• 20/10/2017

    Violência contra indígenas no Brasil é tema de audiência pública na Comissão Interamericana de Direitos Humanos

     


     

    Por Assessoria de Comunicação – Cimi

    A violência contra os povos indígenas no Brasil será tema de audiência pública na segunda-feira, 23, durante o 165º Período de Sessões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em Montevidéu, no Uruguai. Conforme o horário oficial de verão de Brasília, a audiência ocorrerá das 10h45 às 11h45.

    Lideranças da Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá, e do povo Akroá Gamella participarão da audiência ao lado de representantes da Defensoria Pública da União (DPU), Ministério Público Federal (MPF), Associação Juízes para a Democracia (AJD) e Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O grupo irá traçar um mapa da situação de direitos humanos dos povos indígenas, envolvendo também recentes ameaças ao direto à terra – caso da tese do marco temporal.

    Diante do recrudescimento da violência e violação de direitos, em todo o país, a sociedade civil solicitou a audiência pública. Para o informe levará casos específicos, ocorridos nos últimos meses e anos, referentes a assassinatos de Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul, ataque contra os Gamella no Maranhão e recentes denúncias de massacre contra indígenas em situação de isolamento voluntário.

    Nos últimos dois períodos de sessões da Comissão Interamericana, entre 2013 e 2015, o Estado brasileiro assumiu compromissos e não os cumpriu. De forma geral, o Estado se comprometeu a enfrentar as fontes das ameaças aos povos indígenas – o que significaria a demarcação dos territórios; o próprio Estado havia admitido a relação. A ineficiência está associada às violências a serem tratadas na presente sessão.

    A situação do povo Gamella foi apresentada para a Comissão em informe enviado no dia 15 de maio, relatando o ataque de 30 de abril de 2017. Uma horda de homens armados, estimulada por políticos e fazendeiros, atacou membros do povo Gamella no município de Viana, no Maranhão. O ataque inclui cortes de facão das mãos e pés com aparente intenção de decepá-los.

    No Mato Grosso do Sul, os tekoha Guaiviry, Nhanderu Marangatu e Kunumi Poty Verá sofreram ataques entre 2015, 2016 e este ano. Simeão Vilhalva levou um tiro na cabeçadepois de ataque sofrido pelo povo, em 29 de agosto de 2015, em Nhanderu Marangatu, município de Antônio João. Em 14 de junho de 2016, Clodiodi Aquileu foi assassinado e outros cinco indígenas ficaram feridos após ataque de um consórcio genocida articulado por fazendeiros contra Poty Verá, na cidade de Caarapó.

    Quanto aos povos em situação de isolamento voluntário, o informe tratará da recente notícia de um massacre contra indígenas chamados de flecheiros, no Vale do Javari, Amazonas, investigado pelo MPF. O desmantelamento de Frentes de Proteção Etnoambiental, mantidas pela Funai em regiões com a presença de isolados para sua proteção, acirrou a pressão sobre estas populações. Outra situação que será alvo de atenção é a dos Awá-Guajá isolados, no Maranhão, que são acossados por incêndios provocados por invasores da Terra Indígena Arariboia.

    Episódios envolvendo a criminalização de lideranças Kaingang, no Rio Grande do Sul, além de ataques de pistoleiros e sucessivas reintegrações de posse contra os territórios tradicionais Pataxó, no sul da Bahia, também compõem o informe a ser apresentado pelo grupo na sessão da Comissão Interamericana. Associa-se ao quadro a atualização de casos já relatados em audiências anteriores e sem providências por parte do Estado brasileiro.

    Para outras informações e entrevistas:

    Assessoria de Comunicação – Cimi >> Tiago Miotto (61) 9.9686.6205 / Renato Santana (85) 9.9651.9626

     

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  • 18/10/2017

    Bombas, gás lacrimogênio e indígenas detidos na Câmara dos Deputados em protesto contra arrendamento de terras

    Atualizado às 19:20

    Por Tiago Miotto/Assessoria de Comunicação

    Dois indígenas Kaingang, um Guarani e um Terena chegaram a ser detidos no final da manhã desta quarta (18), em frente à Câmara dos Deputados, em Brasília. Eles integravam o grupo de cerca de cem indígenas que foram impedidos de entrar na audiência pública organizada pela bancada ruralista para discutir o que eles chamaram de “agricultura indígena”.

    Com a audiência, a bancada ruralista pretendia legitimar a proposta de legalização do arrendamento de terras indígenas, permitindo a exploração privada de terras indígenas e o avanço do agronegócio sobre esses territórios.

    O grupo barrado, formado em grande parte por indígenas da região sul do país, buscava manifestar sua posição contrária ao arrendamento e em defesa de suas terras, mas foi impedido de entrar – os ruralistas disponibilizaram senhas de acesso apenas para o grupo de apoiadores da proposta. Ao tentarem ingressar no Anexo 2 da Câmara dos Deputados, foram atacados com muitas bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral e spray de pimenta.

    Inicialmente, o indígena do povo Guarani foi detido pela Polícia Militar, mas a seguir foi entregue para o Departamento de Polícia Legislativa (DEPOL), onde também foram mantidos o indígena Terena e um dos Kaingang.

    O outro indígena Kaingang foi detido no Departamento Médico da Câmara dos Deputados, quando buscava atendimento para sua filha, uma criança de apenas cinco anos que passou mal por causa do gás lacrimogêneo.

    “Teve um pessoal que me chamou para fazer a consulta da nenê e nos levaram. Quando estávamos entrando, o pessoal acabou nos cercando e nos levou para dentro, disseram que estávamos detidos e que não poderíamos sair dali. Tentei comunicação com nosso cacique e nossa liderança e não deixaram”, relata E. S. Kaingang.

    “Me senti totalmente intimidado, cinco policiais em volta de mim e da minha filha. Isso me deixou bastante triste, porque pareceu combinado para me incriminar. A gente estava numa reivindicação pacífica e eu e minha filha queríamos participar da audiência que estava acontecendo”, completa o indígena.

    Pela tarde, os quatro detidos foram liberados, mediante a negociação de advogados e da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara. Contudo, três deles – inclusive o pai da criança afetada pelo gás da polícia – serão investigados pela Depol por dano ao patrimônio público.

    A audiência pública organizada pelos ruralistas na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural foi deslegitimada por organizações indígenas como a Associação Terra Indígena do Xingu (Atix), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e o Instituto Raoni.

    Com base no argumento de “geração de renda” para os povos indígenas, o arrendamento de terras demarcadas é uma prática de esbulho inaugurada ainda na época do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), no início do século XX. Foi a partir desta prática do Estado brasileiro que muitos dos atuais conflitos por terra se instauraram, especialmente na região Sul.

    “Os deputados ruralistas da região sul sabem que se trata de um discurso divisionista, já testado com sucesso contra os povos indígenas em passado recente, e buscam com ele o mesmo resultado: romper a resistência dos povos para fazer avançar os seus interesses de posse das terras indígenas em todas as regiões do país”, avalia em artigo o secretário executivo do Cimi, Cleber Buzatto.

    “O arrendamento tem causado muito conflito dentro de nossas terras, e tem muita expulsão de indígenas dessas terras onde são arrendados”, afirma Kretã Kaingang, da coordenação da Apib. “Queríamos fazer um contraponto, pois uma audiência pública deveria ter os dois lados. Infelizmente não foi o que aconteceu”.


    Indígena Guarani Mbya foi preso pela Polícia Militar e entregue à Polícia Legislativa. À tarde, foi liberado.

