• 21/06/2004

    Gasoduto na Terra Indígena Tupinikim de Comboios, por Paulo Machado Guimarães

    I. Consulta

    A comunidade indígena Tupinikim, da aldeia de Comboios consulta sobre a legitimidade da Petrobrás construir e manter um gasoduto nos limites da terra que tradicionalmente ocupam, em uma extensão de cerca de 20 km, sem que atos legislativo e administrativo quaisquer tenham sido praticados pelo Poder Público federal. 

    Esclarecem que o gasoduto foi construído em 1983, estando completando 21 anos de turbação da posse indígena sobre a terra que tradicionalmente ocupam. 

    Na Terra Indígena Caeiras  Velhas o mesmo gasoduto foi construído, na mesma época. No entanto, em 16 de setembro de 1988, o Presidente José Sarney editou o Decreto nº 96.709, por intermédio do qual foi “concedida autorização à Petróleo óleo Brasileiro S/A – Petrobrás, para construir um gasoduto numa faixa de terra com a área de 18.544,90 m2, aproximadamente, situada na Área Indígena Caeiras Velhas, no Município de Aracruz, no Estado do Espírito Santo…”. 

    O art. 3º desse Decreto nº 96.709/88 estabelece ainda que a Petrobrás “indenizará a comunidade indígena dos prejuízos que venha a causar em decorrência da utilização da faixa de terra, competindo ao órgão federal de assistência ao silvícola, de comum acordo com a interessada, a fixação do valor da indenização”.

    II. Resposta 

    Na vigência da Constituição Federal de 1967/1969, o art. 198 considerava nulos e extintos, os efeitos jurídicos dos atos que visassem a posse, a ocupação e o domínio das terras ocupadas pelos índios.  

    O art. 20 da Lei nº 6.001/73, embora com grave vício de inconstitucionalidade, previa que em caráter excepcional a União poderia intervir, se não houvesse solução alternativa, em área indígena, por decreto do Presidente da República. 

    A intervenção a que se referia o art. 20 do Estatuto do Índio, já que esse dispositivo não foi recepcionado pelo texto constitucional de 1988, poderia ser decretada, dentre outras hipóteses, “para a realização de obras públicas que interessam ao desenvolvimento nacional” e para “a exploração de riquezas do subsolo de relevante interesse para a segurança e o desenvolvimento nacional”. 

    Ocorre que no caso de Caeiras Velhas, a Presidência da República sequer utilizou esse dispositivo inconstitucional. A União preferiu concedera autorização à Petrobrás, como se o tratamento dispensado às terras indígenas fosse de uma área pública da União, sem qualquer destinação constitucionalmente específica. 

    Disso resulta que o Decreto 96.709/88 consiste em ato administrativo nulo, por atentar contra os direitos constitucionais dos índios Tupinikim à posse permanente e ao usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes na terra por eles ocupada. 

    Da mesma forma é o que ocorre na Terra Indígena Comboios. No caso inclusive com o agravante do Poder Público federal ter se preocupado em editar qualquer ato, por mais viciado que fosse. Agiu, por intermédio de uma de suas mais relevantes e importantes empresas, em completa desconsideração aos direitos possessórios dos índios Tupinikim, assegurados pela Constituição Federal de 1967/69 e pelo atual texto constitucional de 1988, que na espécie reproduziu as garantias constitucionais do ordenamento constitucional anterior. 

    Com efeito, a ocupação de cerca de 20 km de extensão, nos limites da terra indígena Comboios com o litoral do Estado do Espírito Santo constitui-se em ato ilícito, por atentar contra as garantias constitucionais da comunidade do Povo Tupinikim, na medida em que suprime dos índios a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes no solo do trecho de terra em que o gasoduto foi colocado a um metro e vinte centímetros de profundidade. 

    A única hipótese em que um gasoduto dessa natureza, poderia ser construído validamente numa terra tradicionalmente ocupada por índios seria quando fosse previsto em Lei Complementar, que disponha ser essa construção e a atividade correspondente, ato de relevante interesse da União, nos termos da exceção prevista no § 6º do art. 231 da Constituição Federal. 

    Como essa Lei Complementar não existe, mesmo porque seu projeto tramita na Câmara dos Deputados de forma extremamente morosa, não obstante já ter sido aprovado pelo Senado Federal, cuja Mesa Diretora teve a iniciativa de apresentar esse projeto de lei complementar, não existe a menor possibilidade de um gasoduto da Petrobrás ser construído ou mantido numa terra indígena sem que o texto constitucional seja violentado. 

    III. Conclusão

    Do exposto, conclui-se que o gasoduto construído e instalado nas terras indígenas de Comboios e Caeiras Velhas representa um ato ilícito da Petrobrás, por limitar a posse permanente e constranger o usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes no solo dessas terras pelos índios que as ocupam tradicionalmente. 

    Em razão dessa ilicitude, por violação constitucional:

    1.       o gasoduto deve ser retirado das terras indígenas de Comboios e de Caeiras Velhas, por iniciativa da Petrobrás ou em razão de determinação judicial, em ação judicial do Ministério Público Federal, das próprias Comunidades Indígenas, já que os direitos indígenas sobre suas terras, nos termos do que estabelece o § 4º do art. 231 da CF, não está prescrito;

    2.       a Petrobrás deverá indenizar as comunidades indígenas de Comboios e de Caeiras Velhas, pelos danos causados pelo uso indevido de trecho de suas terras,pelo prazo de 21 anos.

    S.M.J.

    Santa Cruz – ES, 01 de Fevereiro de 2004

    Paulo Machado Guimarães
    Advogado inscrito na OAB-DF sob o nº 5.358
    Assessor Jurídico do Conselho Indigenista Missionário – CIMI

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  • 20/06/2004

    Terras para a Aldeia Kondá – Considerações Jurídico-Legais sobre o caso das famílias Kaingang residentes na cidade de Chapecó – SC, por Rosane Lacerda

    I – Introdução;

    II – Colocação do problema;

    II.1) situação das famílias identificadas;

    II.2) causas da migração para Chapecó;

    II.3) territorialidade Kaingang;

    II.4) reivindicações dos três grupos familiares;

    III – Perspectivas identificadas pelo GT quanto à Aldeia Kondá;

    IV – Proteção constitucional aos bens indígenas:

    IV.1) especificidades culturais ;

    IV.2) direitos territoriais.

    IV.2.1) tipologia das terras indígenas;

    IV.2.2) procedimentos demarcatórios.

    V – Possibilidades de encaminhamento.

    VI.1)  proteção aos direitos étnicos específicos.

    IV.2) proteção aos direitos territoriais.

    VI – conclusões.


    I – Introdução.

    O presente trabalho foi desenvolvido a partir de solicitação do Grupo de Trabalho (GT) constituído pela Portaria n.º 110, de 09 de fevereiro de 1998, da Presidência da Fundação Nacional do Índio – Funai / Ministério da Justiça.

    Coube ao referido GT[i] a identificação histórico-antropológica das famílias Kaingang residentes no núcleo urbano do município de Chapecó, em Santa Catarina, trabalho este que resultou no Relatório circunstanciado de identificação intitulado “Os Kaingang de Chapecó. Alteridade, Historicidade, Territorialidade”, datado de março de 1998.

