conforme lembra Nailton Pataxó Hã-hã-hãe, em uma conversa madrugada afora no Centro de Formação Vicente Cañas, em Luziânia (GO), Maninha já era feminista. “No meio daqueles homens, tudo bruto porque a luta era pesada e a criação da gente não ajudava, Maninha sempre falava: respeito é bom e eu gosto! Ela não abaixava pra ninguém não, era uma guerreira. Enfrentava o que fosse, tinha homem que tremia”, lembrou Nailton.

“Fomos construindo a Apoinme aos poucos, rodando os estados, indo às aldeias e levantando retomadas. Em alguns locais a miséria e a fome matavam os indígenas. Vemos hoje aldeias nestes lugares, povos lutando pelos seus direitos e por suas vidas. Tudo o que sei devo à Apoinme, fui muito feliz nesse processo. Quem assume o movimento indígena, precisa fazer o barco andar. O desafio é grande, mas frutífero”, declarou Maninha.

Maninha Xukuru em Brasília, durante audiência no Supremo Tribunal Federal (STF). Foto: Arquivo/Cimi

Maninha sempre dizia que nunca haverá divisão no movimento indígena “porque ele é plural, sendo que o desafio está em construir esse caminho das várias realidades num ponto comum, onde todos se encontram”. A Apoinme, portanto, é a expressão máxima da solidariedade que Maninha sempre manteve e estimulou com relação aos demais povos indígenas do Brasil. “Eu não preciso necessariamente conhecer a realidade dos povos indígenas no Sul, mas eu posso sentir. Tenho a obrigação de lutar por eles onde eu estiver”.  

Maninha liderou a luta de seu povo sobre uma terra demarcada em 1822, mas que nunca conseguiu ficar sob a apropriação Xukuru Kariri. Os indígenas foram expulsos gradativamente do território. Palmeira dos Índios cresceu, se tornou uma cidade importante para Alagoas. “O crescimento econômico e político da cidade fez com que, cada vez mais, nossas relações políticas com os poderes estaduais fossem conflituosas. Gente poderosa se apoderou de nossas terras, enfrentamos uma oligarquia perigosa”. Por conta de toda esta trajetória, que se tornou conhecida no Brasil e no mundo, Maninha esteve entre as 52 brasileiras indicadas pelo Projeto “1000 Mulheres Para o Prêmio Nobel da Paz de 2005”.

“A sociedade tenta negar suas origens indígenas. Eles tomaram nossas terras, nossas línguas e nossas crenças. Hoje, nós sabemos quem nós somos, quais são os nossos direitos e a posição que queremos ocupar na história”, disse, ao ser indicada ao prêmio. Maninha combateu com tenacidade e diálogo os preconceitos emanados pela sociedade envolvente aos povos indígenas. “Dizem, em Palmeira dos Índios: os índios vagabundos querem terra, mas não acabam com aquela mata (da Cafurna) pra plantar. Isso é um outro problema, os conceitos de valores que existem: os nossos são diferentes dos que estão em volta. A terra tem valor, o mato crescendo, a morada dos espíritos”.

Toda a experiência acumulada no movimento indígena por Maninha se associou ao seu insaciável desejo pelos estudos. Quando morreu, cursava Filosofia. De modo que, além de guerreira do povo Xukuru Kariri, era uma intelectual indígena. Suas reflexões, transmitidas num tom de voz calmo e firme, eram ouvidas com atenção por todos e todas. A leitura conjuntural de Maninha também era apurada. Em 2005, declarou que a situação do país iria ficar difícil e complexa para os povos, nos próximos anos, porque a Funai não conseguia proteger o patrimônio indígena, ou seja, as terras tradicionais, com o dispositivo constitucional das demarcações – que não ocorriam ou seguiam paralisadas. “(A Funai) não consegue retirar os invasores, desintrusar. Não serve pra muita coisa assim, eu penso que a cada dia fica mais difícil. Uma hora vão querer acabar com os direitos, com as demarcações, com tudo o que conseguimos em 1988 (Constituição Federal). Eu penso que eles (inimigos dos indígenas) vão caminhar pra isso”.

Maninha foi enterrada no antigo cemitério indígena Xukuru Kariri de Igreja Velha, na terra onde ela venceu na vida e descansou na morte.

Os Xukuru Kariri seguem na luta pela retirada total dos invasores da terra indígena. 

Fonte: Assessoria de Comunicação - Cimi
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