     

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  • 18/10/2017

    O arrendamento de terras como tática de desterritorialização indígena no Brasil

    A base do discurso ruralista, hoje, é o mesmo argumento falacioso da geração de renda usado pelos integracionistas do SPI para justificar o arrendamento das terras indígenas no sul do país no século XX

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  • 17/10/2017

    Mineração: qual o preço do nosso futuro?



    Por Lindomar Padilha, Cimi Regional Amazônia Ocidental

    Mineração: Qual o preço do nosso futuro? Sob o tema, ocorreu entre os dias 9 e 11 de novembro, no Centro de Pastoral da Diocese de Cruzeiro do Sul, no Acre, um seminário para tratar do tema da mineração na região do Vale do Juruá. O objetivo do encontro estabeleceu-se na troca de informações, formação e narrativas de resistência. Participaram representantes dos povos Nawa, Nukini, Jaminawa Arara, Shawãdawa, Noke Kui, Puyanawa, Ashaninka, Marubo, Huni Kui, ribeirinhos, assim como representantes do Movimento Nacional de Luta por Moradia, entre outras organizações que assinaram a carta final (leia abaixo na íntegra).  

    O seminário foi um importante marco para que os povos indígenas possam se organizar contra a destruição de seus territórios de vida pelo projeto de morte da mineração. Representativo, promoveu um diálogo plural sobre impactos na vida não apenas dos indígenas, mas dos ribeirinhos e população como um todo. Lamentável, porém, foi a tentativa de algumas pessoas ligadas à Comissão Pró-Índio (CPI) do Acre de tumultuar o seminário, em defesa e na venda de negócios com carbono – temáticas que não estavam em tela num encontro que tratou de uma das mais severas agressões sofridas pelos povos indígenas historicamente, a mineração.

    Desrespeitosamente integrantes da CPI/AC, baseados em ofensas gratuitas ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi), extrapolaram os limites da natural divergência de opiniões e partiram para agressões verbais contra integrantes do Cimi, sobretudo envolvendo a coordenadora regional da entidade, Rose Padilha. Tampouco estas pessoas tiveram a educação de reconhecer o não cerceamento da palavra, a eles garantida, em respeito à pluralidade de opinião, posto que o encontro era sobre mineração, não REDD. Numa conjuntura delicada vivenciada pelos povos, onde a unidade é essencial para a manutenção de direitos fundamentais, a postura dessas pessoas alimentou ainda a divergência fratricida, e não a construtiva, entre os indígenas.  

    O Cimi e nenhum de seus integrantes, bem como os próprios povos indígenas e demais participantes do seminário, podem ser submetidos a violências por parte de integrantes da CPI/AC porque não concordam com negócios de carbono, onde a natureza, os povos e comunidades são submetidos à servidão ao Capital em suas próprias terras – nos estranha defensores dos povos indígenas apoiarem algo absolutamente colonial. Tais violências, porém, são vistas na ação de mineradoras e demais grupos que enxergam nas críticas a suas ideias e ações ameaças a possibilidades de bons lucros e dividendos.

    Tamanho autoritarismo e virulência, marcas indeléveis dos tempos obscuros em que vivemos, tem sido alvo de denúncias internacionais. Quanto a isso, cabe ressaltar que em agosto diversas entidades, organizações e lideranças do mundo inteiro assinaram uma moção demonstrando que sim, há pessoas e instituições que visam algo bom para todos todas e não só recursos financeiros. Além disso, ressaltaram que estas pessoas, lideranças indígenas e organizações que se opõem a mecanismos como o do REDD estão sendo vítimas de perseguição e mentiras:

    "Mais de 80 organizações e indivíduos do mundo inteiro mandaram a carta abaixo para autoridades no Brasil, Alemanha e Califórnia/EUA, repudiando “toda e qualquer tentativa de intimidar ou censurar as pessoas e organizações que criticam e se opõem às políticas ambientais e climáticas que vêm sendo implementadas pelo governo do Acre”. E seguem: "Essas tentativas se intensificaram depois da realização em Xapuri no Acre do Encontro “Os efeitos das políticas ambientais/climáticas para as populações tradicionais”.

    Na Declaração de Xapuri, os participantes do referido Encontro denunciaram os acordos negociados pelo governo do Acre com outros países. O principal exemplo é o acordo com o banco alemão KFW que já repassou 25 milhões de euros para o governo do Acre, sem transparência na aplicação destes recursos ou prestação de contas às comunidades que dependem da floresta e para toda a sociedade.

    Importante ressaltar que a postura de integrantes da CPI/AC revela o que está em jogo quanto ao REDD. Da mesma forma ocorre com a mineração e a ação virulenta de seus defensores no Acre ou em Brasília e, poderíamos dizer também, com grandes empreendimentos que geram vítimas de um desenvolvimento que segue a beneficiar poucos em detrimento de muitos.

    Manifesto contra a mineração no Vale do Juruá

    Nós, participantes do Seminário “Mineração: Qual o preço do nosso futuro?”, ocorrido entre os dias 09 e 11 de outubro de 2017, no Centro Diocesano de Treinamento no município de Cruzeiro do Sul, que contou com a presença de lideranças e representações indígenas dos povos Nawa, Nukini, Jaminawa Arara; Shawãdawa; Noke kui; Puyanawa; Ashaninka; Marubo; Huni kui; dos ribeirinhos, assim como representantes do Movimento Nacional de Luta por Moradia, CIMI, CPT, Assessoria Jurídica da Diocese de Cruzeiro do Sul, FUNAI, estudantes da Licenciatura Indígena, Licenciatura em Ciências Biológicas e Licenciatura em Letras/Inglês da UFAC, do curso Técnico em Meio Ambiente do IFAC, professores e pesquisadores de ambas instituições de ensino (IFAC/UFAC).

    Vimos a público defender a importância das florestas para a manutenção dos modos de vida tradicionais e do ponto de vista ambiental. Pretendemos destacar que a mineração desmata e destrói paisagens naturais; ocasionando perdas de grandes áreas de ecossistemas e de áreas de uso humano. Trata-se de uma atividade que traz riscos: como o rompimento das barragens de contenção de rejeito. Ademais, desencadeia processos erosivos, resultando no assoreamento dos rios e igarapés.

    Tal atividade demanda alto consumo de água e resulta na contaminação dos mananciais por substâncias causadoras de problemas de saúde: como alta incidência de câncer e de anomalias no nascimento. Deve-se salientar ainda a progressiva redução da qualidade da água, dos solos e do ar e seus efeitos danosos à saúde pública. Adicionalmente, a soberania alimentar também ficará comprometida em função da contaminação irreversível de peixes, bem como dos solos e dos alimentos neles produzidos.

    Como muitos sabem, a cidade de Cruzeiro do Sul ainda não possui infraestrutura suficiente (moradia, saneamento básico, saúde, educação, transporte e segurança) para a população atual e certamente entraria em colapso se recebesse uma quantidade expressiva de novos habitantes. A promessa de novos empregos acarretará em problemas sociais decorrentes do aumento desordenado da população, como prostituição, alcoolismo, drogadição e violência urbana e rural.

    Desta maneira os ganhos econômicos, que em geral ficam nas mãos de poucos, não compensam as perdas sociais e ambientais da atividade de mineração.

    Ressaltamos a ausência das instituições governamentais convidadas: IMAC, Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual, Câmara de Vereadores de Cruzeiro do Sul, Câmara de Vereadores de Mâncio Lima, Prefeitura Municipal de Cruzeiro do Sul e Prefeitura Municipal de Mâncio Lima. Reiteramos a necessidade destas instituições tomarem parte do debate e do processo de construção de alternativas para a região.

    Nossa floresta e nosso futuro não têm preço. Têm valor!

    NÃO À MINERAÇÃO NO VALE DO JURUÁ!