    Na parte “IV – APONTAMENTOS FINAIS” do referido Relatório, sugere o GT, “dada a complexidade do caso”, o suporte de uma consultoria jurídico-indigenista ,

    “a fim de orientar o encaminhamento do processo dentro dos dispositivos legais nos quais se enquadra este caso específico”.  (p.113)

    Procuramos aqui atender a este objetivo, considerando inicialmente os aspectos fáticos  delineados no Relatório do GT.  Observaremos posteriormente os parâmetros constitucionais e infra-constitucionais referentes à situação territorial indígena no país e, por último, sugestões quanto aos possíveis desdobramentos jurídicos.


    II – Colocação do problema.

    Elencaremos aqui os aspectos que nos parecem centrais sobre o caso em tela, a partir dos dados fornecidos pelo laudo de identificação elaborado pelo GT.

    II.1) Situação das Famílias Identificadas.

    Em seu levantamento, este identificou, residindo na cidade de Chapecó, uma população de 212 Kaingang, distribuídos em 64 famílias, que formam “um grupo mais ou menos extenso de parentesco”. Os locais onde se encontram constituem-se em emã – residências fixas (p. 05).

    Destes 212 Kaingang, a pesquisa identificou que mais de a metade, ou seja 113 indivíduos (53,13% do total) nasceu na própria cidade de Chapecó (p. 05), e que os demais são provenientes de duas áreas indígenas localizadas no vizinho estado do Rio Grande do Sul: Nonoai    53 indivíduos (67,94%)  e Votouro –  16 (20,51%) (p. 06).

    De forma particular, o Relatório do GT chama a atenção para o fato de que destes 212 Kaingang, 84 (39,62%) são crianças, na faixa de zero a nove anos de idade (p. 06).

    Quanto à distribuição espacial das famílias indígenas na cidade, o GT identificou três pontos de localização: os bairros Tiago, Palmital e São Pedro (p. 07); o primeiro com 04 famílias (23 pessoas), em 04 barracas; o segundo – Aldeia Kondá, com 54 famílias (154 pessoas), em 24 barracas; e o terceiro com 06 famílias (35 pessoas) na favela próxima ao CAIC e famílias dispersas, que não puderam ser contabilizadas (p. 08).

    Segundo se depreende do Relatório, a existência dos “acampamentos” Kaingang em terrenos baldios da cidade sempre foi objeto de grandes protestos por parte dos moradores locais, com forte ressonância através da imprensa.

    Com isso, a política do órgão indigenista oficial para o caso, e de acordo com pressões da administração municipal, sempre foi a de recolhimento das famílias e sua “devolução” para as áreas indígenas mais próximas. O procedimento, no entanto, nunca logrou êxito. A Funai “levava os índios de volta para Nonoai, mas estes em pouco tempo retornavam.”(p. 08)

    Com o auxílio de servidor da ADR de Chapecó (p. 08), o GT pode resumir um pouco da trajetória desta população, de acordo com as providências adotadas pelo órgão indigenista oficial:

    A Funai por diversas vezes fez o transporte desses grupos para a AI Nonoai e para  o Chimbangue. Apesar da decisão ter sido tomada depois de reuniões com as lideranças indígenas, Sebastião lembra que ‘o pessoal de Nonoai reclamou’ uma vez que nem todas as famílias eram originárias de lá.”

    “Quando levaram as famílias para o Chimbangue a Funai deu garantia de alimentação mas ‘o recurso acabou  e a maioria das famílias retornou para a cidade”.

    Nos anos 80 as famílias foram mandadas de Nonoai para o Chimbangue; e do Chimbangue para a cidade quando houve um conflito no Chimbangue. Na cidade, acamparam durante meses em frente à ADR de Chapecó.”

    “(Nos anos 80) A imprensa, segundo ele (o servidor), ‘bateu pesado em cima da Funai, para retirar os índios da cidade e colocá-los no Chimbangue’. Sebastião lembra que a maioria das famílias era de Nonoai, que na época enfrentava problemas internos de ordem política, envolvendo contrato de retirada de madeira.” (p. 9) (Grifei.)

    Esta concepção de solução do “problema” Kaingang através da remoção dos índios continua vigente ainda hoje, a exemplo de pronunciamento do jornalista Jocenir Sérgio Santanna, na coluna “Tribuna”, do jornal Diário do Iguaçu (Chapecó, 04 de abril de 1997), cuja citação, feita no Relatório do GT, transcrevemos parcialmente:

    “… A Funai garante que está tentando fazer com que os índios sejam removidos para as suas respectivas tribos, mas enquanto uns vão, voltam outros.” (p. 02) (Grifei.) 

    Contudo, apesar de se pensar (pelo menos alguns setores) numa solução via remoção, parece estar presente, paradoxalmente, ser esta uma medida inócua, dado que “enquanto uns vão, voltam outros”.

    II.2) Causas da migração para a Chapecó.

    Este constante retorno dos índios à cidade de Chapecó encontra-se, como demonstra o Relatório, associado à própria motivação de sua saída das áreas indígenas e migração para aquele local. Conforme identificou o GT,

    “… os Kaingang que vivem na cidade não saíram das A.I.s ‘espontaneamente’ (Funai, 9/1/87) …. Muito ao contrário, (…) esta análise mostrou que os índios vêm sendo expulsos das A.I.s pelo conjunto das condições a que são submetidos lá. De qualquer forma, as saídas se caracterizaram  como diferentes formas de fuga das péssimas condições nas A.I.s. Se na cidade enfrentam problemas graves – preconceito, riscos de atropelamento e outros – nas A.I.s, as condições são piores. A saída das A.I.s ocorre para não serem transformados em objeto de exploração permanente – (…) ” (p. 109 – 110) (Grifei.) 

    Este “conjunto de condições” apontado pelo relatório do GT como causa da fuga Kaingang das áreas indígenas, creio poder ser resumido nos seguintes pontos:

    a) O modelo histórico de aldeamento implementado através do confinamento compulsório de grupos diversos  e etnicamente diferenciados – inclusive  rivais,  num  mesmo espaço territorial.

    Informa o Relatório que Nonoai – da qual é egressa a maioria dos Kaingang residentes em Chapecó nascidos no interior de áreas indígenas[ii] – , tem sua origem  sob este fundamento:

    “…foi criada para ser um centro de reunião de todos os grupos da região (Moreira Neto, 1971:396 apud Becker, 1976:70-71). Ao grupo comandado por Nonoai foi compulsoriamente integrado um outro (também Kaingang) das proximidades de Passo Fundo…,”  “Nesta mesma época  (1861/62) foram incluídos índios Guarani, reconhecidamente inimigos dos Kaingang desde tempos imemoriais.” (p. 22) (Grifei.)

    b) A instrumentalização – pelos representantes da sociedade nacional envolvente (não-índios) em benefício da consolidação da conquista territorial – ,  das rivalidades tradicionais entre os diversos grupos Kaingang, multiplicando os faccionalismos e gerando novas cisões internas (pp. 19-22).

    As condições para esta instrumentalização estariam dadas, entre outros fatores, pelo próprio modelo de confinamento de grupos diferenciados num mesmo espaço territorial. Assim, diante da presença dos demais, entre os quais alguns inimigos históricos, ocorreu que:

    “Cada grupo capitaneado por seu cacique passou a gestionar, nas estruturas oficiais do indigenismo, vantagens materiais e políticas para seu grupo, em detrimento dos  demais,  e as disputas internas geraram problemas hoje muito difíceis…”  O entrecruzamento de diferentes facções indígenas, separadas por interesses opostos, alianças das facções que se alternam na estrutura indigenista local e regional, estão hoje no centro dos conflitos que dividem as  AIs.” (p. 23) (Grifei.) 

    c) “situações de desigualdade e constrangimento que ocorrem nas AIs” tanto por parte dos agentes governamentais encarregados da proteção às populações indígenas, quanto por parte das próprias lideranças indígenas para tanto apoiadas pelos primeiros (p.19).

