13/02/2020

Juventude indígena do Nordeste debate terra, universidade e espiritualidade durante encontro na TI Potiguara

Cerca de 180 jovens de 21 povos diferentes se reuniram para debater temas pertinentes a esse público, caso também da questão LGBT

Cerca de 180 jovens indígenas de 21 povos acamparam na Terra Indígena Potiguara para o II Encontro da Juventude Indígena do Nordeste. Crédito da foto: Renato Santana/Cimi

Por Assessoria de Comunicação – Cimi

No quintal de dona Mariinha Potiguara, na aldeia Laranjeira, crescem plantas de cura para ao menos uma dezena de enfermidades. Entre as árvores, um ipê é cuidado como o décimo terceiro filho da matriarca. A partir dele, em declive, se chega à margem de um rio, assim chamado mais pelo seu passado caudaloso e não pelo presente assoreado cuja aparência lembra mais um córrego limpo. Em busca de espaço, as águas correm transparentes, abastecidas pelo rio Gozo, alargando a passagem, ano a ano, entre as margens estreitas agora preservadas. Segue o curso até a foz. Ao redor da aldeia a mata se eleva e a Casa de Farinha defuma o local com cheiro de beiju e bolo de pé de moleque. Manga, mangaba, acerola e azeitona caem dos pés prontas para o consumo. Com este cenário dona Mariinha teve um sonho.

“Tinha um monte de barraca, por todo o quintal e ao redor da maloca que construíram já faz um ano. Um monte de barraca branca. Acordei e fiquei: que diabo significa isso? Tudo bem, a vida continuou. Uns dias depois me procuraram pedindo para usar a maloca, o quintal e o rio para o encontro dos jovens. Acho que eu tive uma premonição”, conclui dona Mariinha. Ao mesmo tempo ela repensa: “talvez não foi isso. É que tenho me preocupado com os jovens. No meu tempo cuidávamos da terra, éramos agricultores, pescávamos, fazíamos a nossa ciência, nosso ritual. Hoje eles parecem mais perdidos. Não pensam de forma tranquila”.

As inquietações de dona Mariinha Potiguara se revelaram pertinentes durante todo o II Encontro Regional da Juventude Indígena do Nordeste, que entre os dias 7, 8 e 9 aconteceu na aldeia Laranjeira, Terra Indígena Potiguara, a cerca de 15 km da sede do município de Baía da Traição (PB). Cerca de 180 jovens de 21 povos diferentes acamparam no terreiro de Mariinha para debater a conjuntura política do país, os empreendimentos governamentais que pretendem levar ao extermínio dos povos indígenas, além de questões pontuais como a demarcação das terras indígenas, permanência e acesso dos jovens às universidades federais, a questão das drogas, projetos de futuro, sexualidade e os desafios de ser índio LGBT. A espiritualidade conduziu todo o encontro, com rituais e toré, além de um debate específico sobre o tema. Apresentações culturais e confraternizações correram noite adentro durante os dias de reunião. “Recebemos o encontro com muita felicidade porque sabemos que são vocês que levarão adiante os povos indígenas, suas lutas. Isso é se preparar e se unir para lutar”, declarou o cacique Sandro Potiguara.

Cacique Sandro Potiguara saudou o II Encontro durante fala de abertura como anfitrião da TI Potiguara. Crédito da foto: Renato Santana/Cimi

Os desafios das diferentes gerações podem ser distintos, mas convergem em um ponto: a terra. “Hoje não convivemos com a falta total de terra. Nossos pais, tios e avós fizeram essa luta. Somos uma geração que cresceu nas retomadas convertidas em terras indígenas. Passamos a ter saúde e educação diferenciadas, podemos ir para a universidade. No entanto, a maior parte dessas terras não teve o procedimento demarcatório concluído e os direitos conquistados estão sob risco. Precisamos perceber que a questão da terra não acabou totalmente. Os desafios para os jovens indígenas passam hoje por viver essa insegurança permanente”, analisou Maurício Truká em uma de suas falas durante o encontro.