    Cruzeiro do Sul (AC), 11 de outubro de 2017


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  • 16/10/2017

    Força Nacional recebe munduruku com bombas em ação de defesa de território sagrado


    Crédito da foto: Juliana Rosa/Xingu Vivo


    Nesta sexta-feira, 13, cerca de 80 indígenas munduruku desembarcaram no canteiro de obras da hidrelétrica de  São Manoel (MT) depois de sete dias de viagem pelo rio Teles Pire, para exigir o cumprimento de acordos fechados – e não cumpridos – com as empresas responsáveis pela construção das usinas  São Manoel e Teles Pires, no Mato Grosso, firmados em julho passado. Os construtores das usinas  foram responsáveis pela destruição dos dois principais locais sagrados da nação munduruku (Dekuka´a, o Morro dos Macacos, e Karobixexe, as Sete Quedas do Teles Pires e morada da Mãe dos Peixes), além da profanação de mais de dez urnas funerárias.

    Ao chegarem na área da hidrelétrica, os indígenas foram recebidos por um contingente da Força Nacional de Segurança, que chegou a disparar bombas de efeito moral contra o grupo munduruku, composto por homens, mulheres e crianças. A ação foi autorizada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) em atendimento a solicitação do Ministério de Minas e Energia (MME). Um interdito proibitório – ordem judicial que antecipadamente criminalizou três lideranças indígenas e impôs multa diária de R$ 5 mil caso ocorresse alguma ação no canteiro de obras de São Manuel (de responsabilidade da EDP Brasil, Furnas Centrais Elétricas e China Three Gorges Corporation) – havia sido expedida pelo juiz Marcel Queiróz Linhares, da Segunda Vara Federal de Sinop, no último dia 11. De acordo com a imprensa local, o embarque da tropa em Brasília foi acompanhado pelo secretário nacional de Segurança Pública, general Carlos Alberto Santos Cruz, e pelo diretor da Força Nacional, coronel Joviano Conceição Lima, ontem, em Brasília (DF).

    A principal reivindicação dos munduruku é um pedido formal de desculpas das construtoras das duas hidrelétricas pelos danos causados aos locais sagrados a às urnas funerárias. A demanda havia sido apresentada às usinas e ao governo federal em julho, quando ocorreu uma primeira ação na usina São Manoel. Na ocasião, foi acordada uma audiência pública para os dias 28 e 29 de setembro na aldeia Missão Cururu, no rio Cururu, em Jacareacanga, com presença prevista do Ministério Público Federal (MPF), presidência da Funai e representantes das empresas. Apenas o MPF compareceu. As empresas enviaram notificação dizendo que não se responsabilizariam pelos danos, o que motivou a nova mobilização indígena.  “Estamos voltando porque é uma determinação dos espíritos. Nós temos que agradá-los com nossos rituais, mas enquanto a empresa não assumir sua responsabilidade e não pedir desculpas, nem nós e nem eles não vamos sossegar. Então nós vamos para lá com a proteção dos nossos ancestrais”, explica um dos pajés do grupo.

    Negociações

    Além da Força nacional de Segurança, os munduruku foram recebidos por um oficial de Justiça que, com intermediação de um delegado da Polícia Federal, apresentou a ordem judicial que os impediu de entrar no canteiro de obras. Representando o governo, a diretora do Departamento de Participação e Diálogos Sociais da Presidência, Maria Thereza Ferreira Teixeira, afirmou que intermediaria o diálogo com a empresa e com o Governo, junto com um servidor da FUNAI de Colider.

    Os Munduruku explicam que vieram visitar seus espíritos ancestrais, realizar seu ritual e cobrar das empresas o cumprimento dos acordos firmados na última ocupação de UHE de São Manoel. O grupo também se dispões a negociar com os diretores das empresas e presidentes da FUNAI, IBAMA, IPHAN . Os mediadores confirmaram a presença do diretor da Diretoria de Promoção de Desenvolvimento Sustentável da FUNAI para uma reunião no dia seguinte, em Alta Floresta, mas os Munduruku sustentaram que querem falar com as autoridades que têm poder de decisão, as instâncias máximas de cada entidade, para que assumam as responsabilidades pelo que fizeram com seus locais e entes sagrados.

    Ainda na noite de sexta, ficou acordado que os munduruku seriam levados para uma segunda visita às urnas funerárias no Museu de Alta Floresta, após realização do ritual noturno em Dekoka’a, onde passaram a noite dormindo sobre o cascalho ao redor de fogueiras, na direção da antiga morada da mãe das caças.

    No sábado, representantes da FUNAI de Brasília chegam a Alta Floresta e comunicaram a impossibilidade de reunião com a presidência dos órgãos federais nesta data, sugerindo uma nova agenda com a presidência da FUNAI em novembro. Neste domingo, 15, os munduruku decidiram visitar as urnas funerárias e discutir posteriormente novas definições.

    Leia abaixo a última declaração do grupo munduruku

     

    O povo munduruku voltou!

    Nós mulheres e homens do povo munduruku voltamos com nossos pajés para perto de nossa Dekuka’a e Karubixexe. Viemos fazer nosso ritual. Estivemos em julho aqui para conversar com os pariwat que destruíram nosso lugar sagrado. O lugar aonde nossos antepassados vivem.

    Primeiro queremos os dapixiat (mentirosos) longe de nós. Não apareçam aqui, as mentiras que vocês contaram em julho escureceram nossos olhos mas nossos pajés estão conosco e agora não vão deixar que o cauxi da boca de vocês adoeça nosso povo. Queremos falar com gente séria.

    Vocês pariwat não entendem o que escrevemos, ouvem agente, mas não sabem escutar. Nós realizamos a audiência sobre os nossos locais sagrados nem a FUNAI e nem os representantes das empresas compareceram, são dapxiat! (mentirosos!)

    Estamos aqui pra defender nosso direito, lutar contra as ameaças ao nosso território denunciar as hidrelétricas no rio, somos como o Poy que derrotou a anta, o povo munduruku é como o jabuti vamos derrotar os nossos inimigos maiores que nós.

    O ataque das hidrelétricas contra nossos locais sagrados não vai ficar assim. Não vamos sossegar até que o IBAMA cancele a licença da hidrelétrica, até que as duas empresas peçam desculpas aos nossos antepassados e ao nosso povo e cumpram o combinado para a segunda visita às nossas urnas.

    Quando chegamos, fomos recebidos com bomba, uma barreira da força nacional e um papel do juiz que nos impedia de entrar no nosso próprio território, que foi roubado pela usina. Estamos esperando justiça até hoje pela destruição de Dekoka’a e a justiça funciona para proteger a usina hidrelétrica e trata nós como criminosos. Nesse papel também estava o nome de lideranças, dizendo que teríamos que pagar uma multa de R$ 5 mil por dia se ficarmos aqui.

    Queremos deixar claro que não somos criminosos. Nunca matamos, nunca destruímos e nem invadimos o território de vocês. Que estamos no nosso local sagrado e que temos o direito de ficar aqui até que a gente seja atendido. Entregaram um papel escrito à caneta dizendo que vão trazer o diretor da DPDS da FUNAI. Não foi isso que pedimos e mais uma vez querem enganar a gente com um pedaço de papel que não vale nada. Para responder para MPF e para falar com os pariwat, os advogados trabalham e escrevem ofícios. Mas o povo Munduruku é tratado com esse desrespeito.

    Não vamos aceitar mais uma das suas manobras.

    A reunião só vai acontecer com os representantes do Governo, empresa e as lideranças indígenas que exigimos. Queremos o presidente do IBAMA, presidente da FUNAI, presidente do IPHAN e diretor-presidente da Empresa de Energia São Manoel e diretor-presidente da Companhia Hidrelétrica Teles Pires para dialogar com a gente.