    Entre estas situações constrangedoras às quais os índios foram submetidos no interior das áreas, o relatório aponta para o sistema de cativeiro ou panelão (p. 23) – trabalho compulsório dos homens nas roças coletivas ou “do posto” (anos 60 deste século). O sistema continuou a ser praticado nas décadas de 70 e 80, em Votouro – área de onde é egressa outra parcela (20,51%)  da população Kaingang residente em Chapecó. Forçados ao trabalho, os índios não teriam obtido qualquer retorno, tendo sido parte da produção, apropriada  pelos chefes de posto e parte enviada à Funai (p. 23), a título de “Renda Indígena”[iii]. Informa ainda que segundo Simonian (1994:20), “atos de rebeldia eram punidos com a cadeia, em condições desumanas. ” (p.23-24)

    Em seu relatório, o GT conseguiu identificar ainda outras formas constrangedoras de tratamento aos índios no interior das áreas, como resultante da referida instrumentalização dos faccionalismos tradicionais:

    “…a presença do tronco e/ou da cadeia nas AIs kaingang; a transferência – de uma AI para outra – imposta pela chefia de Posto, cacique e grupo paramilitar de apoio; e a exclusão das famílias dos serviços de assistência a que têm direito – assistência técnica, sementes, serviços médicos e remédios, remoção de doentes para hospitais. (p. 24)  (Grifei.) 

    d) A redução dos espaços territoriais, trazendo o agravamento das dificuldades para a reprodução demográfica, econômica e étnico-cultural, com conseqüentes agravamentos das disputas internas.

    Ambas as áreas de onde os Kaingang do caso em tela são provenientes (Nonoai e Votouro), assim como as demais, sofreram escandalosas reduções em suas superfícies. Segundo o relatório do GT, Nonoai foi reduzida de 34.900 ha (1848), para 14.910 ha (1962), enquanto que Votouro foi reduzida de 31.000 ha (1850), para 3.053 ha (1918), e depois para 1.440 (1962). Com o passar dos anos, a redução da superfície das áreas foi inversamente proporcional  ao crescimento demográfico local. O GT chama a atenção para  que:

    “se usarmos o mesmo critério – do branco – , os Kaingang de Votouro poderiam reivindicar mais que a triplicação de sua  A.I.” 

    O que ocorre é que, muito ao contrário do cantado e decantado discurso da existência de “muita terra para pouco índio” a realidade comprova que  as superfícies atuais das áreas indígenas são extremamente insuficientes para garantir  a continuidade da existência dos Kaingang enquanto identidade étnica diferenciada, mas seria insuficiente até mesmo  segundo critérios puramente de produção econômica.

    e) O esgotamento das riquezas naturais nas áreas indígenas, levando à sobrevivência em meio a condições de extrema miserabilidade.

    A situação resulta, em primeiro lugar, da submissão dos índios ao confinamento, à imposição de sua transformação em “pequenos agricultores sedentários[iv] nas reservas, em abandono ao modelo tradicional de perambulação em busca de caça e coleta. Resulta, em segundo lugar, da adoção de práticas econômicas ambientalmente  predatórias e socialmente perversas. Como diz o GT em seu relatório,

    “A década de 60 marca o início da destruição dos pinhais nas AIs, impulsionada nos anos 70 com a instalação de serrarias dentro das reservas, com o argumento de que a madeira serviria para a construção de casas para os índios. Os índios são unânimes em afirmar que não houve esse retorno social.” (p.24) 

    Em conseqüência, tem-se nas áreas um quadro sério de escassez  alimentar.

    É portanto como fuga a todas essas situações de conflito e exclusão, que o GT identifica a  causa da evasão das famílias Kaingang das áreas indígenas (notadamente Nonoai e Votouro) para a cidade de Chapecó. Diante de tais condições os índios fogem,

    “… para não serem transformados em objeto de exploração permanente – daí a grande preocupação dos velhos e adultos com o futuro das crianças -, e para que seus descendentes possam viver como Kaingang.” (p. 110) 

    Isso explica também, em parte, o fracasso  das operações de transferência compulsória dos índios da cidade para as áreas indígenas.

    Além disso, o GT identificou também o equívoco de se  considerar estes índios como “desaldeados” e  “desarraigados”.  Muito pelo contrário, o deslocamento foi feito por famílias, e na cidade têm se organizado em torno de famílias extensas.  As famílias residentes no Bairro Palmital, por exemplo, denominam-se como Aldeia Kondá, como identificação de um ancestral e líder comum, o Cacique Kondá, que no século passado estabeleceu um acordo de paz com os colonizadores brancos….

    II.3) Territorialidade Kaingang.

    O Relatório do GT registra ainda dois fatores de extrema importância para a compreensão do fenômeno da migração destas famílias Kaingang para a cidade de Chapecó.

    O primeiro refere-se à manutenção da consciência, entre os Kaingang de um modo geral, acerca de um espaço territorial próprio, que não se cinge às fronteiras estabelecidas pelo invasor não-indígena através das chamadas reservas ou aldeamentos.

    A prática do wãre[v], por exemplo, seria uma explicitação clara da manutenção desta territorialidade.

    O segundo, e que diz respeito mais especificamente às famílias da Aldeia Kondá, do bairro Palmital, refere-se à sua vinculação histórica com a própria fundação da cidade de Chapecó, afora a própria inserção desta naquele espaço territorial. 

    Conforme levantou o GT,  estas famílias descendem justamente do casal fundador da cidade de  Chapecó, o mineiro José Raymundo Fortes – chegado ao local entre 1838/1839, e a Kaingang Ana Maria de Jesus. Tratando-se esta de filha do Cacique, chamado Gregório, o casamento teria possibilitado uma espécie de acordo de paz (p. 75) entre os Kaingang  ali encontrados e a expedição à qual pertencia Raymundo Fortes, ocasionando ainda uma série de casamentos entre indígenas do local e não-indígenas recém chegados.

    Isto possibilitou a que em seguida, o mineiro abrisse uma clareira no local (“a primeira clareira no sertão”), vindo a denominá-lo de “Campina do Gregório”[vi], em alusão ao sogro, cacique dos Kaingang ali encontrados.

    Na seqüência, o GT relata que:

     “Até findar o século passado ainda existia um (toldo) situado no lugar onde está assentada a cidade, sede do município, o que constitui a origem de sua denominação: Passo dos Índios, e que vigorou  até o ano de 1938, sendo substituído pela denominação  Chapecó … (Antônio Selistre de Campos, 1950 – Juiz de Direito da comarca de Chapecó).” (p.80) 

    O referido Grupo de Trabalho teve inclusive a oportunidade de tomar depoimentos de pessoas mais idosas, que informaram tratar-se o local onde se encontra atualmente a área urbana de Chapecó, em área tradicional de caça e coleta dos Kaingang, e que “nunca deixou de ser explorada pelos índios” (p. 10).