“Hoje não convivemos com a falta total de terra. Nossos pais, tios e avós fizeram essa luta. Somos uma geração que cresceu nas retomadas convertidas em terras indígenas”, diz Maurílio Truká

Insegurança que tem, nos últimos anos, se revelado na face megalomaníaca dos grandes empreendimentos, caso da Transposição do Rio São Francisco, Transnordestina e agora com o projeto de construção de uma usina nuclear em Itacuruba (PE), sobre o território Pankará de Serrote dos Campos, um quilombo e a própria cidade de Itacuruba que já havia sido deslocada pela barragem da UHE Gonzagão. Para os jovens, são obras que representam uma ameaça ao futuro. “Estamos lidando com muitos casos de suicídio, depressão, transtornos mentais. Isso tem levado jovens para as drogas e em alguns casos às facções (criminosas). Reverter isso passa pela espiritualidade e pela luta política dos nossos povos”, analisa Benício Pitaguary.

Quando os jovens falavam em perspectivas de futuro, além da questão territorial o acesso ao Ensino Superior apareceu como segunda prioridade. “Hoje quem está na universidade não sabe se fica porque não há certeza quanto ao recebimento da bolsa permanência. Quem está entrando tem a certeza de que não irá receber”, diz Toinha Canindé. Grande parte dos jovens presentes no II Encontro estão ou se formaram na universidade correspondendo também a nascidos no século XXI, depois do ano 2000. “Tudo o que estamos discutindo aqui afeta os povos indígenas de todo o Brasil. Temos de levar nossas propostas para o ATL (Acampamento Terra Livre) e formar uma grande frente da Juventude Indígena no país”, defende Jessé Potiguara, da Organização dos Jovens Indígenas Potiguara (OJIP).

Os rituais e o toré fizeram parte de todo o II Encontro: a juventude indígena permeia todo o seu debate com destacada espiritualidade. Crédito da foto: Renato Santana/Cimi

Espiritualidade 

Algo que tem incomodado os jovens indígenas é o assédio de igrejas neopentecostais nas aldeias. “Cada povo tem o seu jeito de fazer a conexão com os encantados, mas a natureza sagrada é algo comum. Os pastores dizem que isso é do mal, do capeta. Alguns parentes acabam abandonando a sua crença tradicional atrás dessa nova colonização espiritual que está em curso”, defende Jucelino Tabajara. Já para Gabriele Pankararu, da Comissão de Jovens Indígenas de Pernambuco (Cojipe), o tema tem ligação com a questão territorial: “eu me pergunto: o território é de onde tiramos as forças, morada dos encantados. Se aderirmos a essas religiões que querem colonizar nosso espírito, que valor daremos ao território já que esqueceremos de nossos encantados, de nossos rituais? Um lado que me preocupa”.

Se no século XVI a Igreja Católica cumpriu esse papel de “colonizar espíritos selvagens”, abrindo espaço para o esbulho territorial (recentemente o papa Francisco pediu perdão por este passado colonial), hoje em dia igrejas neopentecostais vêm sendo usadas para tal fim pelo governo Bolsonaro. “Um presidente que diz que estamos nos tornando humanos na medida em que adotamos uma religião do branco é o mesmo que acha isso quando permitimos a entrada da mineração e do agronegócio em nossas terras e abandonamos a nossa cultura para sermos miseráveis nas pequenas e grandes cidades. Vemos que uma coisa tá ligada na outra”, analisa Guiga Potiguara. “A gente é o rio que corre, o chão que estamos pisando, as árvores que nos dão sombra. Essa é a nossa espiritualidade, ligada no íntimo com a natureza sagrada, morada dos encantados”, completa. Um outro aspecto dessa “colonização espiritual” é o ataque aos jovens LGBT.

“Hoje quem está na universidade não sabe se fica porque não há certeza quanto ao recebimento da bolsa permanência. Quem está entrando tem a certeza de que não irá receber”, diz Toinha Canindé

Toinha Canindé apresenta o resultado de um dos grupos de trabalho. Propostas guiarão ações dos jovens e serão levadas ao ATL. Crédito da foto: Renato Santana/Cimi

“É um grande desafio porque temos de lidar com o preconceito que ainda existe na aldeia. Fora dela lidamos com um duplo preconceito: ser índio e ser LGBT”, explica Glaydson Anacé. Para Iaciptã Potiguara, a juventude indígena tem levado aos povos novas pautas e abrindo espaços de militância. Edmar Pankararu, por exemplo, faz espetáculos como drag queen, já se apresentou na aldeia e prepara um documentário sobre o universo drag queen entre os povos indígenas. “Ainda gera descontentamento, mas estamos quebrando isso”, conta o jovem Pankararu estudante de imagem e som na Universidade Federal de São Carlos.