    Se Miguel Setas e Antonio Mexia estão em outro país, que enviem os representantes maiores da EDP no Brasil ou enviem nossas lideranças para lá, falar com eles no país de onde vem essa empresa que está nos matando.

    Nossa floresta e nosso rio não é dinheiro, é a vida!

    O Idixidi é o rio do povo Wuyjuyu, nós deixamos os wuyḡuybuḡun ficar no rio, só os ribeirinhos e os pescadores sabem respeitar o rio.

    Não escolhemos essa guerra, mas vamos vencer!

    Movimento Iperegayu


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  • 14/10/2017

    MPF defende maior extensão de ocupação indígena no Setor Noroeste em Brasília


    Santuário dos Pajés (Marcello Casal Jr/ABr)

    Por Assessoria de Comunicação MPF

    O Ministério Público Federal (MPF) defendeu, em parecer enviado ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que a área tradicionalmente ocupada pelos indígenas no Setor Noroeste em Brasília é superior aos 4,1815 hectares reconhecidos na sentença da 1ª instância da Justiça. Para o MPF, a área menor foi adquirida pelo indígena Santxiê Tapuya, em 1969, e não pode ser confundida com a área de ocupação tradicional, de aproximadamente 28 hectares. O parecer foi apresentado no recurso de apelação do próprio MPF, que pede a reforma da sentença obtida em ação civil pública.

    A sentença acatou parcialmente a ação proposta pelo MPF para reconhecer como terra indígena tradicionalmente ocupada apenas a área de 4,1815 ha, conferindo aos índios da tribo Fulni Ô-Tapuya a posse permanente dessa terra. Para o MPF, essa área de ocupação tradicional é mais extensa, conforme demonstram laudos antropológicos e relatórios, além de outros elementos que embasam a ação. No parecer, o MPF também defende o reconhecimento da tradicionalidade de ocupação indígena na área.

    A ação civil pública apontou o litígio entre os indígenas e a Terracap, que detém o registro formal da área, ainda que exista um recibo de compra e venda de terreno correspondente a 41.189 m², de janeiro de 1980, em nome do inídgena Santxiê Tapuya, comprovando sua permanência por mais de três décadas no local. O MPF sustenta a omissão da Fundação Nacional do Índio (Funai) a respeito da regularização dessas terras indígenas, mesmo diante de indícios suficientes a dar suporte ao procedimento de identificação e demarcação da área.

    O parecer cita entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, reconhecida a tradicionalidade, qualquer ocupação de terceiros – ainda que por meio de ente estatal e/ou a partir de transcrição no Registro de Imóveis – é nula de pleno direito. "É por isso que o MPF afirma e defende que os atos a embasar as demarcações de terras indígenas possuem natureza simplesmente declaratória", disse o procurador regional da República Sílvio Amorim, no documento enviado em julho. Agora ele ocupa o cargo de conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

    O MPF sustenta que há prazo razoável para o procedimento de demarcação e que, na inércia do Estado em dar andamento ao procedimento – como ocorre no presente caso -, é devida a intervenção do Judiciário, na linha do que já decidiu o Superior Tribunal de Justiça.

    Na sentença da 1ª instância da Justiça, a Funai foi instada a tomar as providências necessárias para delimitar a área. A decisão também determinou que o Instituto Brasília Ambiental (Ibram) deve impedir a realização de quaisquer obras que venham a impactar a área e que a Compahia Imobiliária de Brasília (Terracap) deve impedir ações que causem alteração, redução, impacto, transferência ou restrição do modo de ocupação e da área referida. Em recursos, os três órgãos alegaram que não há caracterização de ocupação tradicional indígena no local.

    No parecer, o MPF rejeita essa e outras alegações elencadas, entre as quais estão a ilegimitidade passiva do Distrito Federal e a incompetência do Ibram para impedir edificações no local. Para o MPF, os dois entes tentam a exclusão de suas respectivas responsabilidades administrativas e, na prática, a inviabilização dos pedidos da ação e do próprio comando judicial.

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  • 14/10/2017

    Deputados ruralistas querem implementar agronegócio em terras indígenas

    Por Guilherme Cavalli e Tiago Miotto, da assessoria de comunicação Cimi

    Em audiência pública agendada para amanhã, quarta-feira (18), em Brasília, o núcleo duro da bancada ruralista debaterá iniciativas “agrícolas” em terra indígena. Convocada pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, a audiência foi deslegitimada pela Associação Terra Indígena do Xingu (Atix), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e o Instituto Raoni.

    Em nota, a APIB repudiou a “truculenta decisão” da bancada ruralista de realizar o encontro. “A Frente Parlamentar Agropecuária jamais irá desistir de seus propósitos de tomar conta das terras e territórios indígenas, seja para a expansão do agronegócio, da pecuária e exploração dos bens naturais, ou para a implantação de grandes empreendimentos, incluindo o extrativismo minerário industrial”, afirma a nota.

    O Instituto Raoni, entidade representativa de 3.100 indígenas localizados na região do baixo Xingu, entre os Estados de Mato Grosso e Pará, em nota divulgada na última quinta-feira (11), diz saber os reais interesses dos deputados ruralistas. O texto relembra iniciativas anti-indígenas dos mesmos parlamentares que propõem a audiência, como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) da Funai-Incra e o Projeto de Lei (PL) 1610, que permite exploração mineral em terra indígena. “Nosso futuro depende do nosso território, livre de invasores e de parlamentares com opiniões e atitudes contrárias e que infere aos direitos indígenas”, sustenta a nota.

    “Aproveitamos a oportunidade para informar a todos que SIM, nós produzimos em nossas terras, produzimos nossos alimentos através de nossas roças tradicionais, utilizamos nossos rios para nos deslocar dentro dos nossos territórios e das nossas florestas para obter nossas caças/alimentos, além de realizar coleta de produtos da biodiversidade, como sementes de cumaru, pequi, óleo de copaíba, coleta de remédios tradicionais e de matéria prima para produção de nossos artesanatos tradicionais. E que para isso, não necessitamos destruir nossas riquezas naturais”.

    Parlamento anti-indígena

    O viés desenvolvimentista, que deseja se aproveitar das terras indígenas para arrendamento e monocultura é defendida pelo alto escalão do governo Temer. Recentemente, Torquato Jardim, ministro da Justiça, afirmou à delegação de indígenas do Mato Grosso do Sul que desejava “atribuir valor” às terras tradicionais, para que demarcações de cumpram requisitos de “custo benefício” ao Estado brasileiro. Na semana passada, Grace Mendonça, ministra da Advocacia-Geral da União (AGU), repetiu o discurso para um grupo de indígenas vindo do Maranhão, Tocantins e Roraima.

    Nilson Leitão, propositor da audiência e presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), afirma querer soluções que qualifiquem a vida alimentar e financeira das comunidades. “O debate é para ouvir as lideranças indígenas, garantindo sua sustentabilidade e dignidade. Sua voz precisa ser escutada pelo governo e pelo Congresso Nacional, sem intermediários. O índio não pode ser tratado como uma reserva cultural apenas. Eles também querem ser produtores e garantir a sustentabilidade de suas comunidades”, ressaltou Leitão em entrevista divulgada pela FPA. O deputado afirmou querer que os indígenas “explorem suas terras e também o minério”.