    “A concepção de território Kaingang apresenta uma dimensão sócio-político-cosmológica mais ampla do que para o branco: é onde estão enterrados os seus mortos e onde pretendem enterrar os seus umbigos; é onde habitam os espíritos de seus ancestrais e outros seres sobrenaturais; é o espaço onde se encontram o passado e o presente, ou melhor, onde se unem os tempos mítico e histórico (Tommasino, 1996). Apesar de todas as mudanças, Chapecó faz parte da memória coletiva como espaço onde viveram, morreram e foram enterrados os seus avós e hoje está incorporada como parte do seu modo de vida. Por isso, território o qual ultrapassa qualquer delimitação feita pelo branco.” (p. 110) (Grifamos.) 

    Por isto tudo, a migração para a cidade de Chapecó significa também que:

    “ Os Kaingang se encontram organizados, reivindicando o direito à terra que seus ancestrais ocuparam no passado.” (p. 79) 

    Assim, a circunstância histórica da criação (e consolidação) da cidade de Chapecó não foi suficiente para fazer desaparecer, entre os Kaingang, a sua visão de pertença daquele local ao espaço territorial indígena.  Em outras palavras, apesar de as terras onde hoje se assenta a cidade  terem se configurado enquanto espaço urbano,  voltado para o atendimento das necessidades dos seus novos ocupantes  (os cidadãos Chapecoenses), o modo Kaingang  de ver o local – como parte de seu território, sofreu alterações, mas não desapareceu.

    II. 4) Reivindicações dos três grupos familiares.

    Apesar dos aspectos comuns relativos à motivação da migração das famílias Kaingang para a cidade de Chapecó, o GT identificou distintas expectativas de futuro, pelo menos a curto prazo, entre os três grupos lá residentes:

    No caso das famílias da Aldeia Kondá (bairro Palmital), constatou-se  reivindicarem

    “… uma terra para onde possam se mudar, desde que ela contenha dimensões e qualidades suficientes para uma vida melhor, para viverem de acordo com os costumes, para não serem explorados como nas AIs.” (p.112)

    Quanto à aldeia do bairro Tiago foram identificadas duas posições distintas:

      uma, expressa pelas famílias de Júlio da Silva e de Batista Garcia, consistente no

    “… interesse em morar nessa nova terra com as famílias da aldeia Kondá, até porque fazem parte da mesma rede de parentesco e afinidade.” (p.112) 

    – a outra, das famílias de Edemar Floriano e Geraldino Sales, a respeito da qual  aponta-se unicamente  a falta de desejo de aderirem ao grupo da Aldeia Kondá. (p.112) 

    Sobre o terceiro grupo, das famílias que vivem esparsas no bairro São Pedro e adjacências, o relatório menciona apenas que 

    “…desconhecem a reivindicação de uma terra por parte das famílias que vivem na Aldeia Kondá, apesar da pesquisa ter mostrado que há  pessoas da família dos Fortes[vii] vivendo naquele bairro…” (p. 112) 

    Diante disso, o GT coloca a necessidade de esforços no sentido de atendimento à reivindicação da Aldeia Kondá e parte das famílias do bairro Tiago, ou seja, de uma terra para viverem de acordo com os costumes Kaingang.

    Entretanto, alerta para que, uma vez atendida esta reivindicação,

    “… este processo não deverá ter o caráter de uma ‘limpeza étnica’ – o que parece estar na cabeça de algumas autoridades e cidadãos chapecoenses.” (p. 112) 

    Ou seja, não poderá constituir, de forma alguma, na legitimação do “repatriamento” das outras famílias para o interior das áreas indígenas, sob pena de se incorrer nos mesmos erros até então perpetrados, e de, ao mesmo tempo, não se solucionar o “problema” da presença indígena na cidade.


    III – Perspectivas identificadas pelo GT quanto à Aldeia Kondá.

    O relatório do GT deixa extremamente claro que, se por um lado não é viável o retorno das famílias Kaingang às áreas indígenas, por outro lado a vida na cidade – para onde migraram, não consiste numa aspiração em termos de futuro  (pelo menos no caso da Aldeia Kondá), uma vez que a cidade:

    “…não oferece as condições básicas (territoriais, naturais e sociais) para reproduzirem uma vida digna, isto é, de acordo com a sua especificidade cultural.” (p.109) 

    Quanto ao que as famílias da Aldeia Kondá reivindicam, podemos sistematizar os seguintes aspectos identificados pelo GT:

    a) que lhes seja garantida uma terra “fora da cidade” (p.110), para onde possam transferir o seu “emã”:

    “… uma terra onde possam viver melhor, onde possam manter a sua especificidade sociocultural, querem criar seus filhos em lugar mais seguro e onde haja matas e espaço suficiente para os de hoje e os de amanhã …” (p. 13)

    “Querem um emã numa área que tenha espaço para cultivo, matas e água natural. Esse espaço deve comportar as gerações de hoje e do futuro porque a população está crescendo, fato natural que os brancos não consideraram quando delimitaram as AIs e por isso as AIs estão ‘lotadas’  e as terras devastadas e degradadas.” (p. 110)

    b) ao mesmo tempo, os Kaingang da Aldeia Kondá querem que esta terra (fora da cidade) seja, ao mesmo tempo,  próxima à cidade de Chapecó uma vez que “não estão abdicando do espaço social urbanizado”. Reivindicam o direito a “continuar utilizando seus equipamentos públicos  e como mercado para seu artesanato”; querem  continuar vendendo seu artesanato na cidade de Chapecó” (p. 03) que, conclui o GT,

    “… é hoje  o centro de seu território atual de subsistência e se constitui como o equivalente lógico do espaço de caça e coleta transformado historicamente.” (p.110)  (Grifei) 

    Isto posto, passemos a levantar, nos próximos tópicos, de que forma o caso pode ser analisado do ponto de vista jurídico-legal, ou, mais especificamente, à luz do Direito Indigenista.


    IV – Proteção Constitucional aos Bens Indígenas:

    IV. 1)  Especificidades Culturais.

    Com o intuito de resgatar parte de uma enorme dívida histórica para com os povos indígenas, o Constituinte Originário de 1988, fez reconhecer o que durante estes 500 anos de contato foi sistematicamente negado: a existência de organização social e valores culturais próprios dessas populações.

    Assim, o caput do art. 231 da Constituição Federal de 1988 reconhece a existência desses elementos sócio-culturais próprios e diferenciados, que passam então a ser percebidos como bens imateriais destes povos. Ao  mesmo tempo, determina expressamente à União Federal o dever de cuidar de sua proteção e respeito, abolindo completamente a perspectiva anterior de “incorporação à comunhão nacional[viii]”:

     “Art. 231 – São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, (…), competindo à União …, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”  (Grifei.) 

    Portanto, tem-se em primeiro plano que a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, de cada um dos povos indígenas, constituem-se em bens a serem protegidos pela União Federal.

    Trata-se de uma proteção especial, que não poderia deixar de ser em razão da extrema vulnerabilidade dos grupos étnicos indígenas existentes no País, que sempre foram tratados de forma dominadora  e extremamente desrespeitosa durante todo o processo de contato. Com estes reconhecimentos, o Estado Brasileiro passa a enxergar a si próprio como multiétnico e pluricultural.

    Seguindo o princípio da Unicidade da Constituição, todo o texto Constitucional de 1988, no que se refere às populações indígenas do País é guiado no sentido do estabelecimento de condições que garantam a continuidade da sua existência, não só física como étnico-cultural.