Benício Pitaguary apresentou a sua arte nos corpos de outros jovens indígenas e participantes. Crédito da foto: Renato Santana/Cimi

No encontro houve ainda debates sobre comunicação, direito indígena, ecologia e agricultura, saúde mental e contação de histórias antigas de cada povo. Os jovens também se dividiram em grupos de trabalho para aprofundar cada um destes temas e levantar uma plataforma de propostas. A carta final do encontro sistematiza os principais pontos. Leia na íntegra abaixo:

A cobertura, os depoimentos completos e textos especiais dos indígenas sobre o II Encontro Regional da Juventude Indígena do Nordeste você poderá encontrar na edição de março do jornal Porantim. O encontro foi uma realização da Organização da Juventude Indígena Potiguara (OJIP) e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Nordeste, que abrange o sertão da Bahia, Alagoas, Piauí, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, contando com o apoio e a mobilização da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme).  

Maloca onde ocorreu o II Encontro da Juventude Indígena do Nordeste. Crédito da foto: Renato Santana/Cimi

CARTA DO II ENCONTRO DA JUVENTUDE INDÍGENA DO NORDESTE

Nós da juventude indígena dos povos Potiguara, Tabajara, Pankará da Serra, Pankará de Itacuruba, Truká, Xukuru de Ororubá, Atikum, Kapinawá, Pankararu, Jeripankó, Kalankó, Koiupanká, Katokin, Wassú Cocal, Xukuru-Kariri, Tigui-botó, Pitaguary, Anacé, Jenipapo Canindé, Tremembé de Almofala, Tremembé da Barra do Mundaú, Canindé de Aratuba e Tapeba, entre os dias 6 e 9 de fevereiro de 2020, estivemos reunidos no “II Encontro Regional Juventude Indígena do Nordeste” com o tema “Juventude indígena tecendo redes: sonhos, desafios e perspectivas pela garantia de direitos”.

Compreendemos que a atual postura do Estado brasileiro nos seus poderes Executivo, Legislativo e Judiciário viola nossos direitos à demarcação de nossas terras, à saúde e à educação escolar específica e diferenciada, à soberania alimentar, pois a todo momento propõe políticas fascistas nos acusando do marxismo cultural, desrespeitando nossas cosmovisões de vida e incentivando o desmatamento e invasão de nossas terras.

Querendo a todo instante entregar nossas terras para os grandes empreendimentos (como o projeto de instalação de Usina Nuclear em Itacuruba-PE), para o capital estrangeiro, para o agronegócio, para as mineradoras, para os empreendimentos do setor imobiliário e para obras de infraestrutura governamentais e privadas, não permitindo que possamos viver na posse dos nossos territórios tradicionais, nos arremessando às pequenas e grandes cidades. Em virtude de todos esses elementos, nossos povos estão com sua saúde mental afetada, com altos índices de depressão e suicídio.

O atual governo utiliza-se da exclusão social, tenta nos expulsar das universidades públicas extinguindo bolsas e cursos de nossos interesses e dificultando nossa permanência e formação universitária, prejudicando todos os direitos conquistados até hoje. Mantém uma campanha de criminalização sistemática para induzir à tese assimilacionista, utilizada ainda na ditadura militar, de nós indígenas à sociedade envolvente, que desde os tempos da colonização escravizou e assassinou milhares de indígenas, em especial no Nordeste brasileiro, os primeiros indígenas a sofrer o contato dos invasores Portugueses.

Diante desse cenário, reivindicamos:

Urgência na demarcação dos nossos territórios tradicionais;
Permanência e manutenção das políticas públicas afirmativas de sustentabilidade e autonomia;

Manutenção das bolsas permanências, editais específicos e cursos, bem como políticas de ingresso de indígenas às universidades e Institutos Federais;

Preservação do meio ambiente e providências contra a invasões de nossas terras tradicionais;

Cadeiras consultivas e deliberativas nos espaços governamentais nas esferas Federal, Estadual e Municipal para a juventude indígena;

Reafirmação do nosso direito de origem – o instituto do indigenato – direito congênito sobre nossos territórios tradicionais;

Acesso aos territórios tradicionais pelos povos indígenas que ainda não exercem sua posse plena e pacífica;

A refutação da tese inconstitucional do “marco temporal”;

Fortalecimento da SESAI e implementação de equipes multidisciplinares para o atendimento na área de saúde mental;

Aldeia Laranjeira do Povo Potiguara

Baía da Traição – PB, 08 de fevereiro de 2020

 

Fonte: Por Assessoria de Comunicação - Cimi
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