    “Sua intenção é validar as propostas do agronegócio e do setor minerário para a exploração econômica em terras indígenas”, rebate o texto divulgado pelo Instituto Raoni. “Se o poder legislativo está realmente preocupado com a situação indígena no Brasil, que então respeite e cumpra os direitos indígenas assegurados na Constituição Federal de 1988”,

    Leitão é propositor dos Projetos de Decreto Legislativo de Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo (PDC) 1300/2013 e 1465/201, que visam legalizar a exploração de recursos naturais em terras indígenas; também do PDC 636/2017, que susta o decreto que demarca a Terra Indígena Kayabi, em Apiacás (MT) e Jacareacanga (PA);  e da RCP 26/2016 que criou a CPI para investigar a Funai e o Incra. Sob sua relatoria, mais de uma centena de lideranças indígenas, indigenistas, antropólogos e, inicialmente, até procuradores da República foram criminalizados pela Comissão. Segundo escutas do Ministério Público Federal (MPF), Leitão pode ser um dos incentivadores da invasão da Terra Indígena Marãiwatsédé (MT).

    O requerimento 478/2017, que convoca a audiência pública, foi assinado por parlamentares declaradamente inimigos dos povos indígenas, como Nilson Leitão (PSDB-MT), Valdir Colatto (PMDB-SC), Alceu Moreira (PMDB-RS) e Tereza Cristina (PSDB-MS). O quarteto, juntamente com outros 18 parlamentares, são responsáveis pelas 33 proposições anti-indígenas que tramitam no poder Legislativo.

    Acesse aqui o levantamento realizado pelo Conselho Indigenista Missionário sobre o parlamento anti-indígena.


    O presidente Michel Temer, duas vezes denunciado pela PGR, participa de reunião da FPA. Foto: Beto Barata (PR)

    Aliança anti-indígena com Temer

    No início do mês, ruralistas circularam na imprensa a informação de que o governo Temer regulamentaria na semana seguinte o arrendamento de terras indígenas para exploração particular. A informação, confirmada pelo ruralista Luís Carlos Heinze (PP-RS) ao Canal Rural e ao Estadão, foi posteriormente contestada pela Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República, em resposta a questionamento do Isa.

    Segundo Heinze, a medida teria sido assumida por Michel Temer em reunião com a bancada ruralista no Palácio do Planalto, da qual também participou o ministro da Justiça, Torquato Jardim.

    “O presidente Michel Temer não prometeu nada a respeito, apenas tomou conhecimento do assunto durante audiência com parlamentares”, contestou a Secretaria de Comunicação da Presidência.

    Enfrentando sua segunda denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) na Câmara dos Deputados, que pode resultar no seu afastamento caso a investigação seja permitida pelos parlamentares, Temer faz sua segunda maratona de negociatas para se manter no cargo.

    A bancada ruralista foi essencial para garantir o afastamento da primeira denúncia, por corrupção, em agosto. Em contrapartida, Temer anistiou dívidas milionárias de proprietários rurais e assinou um parecer anti-demarcações”, elaborado pela Advocacia-Geral da União após solicitação dos ruralistas, conforme Heinze antecipou em suas redes.

    A admissão ou não da nova denúncia, por obstrução da Justiça e organização criminosa, deve ser votada pela Câmara  dos Deputados ainda em outubro.

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  • 13/10/2017

    Congresso anti-indígena: 33 propostas, reunindo mais de 100 projetos, ameaçam direitos indígenas

    Levantamento aponta que maioria das propostas foi feita por ruralistas e pretende alterar critérios para demarcação ou liberar exploração de recursos em terras indígenas

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  • 13/10/2017

    Da Comissão Nacional da Verdade ao Golpe de 2016: a negação da Justiça de Transição


    Por Marcelo Zelic*, publicado originalmente no Relatório de Violência contra os Povos Indígenas no Brasil

    Uma janela contra o esquecimento abriu-se aos povos indígenas quando, em maio de 2012, os membros da Comissão Nacional da Verdade (CNV) reuniram-se no escritório da Presidência da República, em São Paulo, com entidades de direitos humanos para discutir a inclusão da violência praticada pelo Estado contra os povos indígenas nos estudos da CNV.

    Pouco antes, na Câmara dos Deputados, o genocídio Waimiri-Atroari havia sido tema de debate na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM), onde o indigenista Egydio Schwade também reforçou a necessidade desta inclusão.

    Em novembro de 2012, a CNV constituiu um grupo de trabalho para investigar este tipo de violação. Ao publicar seu relatório final, em dezembro de 2014, a Comissão abriu a porta da Justiça de Transição aos povos indígenas, pautando, com a busca da verdade sobre as graves violações que sofreram entre 1946 e 1988, a necessidade de reparação aos atingidos, além de atribuir à demarcação de suas terras um papel central para que a justiça e a reparação tenham efetividade.

    O relatório final proporcionou à sociedade um olhar mais amplo sobre a violência de praticada pelo Estado no passado recente, incluindo vários outros segmentos atingidos e expondo um pouco da dor vivida por esses povos em sua relação com a sociedade não-indígena. A pesquisa deste grupo específico da CNV também explicitou as trágicas consequências destes povos terem sido considerados como entraves ao desenvolvimento nacional e desprovidos de saber e de direitos; visão preconceituosa difundida há décadas e que perdura até hoje, criminalizando outras formas de viver em sociedade.

    A inclusão dos povos indígenas na Justiça de Transição gerou atritos com a política governamental, baseada em “mesas de diálogo”, que surgiram como uma forma de resolver a judicialização dos conflitos agrários, e tinha o objetivo de protelar as demarcações e buscar um “bom acordo”. Ou seja, impulsionado pela paralisação total das demarcações de terras indígenas no país solicitada pela Casa Civil, este “acordo” pretendia forçar uma solução desvantajosa aos indígenas brasileiros nas mesas coordenadas pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e fortalecer as negociações pela “governabilidade” com setores da bancada ruralista no Congresso Nacional.

    Umas das mesas, realizada em maio de 2015, reuniu representantes dos povos Guarani e Kaingang, e teve um desfecho que fez cair máscaras. Os Guarani da Terra Indígena (TI) de Mato Preto foram as primeiras vítimas do esbulho e perderam 85% de seu território neste “bom acordo” conduzido pelo Ministério da Justiça. Terra esta que já havia sido encaminhada em sua integralidade para homologação à Presidência da República, e reconhecida como território indígena pela Fundação Nacional do Índio (Funai). O acordo foi firmado mediante o impacto da prisão de diversas lideranças Kaingang que, semanas antes, acabaram presas enquanto aguardavam a chegada de Cardozo para a “mesa de diálogo” sobre suas terras. A comunidade ficou sem algumas de suas lideranças por meses, até que a Justiça lhes concedessem o direito ao habeas -corpus.

    O povo Terena, por sua vez, em uma “mesa de diálogo” no Mato Grosso do Sul, na presença do ministro da Justiça e de diversos representantes ruralistas, introduziram elementos da Justiça de Transição na discussão e apresentaram documentos localizados que integram o Relatório Figueiredo. Perdido por 44 anos, este documento foi encontrado durante os trabalhos da CNV, e contém informações colhidas e sistematizadas nos anos 1960 sobre o esbulho de territórios e rendas de indígenas em várias partes do Brasil. A partir deste momento a figura do invasor de boa-fé passou a ser valorizada, como também criou uma porta para os que não o são, de modo que tivessem que justificar o roubo das terras indígenas. Após este episódio, as “mesas de diálogo” não prosperaram no Mato Grosso do Sul.


    Portaria nº 1 da comissão de investigação que produziu o Relatório Figueiredo

    A política indigenista do mandato de Dilma Rousseff serviu aos interesses do governo para atrair o apoio da bancada ruralista no Congresso Nacional e dos empresários do agronegócio nos estados. Apesar do governo ter mantido a paralisação das demarcações e realizado investimentos massivos no agronegócio, a bancada ruralista articulou e votou, com pouquíssimas exceções, pelo afastamento da presidenta Dilma, sendo este setor muito beneficiado com o golpe de Estado que empossou Michel Temer em 31 de agosto de 2016.