    Analisando os princípios norteadores do Direito Indigenista Brasileiro, o Procurador da República Paulo de Bessa Antunes (1998 : 140) esclarece que

    “O significado profundo do princípio jurídico ora expresso é o de assegurar o reconhecimento, o mais amplo possível, ao direito à alteridade, isto é, ao direito de ser diferente. O direito à diferença possui uma radicalidade, uma força tão poderosa que, sem dúvida alguma, é a principal dificuldade no relacionamento entre os povos civilizados e os povos aborígenes. A aceitação da diferença implica em que a nossa cultura não é a única forma de cultura válida. Tal concepção, como é óbvio, é geradora de insegurança para aqueles que se imaginam como centro e razão de ser do universo.”  (Grifei.) 

    A importância deste direito à diferença e a responsabilidade do Poder Público Federal  no tocante à sua proteção são tão fundamentais para a sobrevivência dos povos indígenas, que se fez constar no Programa Nacional de Direitos Humanos (1996:31),  e tendo no rol das medidas de curto prazo, a formulação e implementação de

    “políticas de proteção e promoção dos direitos das populações indígenas, em substituição a políticas assimilacionistas e assistencialistas.”  (Grifei.) 

    IV. 2) Direitos Territoriais.

    IV.2.1) Tipologia das Terras Indígenas.

    Como vimos anteriormente, o Constituinte de 1988 procurou resgatar parte de uma dívida histórica de 500 anos com os povos indígenas, reconhecendo e determinando a proteção especial da União à diversidade étnico-cultural formada pela organização social, costumes, línguas, crenças e tradições daqueles povos.

    Ao mesmo tempo, procurou resgatar também outra parcela da mesma dívida, reconhecendo aos povos indígenas, direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam (CF/88, art. 231, caput), significando isto, segundo Celso R. Bastos (1992:13), que

    "…a posse indígena decorre de uma realidade que preexiste a qualquer ato civilizatório. É um direito originário, congênito, independente de legitimação. É o indigenato"      (Grifei.) 

    Ou seja, a Constituição Federal resgata o  instituto do INDIGENATO, o qual, como informa o Constitucionalista José Afonso da Silva (1990:718), consiste em

    “… velha e tradicional instituição jurídica luso-brasileira que deita suas raízes já nos primeiros tempos da Colônia, quando o Alvará de 1.° de abril de 1680, confirmado pela Lei de 6 de junho de 1755, firmara o princípio de que, as terras outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas.” 

    A fim de dirimir quaisquer dúvidas e prevenir contra manipulações interpretativas, o próprio texto constitucional cuidou de  definir em que consistiria este tipo reconhecido de terra indígena, como  aquela que reuniria quatro elementos distintos e complementares: habitação em caráter permanente; utilização para atividades produtivas; imprescindibilidade à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar; e necessidade para sua reprodução física e cultural (CF/88, art. 231, § 1.º). Tudo isto mensurável não de acordo com a lógica civil ou economicista reinante em nossa sociedade, mas de acordo com os usos, costumes e tradições indígenas, ou seja, a partir do seu ponto de vista.

    Como diz ainda Afonso da Silva (1990:720),

    "O tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra (…). Daí dizer-se que tudo se realize segundo seus usos, costumes e tradições." (Grifei.) 

    Apesar de sua importância, as terras tradicionalmente ocupadas não consistem em tipo único disposto pelo ordenamento jurídico brasileiro, no que se refere aos povos indígenas. A Lei n.º 6.001, de 19 de dezembro de 1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio, prevê ainda outros dois tipos de terras indígenas: 

    “Art. 17. Reputam-se terras indígenas:

    I – …[ix]

    II – as áreas reservadas de que trata o Capítulo III deste Título;

    III – as terras de domínio das comunidades indígenas ou de silvícolas.”    (Grifei) 

    A definição e o tratamento das áreas reservadas encontram-se dispostos no artigo 26 do mesmo diploma legal, como se vê:

    “Art. 26 – A União poderá estabelecer, em qualquer parte do território nacional, áreas destinadas à posse e ocupação pelos índios, onde possam viver e obter meios de subsistência, com direito ao usufruto e utilização das riquezas naturais dos bens nelas existentes, respeitadas as restrições legais.

    Parágrafo único. As áreas reservadas na forma deste artigo não se confundem com as de posse imemorial das tribos indígenas, …”  (Grifei.) 

    Ou seja, trata-se de áreas sobre as quais as comunidades indígenas não possuem nenhuma relação de ocupação tradicional, mas são destinadas à posse e ocupação indígena através de ato constitutivo do poder público federal. Diferem portanto das de ocupação tradicional em razão de que, enquanto naquelas os direitos de posse e usufruto são originários e portanto objeto de simples reconhecimento, nestas dependem de criação por ato formal da autoridade competente. 

    A Lei n.º 6.001/73 estabelece ainda a divisão das áreas reservadas em quatro modalidades distintas: reservas, parques, colônias agrícolas, e territórios federais indígenas:

    “Art. 27 – Reserva indígena é uma área destinada a servir de habitat a grupo indígena, com os meios suficientes à sua subsistência.

    Art. 28 – Parque Indígena é a área contida em terra na posse de índios, cujo grau de integração permita assistência econômica, educacional e sanitária dos órgãos da União, em que se preservem as reservas de flora e fauna e as belezas naturais da região.

    Art. 29 –  Colônia agrícola indígena é a área destinada à exploração agropecuária, administrada pelo órgão de assistência ao índio, onde convivam tribos aculturadas e membros da comunidade nacional.

    Art. 30 –  Território Federal indígena é a unidade administrativa subordinada à União, instituída em região na qual pelo menos um terço da população seja formado por índios.” (Grifei.) 

    Das quatro modalidades só se tem registro, até o momento, de casos de  constituição de Reservas e de Parques Indígenas, mais comumente utilizados no período anterior ao advento da Constituição Federal de 1988. Após a sua promulgação, consagrando o reconhecimento aos direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas, a criação dos Parques foi abolida, encaminhando-se a demarcação das áreas enquanto aquele tipo constitucionalmente definido.

    As Reservas, no entanto, continuam ainda passíveis de constituição, mas em casos restritos,  onde a terra tradicionalmente ocupada seja comprovadamente inexistente.   

    Há que se registrar por último a previsão do Estatuto do Índio quanto às terras dominiais, consistentes naquelas cuja propriedade pertence à comunidade ou ao indígena individualmente considerado, diferentemente das demais cuja propriedade pertence à União Federal:

    “Art. 32 –  São de propriedade plena do índio ou da comunidade indígena, conforme o caso, as  terras havidas por qualquer das formas de aquisição do domínio, nos termos da legislação civil.” 

    É importante observar que tanto as áreas reservadas (entre elas as Reservas Indígenas) quanto as dominiais, ambas relacionadas como “terras indígenas”, ficam sujeitas a algumas vedações opostas pela Lei n.º 6.001/73 contra a possibilidade histórica de esbulho, como se vê nos dispositivos abaixo transcritos:

    “Art. 18 – As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade indígena ou pelos silvícolas.

    § 1.º – Nessas áreas, é vedada a qualquer pessoa estranha  a prática da caça, da pesca ou coleta de frutos assim como de atividade agropecuária ou extrativa” ;

    (…)

    “Art. 38. – As terras indígenas são inusucapíveis e sobre elas não poderá recair desapropriação …” (Grifei) 

    Portanto, a exemplo das terras tradicionalmente ocupadas (mas guardadas as diferenças de ordem constitucional), as áreas reservadas e as dominiais também encontram-se sujeitas à proteção do poder público, através de algumas vedações legais.

    IV.2.2) Procedimentos Demarcatórios.

    Conforme determina a Constituição Federal de 1988 (art. 231, caput), cabe à União Federal o dever[x] de demarcar as terras indígenas tradicionalmente ocupadas, imperatividade que visa, em última instância, garantir a proteção fundamental à continuidade da existência daqueles grupos étnicos.

    Segundo os termos do Estatuto do Índio, de 1973, a forma pela qual deve ser processada a demarcação  deve estar prevista em decreto:

    “Art. 19 – As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo.” 

    Dispõe atualmente sobre a matéria o Decreto n.º 1.775, de 08 de janeiro de 1996, que seguindo neste ponto a lógica de regulamentações anteriores[xi], dispõe sobre a necessidade de o procedimento ser iniciado através  da identificação da  natureza jurídico-antropológica da terra objeto do estudo, bem como do levantamento dos imóveis porventura incidentes na mesma:

    “O órgão federal de assistência ao índio designará grupo técnico especializado, composto preferencialmente por servidores do  próprio quadro funcional, coordenado por antropólogo, com a finalidade de realizar estudos complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação.” (Dec. n.º 1.775/96, art. 2.º, § 1.°) 

    A finalidade do estudo é não apenas o de confirmar a natureza jurídico-antropológica da área estudada (de  sua configuração ou não como tradicionalmente ocupada), mas também, e sobretudo, de reunir todos os elementos de comprovação desta natureza, que devem nortear a ação da administração pública.

    Isto é de fundamental importância, pois só estando descartada, mediante este estudo,  a caracterização tradicional da ocupação indígena, é que se  pode dar à área reivindicada pelas comunidades indígenas, encaminhamento diverso, ou seja, conforme os demais tipos previstos no Estatuto do Índio (como área reservada ou como dominial indígena).


    V – Possibilidades de encaminhamento.

    V. 1) Proteção aos Direitos Étnicos Específicos.

    No que se refere às famílias Kaingang do caso em tela, o relatório do GT não deixa dúvidas quanto ao enorme esforço e criatividade que desenvolvem no sentido de poderem viver, mesmo dentro do espaço urbano, de acordo com o seu modo de vida tradicional. Neste sentido, informa o Relatório que os três grupos pesquisados na cidade de Chapecó desenvolvem:

    “… a estruturação de uma rede social que preserva os mesmos princípios estruturadores da territorialidade kaingang: ao local de residência fixa – a cidade – agregam-se dezenas de outros locais (morada dos parentes, locais de venda de artesanato, centros religiosos, etc.), revelando o amplo espaço de mobilidade e (re) territorialização dos Kaingang atuais.” (p. 28) (Grifei.) 

    Também a prática dos acampamentos provisórios, relacionada como mecanismo de obtenção de fonte de renda através da venda de artesanato,  cumpre importante função na manutenção dos costumes e tradições Kaingang:

    “No período em que ficam fora – semanas ou meses – acampam na beira das rodovias ou na periferia das cidades. Logo, estabelecem um wãre[xii]. Geralmente saem em pequenos grupos que incluem adultos e crianças.” (p. 28) (Grifei.) 

    Ilustrando com dados trazidos pelo trabalho de Tommasino (1995 :15), o GT informa que a prática dos acampamentos é observada em muitos outros grupos da mesma etnia, que

    “acampam na cidade (Londrina – PR) de forma organizada, recriando na cidade um espaço Kaingang.” 

    Não só em razão das necessidades de sobrevivência e de uma “vida melhor”, é que deixaram as áreas indígenas de origem. O fizeram também na busca de espaços próprios que lhes assegurassem o exercício de uma liberdade, de uma autonomia, frente às pressões desenvolvidas nas áreas pelos agentes governamentais e movimentos das facções rivais as quais, como vimos anteriormente, foram confinadas compulsória e indevidamente num mesmo espaço territorial.

    Esta autonomia figura como essencial para a manutenção da identidade étnico-cultural de tais famílias, e a busca pela sua conquista é expressa justamente pelo movimento de “fissão/migração” (p. 19), quando da ocorrência de situações-limite como as encontradas atualmente no interior das áreas indígenas.

    Todas estas especificidades sócio-culturais Kaingang, identificadas entre as famílias residentes na cidade de Chapecó, bem como o seu direito de autonomia, constituem em seus valiosos bens imateriais, e devem  ser alvo de proteção especial por parte do poder público federal, conforme determinação de princípio constitucional da mais alta relevância (“são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, … competindo à União, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”[xiii])

    Neste sentido, a hipótese  de “devolução” destas famílias às áreas indígenas (Nonoai, Votouro ou qualquer outra), ou o impedimento à prática dos wãre nas cidades

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  • 20/06/2004

    Análise da Proposta de Emenda à Constituição n.º 38, de 15/09/1999, por Cláudio Luiz Beirão

    1- Introdução:

    O senador Mozarildo Cavalcante (PFL/RR) apresentou proposta de emenda à Constituição Federal para adicionar ao art. 52 um inciso e alterar a redação dos artigos 225 e 231, passando o texto para a seguinte forma:

    "Art. 1º Adicione-se ao art. 52 da Constituição Federal o inciso XV, com a seguinte redação:(grifamos)

    "Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:

    ………………………………………………………….

    XV – aprovar o processo de demarcação das terras indígenas."

    Art. 2º O inciso III do art. 225 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

    "Art.225. ………………………………………………………………..

    III – definir, em todas as unidades da Federação, observados os limites fixados no art. 231, § 2º, territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;"

    Art. 3º O caput do art. 231 da Constituição Federal passa a vigora com a seguinte redação:

    "Art. 231. São reconhecidos aos índios a sua organização social, costumes. línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-la, proteger e fazer respeitar todos os seus bens, e ao Senado Federal aprovar o processo de demarcação."

    Art. 4º Adicione-se ao art. 231 da Constituição Federal o § 2º, com a seguinte redação, renumerando-se os demais:

    "§ 2º As áreas destinadas às terras indígenas e às unidades de conservação ambiental não poderão ultrapassar, conjuntamente, 30% (trinta por cento) da superfície de cada unidade da Federação."

    Art. 5º Esta Emenda entra em vigor na data de sua publicação.

    A proposta do parlamentar segue em duas medidas. A primeira é de limitar o tamanho dos territórios indígenas e das unidades de conservação de forma que não ultrapasse, conjuntamente, a um determinado percentual. Na proposta inicial este percentual era de 30 %, mas foi alterada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania – CCJ para 50%. Já a segunda medida proposta na PEC 38 é de que o Senado Federal passe a ter competência para aprovar as demarcações das terras indígenas.

    Na justificativa da PEC já se pode observar qual a verdadeira intenção do senador ao propor estas modificações na Constituição. Sob um argumento desenvolvimentista e de progresso o senador coloca como fator de impedimento de desenvolvimento dos estados, principalmente do Norte do País a existência destes dois institutos.

    No que diz respeito às terras indígenas o parlamentar argumenta que a União demarcou território com superfície desproporcional ao número de indígenas existentes. Além disso, o senador propõe que as demarcações sejam precedidas da oitiva dos representantes do Senado, por representarem os estados da federação naquela Casa.

    2- Análise da Proposta de Emenda Constitucional:

    I – Da inconstitucionalidade de limitação dos territórios indígenas

    A PEC 38 incorre em flagrantes inconstitucionalidades. A principal destas é a parte que limita o espaço físico das terras indígenas.