    O relatório publicado naquele mesmo mês pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos sobre a situação dos povos indígenas e quilombolas da região Sul do país, traz um retrato das consequências desastrosas da política indigenista implementada entre 2011 e 2015.

    “O conjunto das denúncias destes povos expressa um quadro adverso de conflitos fundiários, violência policial e aprisionamento de lideranças, agressões e declarações públicas de conteúdo racista pronunciado por autoridades e agentes públicos, desatenção e negligência dos órgãos públicos quanto ao atendimento à saúde, ao direito à convivência familiar e comunitária, à educação escolar, diferenciada e bilíngue, à moradia, à segurança alimentar, e à regularização fundiária, dentre outras violações”

    Ceder direitos fundamentais de segmentos da sociedade por apoio político de forças contrárias a um projeto democrático, inclusivo, pluriétnico e popular resultou em retrocesso dos direitos humanos, desrespeito aos direitos constitucionais dos povos indígenas, desequilíbrio das forças em conflito, mais certeza de impunidade pelos que praticam a violência contra estes povos, acirramento dos conflitos, isolamento do governo e o emparedamento de suas ações até o desfecho do golpe.

    Os povos indígenas pedem reparação, pelo passado e pelo presente

    O genocídio de 85% da população Waimiri-Atroari também pede reparação e está documentado nos relatórios da CNV e das comissões estaduais de São Paulo e do Amazonas. Como consequência do massacre deste povo, houve a expropriação de 90% de suas terras indígenas, configurando-se como um crime de lesa-humanidade, conforme a Convenção nº 107, adotada em Genebra em 26 de julho de 1956, da qual o Brasil é signatário e a internalizou em nosso ordenamento jurídico através do Decreto nº 58.824, de 14 de julho de 19667.

    Em 2015, em vez de efetivar a Justiça de Transição e, como gesto concreto, mudar de conduta na aplicação da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), como recomendou a CNV, o governo autorizou a construção de um linhão de eletricidade cujo traçado cortará os 10% do que sobrou do território Waimiri-Atroari, de ponta a ponta. Desse modo, desconsiderou a necessidade de reparação recomendada pela CNV e também o relatório publicado pela OIT, que denuncia o Brasil pela violação da Convenção 169 ao não ouvir os povos indígenas atingidos pela construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.

    Com isso o Estado brasileiro sinalizou à sociedade que não haverá reparação, que há um interdito na Justiça de Transição no Brasil e que a repetição de um novo ciclo de violência contra os povos indígenas é o custo, inevitável, do “progresso” e do “desenvolvimento”. Com o golpe político na Presidência do país, a Justiça de Transição e a democracia afastaram-se ainda mais das práticas político-sociais do Estado brasileiro.

    Pouco antes do afastamento da presidenta Dilma Rousseff, em busca de apoio contra a aprovação do seu impedimento, o governo assinou algumas homologações e demarcações de terras, mas aí já era tarde.

    Foram 5 anos de uma política indigenista subserviente ao agronegócio, onde ao menos 294 indígenas foram assassinados em todo o país entre 2011 e 2015. Alguns destes foram mortos pelas mãos do próprio Estado brasileiro; outros seletivamente pelo agronegócio, por participarem da luta pelas suas terras ancestrais, pela organização de suas comunidades e/ou por buscarem outros modelos de educação e empoderamento para seus povos; outros ainda pela triste situação de confinamento em que vivem, com pouquíssima terra e densidade populacional muito acima da média nacional, sendo esta uma das raízes da violência interna nas aldeias.

    Em 2016, a Funai sofreu várias tentativas de deslegitimação de seu papel constitucional de demarcar as terras dos povos originários, teve uma redução drástica de seu baixo orçamento e recebeu os mais diversos tipos de pressão. Como resultado, inúmeras áreas indígenas em disputa foram degradadas e ocupadas pelo agronegócio, transformando as matas em monoculturas, áreas de criação de gado, de extração mineral, de extração de madeiras e de grandes projetos desenvolvimentistas, como hidrelétricas, linhões de eletricidade e estradas, que já se estabeleceram ou estão previstos para estas áreas.

    O genocídio que está ocorrendo em pleno século XXI contra o povo Guarani- -Kaiowá, confinado desde a ditadura militar em pequenas áreas de terra, poderia ter sido evitado com o reconhecimento das terras indígenas no Mato Grosso do Sul, como apontaram organizações indígenas do estado. Desse modo, o valor do direito deles e sua importância como povos originários seriam sinalizados para o Judiciário e toda a sociedade local e brasileira. Esta solução, no entanto, é impraticável numa política indigenista vulnerável e submissa às demandas oriundas das tratativas por “governabilidade”, realizadas com a Frente Parlamentar pela Agropecuária no Congresso Nacional.

    Conforme o mapa da plataforma Caci, os assassinatos de indígenas entre 2011 e -2015 ocorreram em todo o Brasil, sendo que o Mato Grosso do Sul continua sendo o estado mais violento, mantendo a primeira colocação do mapa de 2003-2010. Ao assumir, o governo Dilma não desconhecia a situação de conflito neste estado, pois as denúncias formais têm sido constantemente feitas através de organismos de direitos humanos internos e internacionais. O Mato Grosso do Sul também é uma das duas regiões em que ocorreu o maior número de suicídios de indígenas no Brasil em 2016, um total de 30 – mesmo número de suicídios ocorridos entre os Tikuna, no Alto Rio Solimões. Frente a este quadro de genocídio, demarcar as terras ancestrais dos povos originários é uma solução óbvia, necessária e urgente, mas o que tem predominado há décadas no período é a paralisação como política de Estado.

    Em dezembro de 2014, a Comissão Nacional da Verdade apontou em seu relatório final a não demarcação das terras indígenas como o principal fator da violência contra os povos nativos entre 1946 e 1988. Na ocasião, a CNV apresentou treze Recomendações ao Estado brasileiro10, que foram recebidas pelo governo mas nunca analisadas, empurrando o trabalho da Comissão rumo ao esquecimento.

    Com muito esforço foi realizada uma sessão pública para a entrega do Relatório Final à Presidência da República. Nenhuma palavra do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, foi ouvida sobre a criação da Comissão Indígena da Verdade, cujo objetivo é dar sequência aos trabalhos iniciados pela CNV. Pelo contrário, este Ministério contestou um pedido do Ministério Público Federal (MPF), junto à Comissão de Anistia, de reparação coletiva ao povo Krenak por ter vivido em situação de campo de concentração em sua própria terra durante a ditadura. Conhecido como “Reformatório” Krenak, a cadeia abrigou indígenas de vários estados do Brasil entre 1970 e meados dos anos 1980. Também houve a remoção forçada de indígenas quando a cadeia mudou de área, causando a perda de uma parte significativa de seu território.

    Desse modo, é claro que o Estado brasileiro deve reparação aos Krenak pelos crimes de lesa-humanidade praticados, assim como tem uma dívida histórica com as outras centenas de povos que conseguiram sobreviver no Brasil.
    O engavetamento das Recomendações da Comissão Nacional Verdade não se deu somente com aquelas treze voltadas aos povos indígenas. Em maio de 2015 este tema já não aparecia mais na imprensa, e tampouco era objeto de trabalho dos segmentos do Estado, que deveriam se debruçar sobre os encaminhamentos sugeridos pela CNV para realizarem a Justiça de Transição. Com o golpe, que colocou e mantém Temer na Presidência do país, o assunto foi enterrado de vez.

    Quando a CNV afirma em seu relatório final que “a apropriação de terras indígenas e seus recursos foi favorecida, a corrupção de funcionários não foi controlada e a violência extrema de grupos privados contra os índios não foi punida. Com exceção de alguns casos esparsos, justiça não foi feita”, não retrata somente uma época, mas fundamentalmente expõe a conduta do Estado e demanda mudanças. A Comissão recomenda, dentre outras, a criação de mecanismos de não-repetição. À demarcação das terras indígenas, agregou-se a função de ser esse um dos mecanismos necessários para que a Justiça de Transição seja efetivada e a sociedade brasileira passe a se relacionar de modo respeitoso com os povos indígenas, reconhecendo seus direitos originários ao território tradicional.


    Fragmento do relatório de 1990 do Estado Maior das Forças Armadas


    O documento “Memória Nº 058/DPEE/90”, localizado no Arquivo Nacional e datado de 16 de agosto de 1990, trata dos principais problemas nas Áreas Indígenas no início do governo Collor, apontados pela Secretaria de Assuntos Estratégicos do Estado Maior das Forças Armadas (EMFA). Destaca em suas considerações que “da análise da problemática indígena, conclui-se que a questão fundiária é a raiz das principais controvérsias”.

    A verdade sobre as graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas é incômoda para os poderes da República, que desde 1990 tem ciência da centralidade e urgência de demarcar as terras indígenas como único mecanismo capaz de refrear as violências contra estes povos no país. É preciso apontar que em 2014 a Comissão Nacional da Verdade reafirmou o estudo do EMFA e repetiu, 24 anos depois, a mesma necessidade para combater a violência e a impunidade.

    O governo ilegítimo de Michel Temer, tão logo assumiu o poder, aprofundou os desmandos da política indigenista do governo Dilma, intensificando o processo de retirada de direitos. Imediatamente, o governo Temer anunciou a revisão das homologações e demarcações assinadas por sua antecessora, e vários processos com este fim passaram a tramitar no Congresso Nacional. Entregou a Presidência da Funai e de suas regionais a setores anti-indígenas, majoritariamente por indicação das bancadas ruralista e evangélica. Estrangulou o orçamento da instituição, diminuindo o quadro de pessoal, manteve as demarcações paradas e não tomou nenhuma atitude em relação à violência física praticada contra indígenas, que aumentou muito em 2016 e 2017. No campo da Justiça de Transição, trocou todo o quadro de membros da Comissão de Anistia, praticamente anulando a caminhada de inclusão destes povos às reparações. Os conflitos recrudesceram contra o indígena brasileiro em todo o país depois do golpe parlamentar.

    No Legislativo, as forças ruralistas apresentaram vários projetos de lei com o objetivo de sustar tanto o rito de demarcação regulamentado em 1996, como – e tão grave quanto – o de sustar terras demarcadas e homologadas pelo Estado brasileiro. Esta ofensiva gerou um ambiente de insegurança jurídica para os direitos constitucionais dos povos indígenas, estimulando invasões aos territórios, como foi o caso da Terra Indígena Marãiwatsédé, do povo Xavante.
    Gravações feitas pela Polícia Federal comprovam que o deputado federal ruralista Nilson Leitão (PSDB-MT) estimulou famílias de agricultores a invadir esta terra tradicional.

    Parlamentares ligados ao setor ruralista também atuam no sentido de intimidar lideranças indígenas de todo o país e instituições indigenistas históricas, por meio, por exemplo, de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI).
    Em uma delas, instalada no Congresso Nacional, atacaram e intimidaram o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o Instituto Socioambiental (ISA), o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e outras organizações, incluindo também a Funai e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), com o objetivo de perseguir os servidores públicos que trabalham em consonância com a missão destas instituições.

    O Supremo Tribunal Federal (STF) ao não declarar inconstitucional o “marco temporal”, estratégia jurídica ruralista que afronta o direito originário destes povos às suas terras, alimenta a violência que vivemos hoje.
    No campo da Justiça de Transição, tal postura dos magistrados anistiará aqueles que no passado tomaram as terras indígenas com violência, os expulsaram e se estabeleceram nelas.

    O relatório final da Comissão Nacional da Verdade traz elementos claros sobre as violações e violências sofridas por estes povos na defesa de seus territórios e a dificuldade de permanecer neles, tendo como agravante viverem em um regime de tutela, onde o Estado, mesmo sendo o tutor destes povos, era um agente aliado daqueles que lesavam seus patrimônios.

    Protelar a decisão de inconstitucionalidade do “marco temporal” dificulta a internalização da Justiça de Transição no país e estimula os juízos de primeira e segunda instâncias a criarem uma jurisprudência inconstitucional contra o direito originário consolidado no ordenamento jurídico desde o começo do século XX.

    São desafios da Justiça de Transição, para contrapor este ciclo de repetição da violência secular contra os povos indígenas e a retirada de seus direitos constitucionais, construir mecanismos reparatórios de estabelecimento da verdade, a demarcação de suas terras e a reparação aos povos atingidos, o controle e a promoção de responsabilização e a mudança de conduta do Estado e da sociedade, bem como fomentar a educação sobre os direitos desses povos.
    Cabe às várias forças que hoje se mobilizam pelo retorno da ordem constitucional incluir a causa indígena e pautá-la junto às demais demandas da sociedade brasileira, para cancelarmos este interdito à Justiça de Transição e reestabelecer um rumo democrático e pluriétnico de convivência em nosso dia-a-dia, dando condições de existência a todos os segmentos que formam o povo brasileiro.

    O Agro não é pop, o agro não é tudo. Há muito mais vida, e vida em abundância, na diversidade.

    *Marcelo Zelic é diretor de Relações Institucionais do Grupo Tortura Nunca Mais-SP; e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo; coordenador do Projeto Armazém Memória, foi um dos proponentes da criação do Grupo de Trabalho (GT) Indígena na Comissão Nacional da Verdade (CNV) e um de seus colaboradores

    FONTES DOCUMENTAIS:
    Relatório CNV – http://www.cnv.gov.br/
    Relatório CNV – Capítulo Indígena: http://www.docvirt.com/docreader.net/ComissaoVerdade/6959
    Relatório Conselho Nacional de Direitos Humanos –
    http://www.sdh.gov.br/sobre/participacao-social/cndh/relatorios/relatorio-do-gt-sobre-direitos-dos-povos-indig
    enas-da-regiao-sul-1
    Relatório CEV- São Paulo – http://www.docvirt.com/docreader.net/ComissaoVerdade/7164
    Relatório CEV- Amazonas: http://www.docvirt.com/docreader.net/ComissaoVerdade/1032
    Decreto nº 58.824 de 14/07/1966 – http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/D58824.htm
    Conveção 169 OIT – http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Convencao_169_OIT.pdf
    CACI – Cartografia de Ataques Contra Indígenas – http://caci.cimi.org.br
    Para ler as Recomendações da CNV, acesse: http://www.docvirt.com/docreader.net/ComissaoVerdade/7009

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  • 11/10/2017

    Gamella conquistam direito de identificação civil e de registrar crianças com o sobrenome do povo


    Crédito da foto: Ana Mendes/Cimi


    Por Viviane Vazzi Pedro, da Assessoria Jurídica do Cimi Regional Maranhão

    O povo indígena Akroá Gamella vem sofrendo com todo o tipo de violência causada pelo racismo, pela negativa de reconhecimento identitário, falta de demarcação do território, de segurança e ausência de políticas públicas específicas. O massacre cometido contra o povo, em 30 de abril de 2017 – o qual foi anunciado, premeditado e incitado publicamente – também se relaciona a uma das facetas da violência: a institucional. O povo denunciava que há alguns anos, hospitais, maternidades e cartórios dos municípios maranhenses de Viana, Matinha e Penalva recusavam-se em promover até mesmo o registro civil das crianças recém nascidas como povo indígena. Essa recusa afronta o direito à autoidentificação, infringe o artigo 231 da Constituição Federal, as regras estabelecidas na Declaração Americana Sobre os Direitos dos Povos Indígenas, na Convenção 169 da OIT e, também, os próprios artigos 2º e 3º da Resolução Conjunta CNMP/CNJ nº 03/2012.