    A Constituição Federal reconhece que os povos indígenas têm direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam (posse permanente e usufruto exclusivo entre outros) e determina que a União às demarque. O conceito de terras indígenas está definido no próprio texto constitucional (§1º do art. 231): são aquelas habitadas pelos índios em caráter permanente; utilizadas para as suas atividades produtivas; imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar destes; e as necessárias à reprodução física e cultural dos índios.

    Não pode agora o legislador, como constituinte derivado, modificar este conceito impondo limites que a própria Constituição não admite. Terra indígena é considerada com tal não pela quantidade de pessoas que nela habitam, mas sim pelos quatro aspectos acima descritos determinados pelos usos, costumes e tradições de cada povo. A União ao definir e delimitar o tamanho de uma terra indígena tradicional deve levar em consideração este preceito constitucional.

    II – Da Alteração de Cláusula Pétrea

    Outra medida proposta pelo senador afeta ao princípio constitucional da separação dos Poderes do estado. A pretensão do senador de alterar o artigo 231 da CF interfere na atribuição do Poder Executivo de demarcar as terras indígenas.

    Como já referido anteriormente a Constituição determina que a União demarque as terras indígenas. É o Poder Executivo, através do órgão indigenista federal (Funai), quem realiza esta atividade que consiste em um procedimento administrativo com diversas etapas definidas em decreto presidencial. A Lei n.º 6.001/73 (Estatuto do Índio) estabelece no artigo 19 que:

    "As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo."

    Atualmente é o Decreto n.º 1.775, de janeiro de 1996 que dispõe sobre este procedimento. A fase final deste procedimento, previsto no decreto, é a homologação da demarcação pelo presidente da República. A mesma norma infra constitucional, acima citada, já orienta que este ato final é competência do Poder Executivo, a saber:

    Art. 19. (…)

    § 1º A demarcação promovida nos termos deste artigo, homologada pelo Presidente da República, será registrada em livro próprio do Serviço do Patrimônio da União (SPU) e do registro imobiliário da comarca da situação das terras.

    Com a proposta do parlamentar este ato declaratório do Presidente da República, sobre os limites de uma terra indígena, ficaria sob a aprovação de outro Poder da República.

    A proposta do Senador atingi a separação dos poderes, uma das cláusulas pétreas da Constituição Federal. Segundo dispõe o art. 60, § 4º "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:(…) a separação dos Poderes; (…)" . No mesmo sentido determina o inciso III, § 1º do artigo 354 do Regimento Interno do Senado Federal.

    Segundo ensina o jurista José Afonso, "Atribuir a qualquer do Poderes atribuições que a Constituição só outorga a outro importará tendência a abolir o princípio da separação dos Poderes". Ou seja, para considerar uma emenda inconstitucional não é necessário que esta expressamente declare a inconstitucionalidade, é suficiente demonstrar que esta tem tendência de fazer, mesmo que remotamente, com que um Poder realize atribuição exclusiva de outro. No caso em tela está demonstrado que a proposta de emenda a Constituição tende a afrontar o princípio constitucional da independência dos Poderes do Estado.

    3 – Conclusão:

    Portanto, no nosso entendimento a PEC n.º 38 não deveria ser objeto de deliberação do Senado Federal por tender a abolir Cláusula Pétrea. Não tendo sido este o entendimento da CCJ deverá esta PEC ser rejeitada pelo plenário do Senado Federal por trata de matéria que só pode ser objeto de modificação da Constituição Federal em Assembléia Nacional Constituinte.

    Brasília, setembro de 2002.

    Cláudio Luiz Beirão
    Assessor Jurídico

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  • 20/06/2004

    Parecer sobre o Projeto de Lei nº 2.604, de 2000, por Paulo Machado Guimarães

    I. Síntese do Projeto de Lei

    O PL 2.604, de 2000, de autoria do Deputado Federal Almir Sá, propõe o estabelecimento de normas disciplinadoras de um "procedimento administrativo especial de demarcação e de homologação de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios".

    Para tanto sugere o estabelecimento de:

    1. Princípios;
    2. Partes legitimadas para o início do procedimento administrativo;
    3. Requisitos de validade do requerimento de início do procedimento administrativo e relação de documentos que o devem acompanhar;
    4. Fixação de competência do INCRA para emitir parecer sobre o requerimento;
    5. Indicação de estudos que devem preceder ao requerimento da Funai e serem elaborados por Grupo de Trabalho;
    6. Garantia de participação dos Grupos Indígenas envolvidos;
    7. Previsão de auxílio do Grupo de Trabalho da Funai, por outros técnicos;
    8. Conclusão do Relatório de identificação e delimitação;
    9. Fase e prazo para instrução probatória decorrente do contraditório;
    10. Parecer do INCRA;
    11. Atribuições do Ministro da Justiça para audiência de outros órgãos governamentais;
    12. Hipóteses de decisão do Ministro da Justiça;
    13. Aprovação da demarcação pelo Congresso Nacional
    14. Competência do Presidente da República para homologar a demarcação;
    15. Registros no Cartório de Registro de Imóveis e no Serviço de Patrimônio da União, pelo INCRA;
    16. Ressalva de títulos imobiliários incidentes na terra indígena para discussão judicial;
    17. Notificação de ocupantes para desocupação da área;
    18. Exclusão de povoados, vilas ou cidades de demarcações como terra indígena;
    19. Garantia de acesso ao Poder Judiciário, para assegurar direitos dominiais;
    20. Aplicação do procedimento previsto no Projeto de Lei às demarcações já homologadas, mas sem registro no CRI e no SPU;
    21. Previsão de ratificação das demarcações já realizadas e homologadas.

    II. Preliminar de apensação para tramitação conjunta

    O PL 2604, de 2000, por dispor sobre matéria que já está sendo tratada nos PLs 2057/91, 2061/91 e 2619/92, bem como no Substitutivo aprovado na Comissão Especial que os apreciou, ou seja o procedimento administrativo para a demarcação de terra indígena, cumpre observar que de acordo com o disposto nos arts. 142 e 143-II, "b" do Regimento Interno da Câmara, esta nova proposição legislativa por tratar de matéria correlata aos Projetos acima indicados, deverá ser apensado a eles, para que passe a tramitar conjuntamente.

    III. Inconstitucionalidade do PL 2604, de 2000

    Ao adotar, no § 1º do seu art. 1º o princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa, inscritos no inciso LV do art. 5º da Constituição Federal, posteriormente materializado no seu art. 5º, cumpre anotar, sua inaplicabilidade e por isso sua inadequação ao procedimento administrativo para a demarcação de terra tradicionalmente ocupada por índios, na medida em que neste procedimento, não existe litigante e muito menos, qualquer cidadão é, nele acusado de qualquer coisa.

    Conforme pude analisar no texto "Proteção legal das terras indígenas":

    "O objeto da ação administrativa destinada à demarcação das terras indígenas, não é a solução de uma controvérsia, de um litígio previamente existente com a administração pública. O que se pretende é a explicitação dos limites de uma terra tradicionalmente ocupada por uma ou algumas comunidades indígenas e que por disposição constitucional integra os bens da União. naturais existentes no solo, nos rios e nos lagos (art. 231 § 2º da C.F.). Estas terras são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas, imprescritíveis (art.231 § 4º da C.F.)."

    A existência de algum conflito ou disputa pela posse da terra, de algum título imobiliário de fazendeiro ou empresa ocupando a área, constitui questão alheia à demarcação e juridicamente não repercute sobre o trabalho de identificação, delimitação e demarcação de um terra indígena.