    As referidas instituições insistiam na recusa, não aceitavam a autodeclaração de identidade indígena, exigiam dos pais que apresentassem o Registro Administrativo de Nascimento Indígena (RANI) como a prova EXCLUSIVA de pertencimento étnico, não admitindo outros meios probatórios e de declaração. Ocorre que a FUNAI, quem deveria expedir o RANI, por sua vez, não o fazia e apresentava pretextos variáveis, ilegais e injustificáveis para sua procrastinação.

    No território, havia crianças cujos pais desistiram de tentar efetuar os registros de seus filhos como indígenas e outros que vinham reivindicando esse direito às instituições públicas sem que as crianças tivessem sido registradas. Era o caso, por exemplo, de uma mãe que, desde 2016, tentava sem êxito registrar o seu filho com o sobrenome Gamella. O cartório se negou a colocar o nome da etnia sob o argumento de que não havia prova de que os pais da criança eram Gamella ou mesmo que tinham este sobrenome. Diante da recusa, a mãe acabou cedendo em permitir o registro sem a identificação do povo indígena e sem o sobrenome.

    Da mesma maneira, em fevereiro de 2017, o pai de uma recém-nascida também procurou o 2º ofício de Viana (MA) para realizar o registro de nascimento de sua filha, tendo recebido resposta negativa por parte do oficial. Com a recusa, o pai não aceitou fazer o registro de sua filha sem o reconhecimento como Gamella. Por isso, até poucos dias, a criança permanecia sem registro civil de nascimento. Estas várias situações reforçam a tentativa do Estado Brasileiro de negar a cidadania, a identidade e a existência do povo indígena Gamella, causando graves prejuízos às crianças e famílias, que ficam sem nenhuma assistência de políticas públicas e serviços sociais.

    Após luta do povo e a atuação do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Maranhão (DPE), no último dia 27 de setembro, os Akroá Gamella conquistaram uma importante decisão. Após analisar o Mandado de Segurança Coletivo n° 2021/2017, impetrado pelo povo indígena, por intermédio da DPE, contra o Tabelião e Registrador da Serventia Extrajudicial do 2º Ofício (cartório local), a Juíza Titular da 1ª Vara da Comarca de Viana, Odete Maria Pessoa Mota Trovão, deferiu o pedido de liminar. A magistrada determinou que o oficial do Cartório proceda à lavratura do registro de nascimento das crianças recém-nascidas indígenas autorreconhecidas como da etnia Gamella que ainda estão sem registro de nascimento, devendo constar no assento o sobrenome "GAMELLA", a declaração do registrando como indígena e a indicação da respectiva etnia, sem a necessidade de apresentação do RANI, até julgamento final da presente ação.

    Antes de apreciar o pedido liminar, a juíza analisou e discorreu sobre uma série de preconceitos e vícios administrativos que são presentes na realidade de muitos indígenas. Ao prestar informações, o Cartório, como a autoridade coautora, procurou justificar a recusa sob os argumentos “de que os pais da criança não tinham sido registrados como indígenas, além de não apresentarem o RANI” e, ainda, “que o pai não portava documento que identificasse sua origem indígena e tampouco apresentava sinais indicativos deste fato, já que, na ocasião, trajava camisa e calça social”.

    O oficial do cartório esclareceu que foi orientado pela Funai a somente proceder ao registro de indígena, sem a apresentação do RANI, se a informação sobre a etnia já viesse expressa na declaração de nascido vivo (DNV). A FUNAI ainda teria dito que “o registro de nascimento de indígena não poderia ser lavrado, em virtude das inúmeras fraudes ocorridas, em que pessoas que não são indígenas tentam se passar por índios”. O oficial do ato coautor afirma, ainda, que consultou outros cartórios de registro civil da Comarca de Grajaú e Viana sobre a situação e recebeu a mesma orientação no sentido de “exigir o documento comprobatório da condição de indígena, em nome da segurança jurídica do sistema e da lei de registros públicos e da Resolução nº. 03/2012 do CNMP/CNJ”.

    Consta da decisão liminar que os cartórios argumentavam que a exigência de prova da condição de indígena para a lavratura do registro de nascimento é essencial para assegurar a preservação da segurança jurídica e da fé pública registral "no intuito de evitar futuras demandas acerca do ato praticado, inclusive nas disputas envolvendo terras que ocorreram recentemente no Município de Viana".

    Em sua bem fundamentada e lastreada decisão, a juíza defende o critério utilizado pela Constituição de 1988 e pela legislação correlata, que reconhece aos povos indígenas "sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições", sem estabelecer que eles devam estar circunscritos a um determinado lugar, vivendo em reservas, ou que devam abandonar a sua condição de indígena para tornarem-se cidadãos brasileiros. Cita a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), promulgada no Brasil pelo Decreto 5.051/2004, que prevê, em seu artigo 1º, o direito à autoidentificação "como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção". Destaca-se que, por ser um tratado internacional que versa sobre direitos humanos, a Convenção 169 da OIT tem natureza supralegal (STF – RE 466343 – 2008), ou seja, está acima das leis ordinárias e abaixo da Constituição.

    De outro lado, a magistrada observou “que não há definição científica consensual sobre quem é índio. Ser indígena está além da questão racial ou da manutenção dos costumes ancestrais. Os indígenas são aqueles que reivindicam sua relação histórica e social com os grupos que aqui estavam antes da colonização europeia. Desse modo, os índios que vivem nas cidades ou que já incorporaram práticas do meio urbano ao seu cotidiano não perdem identidade nem são considerados menos indígenas. Além disso, identidade e pertencimento étnico não são conceitos estáticos, mas processos dinâmicos de construção individual e social. Dessa forma, não cabe ao Estado reconhecer quem é ou não indígena, mas garantir que sejam respeitados os processos individuais e sociais de construção e formação de identidades étnicas. Exatamente por essa razão a Convenção 169 da OIT não define quem são os povos indígenas ou tribais, mas estabelece o critério da autoidentificação como instrumento para que os próprios sujeitos de direito se identifiquem”.

    A decisão ainda esclarece que “a própria Resolução nº. 03/2012 do CNJ/CNMP, (artigo 2º, §§1º, 2º e 3º) assegura o direito de incluir, a pedido do interessado, no assento de nascimento indígena, a identificação da etnia como sobrenome, bem como constar a aldeia de origem do indígena e a de seus pais. Na verdade, infere-se que este deve ser o procedimento adotado como regra geral”. O pedido do RANI é uma exceção prevista no §5º do art. 2º, da mencionada resolução, que assim dispõe: "Em caso de dúvida fundada acerca do pedido de registro, o registrador poderá exigir o RANI ou a presença de representante da FUNAI. Desse modo, não se pode inverter a lógica do sistema e aplicar a exceção como regra geral, como parece ser a conduta adotada pelo impetrado (…)”.

    Em tempos de intensificação de ataques e desregulamentação de direitos, esta é uma decisão relevantíssima, não apenas porque protege o direito fundamental do povo Akroá Gamella à sua identificação civil, mas, também, por ser uma decisão pedagógica para cartórios, oficiais de registro e até mesmo para instituições brasileiras, como a própria FUNAI, contribuindo para a luta de crianças e famílias de outros povos indígenas.


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