    Os índios que tradicionalmente ocupam uma terra têm o direito constitucional à posse permanente e ao usufruto exclusivo das riquezas

    Não bastando a estipulação destes direitos o constituinte originário entendeu por bem manter a declaração do texto constitucional anterior, no sentido de serem:

    ‘…nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes,…não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé’.

    A nulidade dos atos que tenham por objeto a posse, a ocupação e o domínio das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios não se relaciona com o ato administrativo declaratório e demarcatório da União em relação àquelas terras.

    Tratam-se de questões distintas. Portanto não há conflito com a União no que tange a demarcação dos limites das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. Existe sim um litígio com a comunidade indígena e a União em razão do desrespeito a posse permanente e ao usufruto exclusivo das riquezas naturais assegurado constitucionalmente aos índios. Mas note-se que este conflito teria sido estabelecido desde o momento da turbação da posse da terra ou de sua ilegal titulação e não em razão da explicitação administrativa dos limites da terra tradicionalmente ocupada pelos índios.

    Da mesma forma, não será em razão da demarcação de uma terra indígena que seus eventuais invasores terão que de lá se retirar e nem a administração pública indigenista federal tem o poder para retirá-los da terra sem ordem judicial. Ou estes ocupantes não-índios se retiram por vontade própria ou através de entendimento com os índios ou com o órgão indígenista ou a desintrusão da área, que constitui um direito subjetivo dos índios que a ocupam e da União que detém o domínio, será obtida por decisão judicial, ressalvado a hipótese de legítima defesa da posse, previsto no art. 502 do Código Civil, que será comentada mais à frente.

    A manutenção ou a reintegração de uma comunidade indígena na terra que tradicionalmente ocupa deve ser providenciada pela União, pelo Ministério Público Federal (art.129-V da CF), pela comunidade indígena titular da posse da terra, ou pela organização indígena com poderes para tanto, independente e até mesmo antes da terra estar demarcada.

    É por estas razões que entendemos não ter procedência a compreensão de alguns segundo a qual com a demarcação de uma terra indígena alguém venha a ser privado de seus bens. A demarcação, como já observado não tem o poder de causar conseqüências no patrimônio de quem quer que seja. Se alguém entende ter domínio sobre uma terra tradicionalmente ocupada por índios, não é em razão do ato demarcatório, nem dos atos praticados pela administração pública federal para reunir os elementos de prova da ocupação tradicional e para delimitá-la que será privado deste bem. Conforme dispõe a Constituição este ato, por exemplo, que tem por objeto o domínio de uma terra tradicionalmente ocupada por índios é nulo, não gerando, em razão disso conseqüência patrimonial alguma ao seu suposto titular.

    Da mesma forma não tem sentido imaginar que no procedimento administrativo destinado a demarcação das terras indígenas deva estar assegurado "…o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes", conforme prevê o art.5º – LV da Constituição. Não existe litígio a ser resolvido com a demarcação de uma terra indígena e muito menos alguém é acusado pela administração pública indigenista federal por ocasião da prática dos atos necessários a demarcação de uma terra indígena

    A proposição legislativa representada pelo Projeto de Lei nº 2.604/2000 atenta, ainda contra o texto constitucional, ao prever, na parte final do seu art. 9º, que o Presidente da República homologará a demarcação da terra indígena, "após a devida aprovação do Congresso Nacional".

    A Constituição Federal relaciona, nos seus arts. 48 e 49 as matérias de competência do Congresso Nacional. Não estando no seu rol de atribuições, como ocorre em relação ao disposto no inciso XVI do art. 49, que estabelece a competência exclusiva do Congresso Nacional para "autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais", não pode o Legislador ordinário inovar onde o constituinte originário foi taxativo, conforme, inclusive tem decidido reiteradamente o Supremo Tribunal Federal.

    O disposto no art. 11 do PL 2604/2000 também incorre em flagrante inconstitucionalidade, ao dispor que:

    "Nenhum povoado, vila ou cidade preexistente a 05 de outubro de 1988, poderá ser demarcado como terra indígena, reservando-se área contígua para a sua expansão urbana a não ser que sobre a área existisse ação judicial julgada procedente, antes ou depois dessa data, para o fim de reconhecer e declarar o caráter de terra indígena da área em que se situar".

    Esta proposição, além de atentar contra o disposto no art. 231 da Constituição Federal, em especial no que se refere ao fixado no § 6º desse dispositivo constitucional, desconsidera que o núcleo normativo deste dispositivo constitucional já estava em vigor no texto constitucional anterior, no se art. 198 e §§ 1º e 2º.

    Com efeito, são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, também conforme entendimento firmado pela Suprema Corte brasileira, conforme se pode aferir pela seguinte ementa:

    "Ação popular visando a declaração de nulidade de atos lesivos ao Patrimônio da União, decorrentes de lei estadual nº 1.077, de 1958, do Estado do Mato Grosso, que reduziu a área de terras reservadas aos índios Cadiuéos. Apelação conhecida como Ação Cível Originária – (Constituição de 1967, art. 114, I, d). Ação julgada procedente em parte para declarar inconstitucional a lei 1.077/58, de Mato Grosso, em face dos arts. 216 da Constituição de 1946 e 186 da Constituição de 1967".

    III. A improcedência do PL 2.604, de 2000

    A sistemática concebida pelo Projeto de Lei em questão, embora parta da concepção do processo criado no Decreto nº 1775/96, ainda em vigor, fixa dispositivos que agravam e complicam, injustificadamente a tramitação a matéria.

    Inicialmente não tem sentido repetir na lei os princípios constitucionais inscritos no art. 37 da CF.

    Da mesma forma, relacionar, como ocorre no § 2º do art. 1º do PL, vários órgãos públicos federais, estaduais e municipais, como partes legítimas para requerer o início do procedimento administrativo para a demarcação de uma terra indígena, não tem cabimento.

    O caput do art. 231 da CF, ao estabelecer competir à União demarcar as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, delimita o ente da federação encarregado de proceder a todos os atos indispensáveis a sua consumação. Neste sentido, em respeito ao princípio constitucional da autonomia administrativa, se um determinado órgão público entende ser necessário a demarcação de uma terra tradicionalmente ocupada por índios será suficiente, que o órgão, oficie ao outro órgão competente, sugerindo ou solicitando a providência constitucional, justificando as razões pelas quais externa tal pretensão.

    Da mesma forma, qualquer cidadão, em respeito ao direito constitucional de petição (art. 5º – XXXIV – "a", CF), poderá requerer a efetivação de um direito constitucional.

    Para tanto, não é necessário que as pessoas jurídicas ou naturais informem os elementos exigidos no § 3º do art. 1º do PL, na medida em que: os limites e confrontações da terra indígena, com dados sobre perímetro, área global, áreas de exclusão; a etnia e o grupo indígena envolvido; o nome das pessoas que possuem título imobiliário incidente na área a ser demarcada, exerçam posse ou ocupação na área; a descrição da efetiva ocupação tradicional das terras, pelo grupo ou grupos indígenas para as quais a demarcação se destina; as cidades, vilas, povoados e demais núcleos urbanos ou suburbanos não índios existentes na terra a ser demarcada; as estradas federais, estaduais e municipais, as instalações militares policiais-militares ou de corpo de bombeiros e de defesa civil, dentre outros aspectos julgados relevantes; referem-se a aspectos fáticos da área a ser demarcada, cujo dimensionamento compete a quem o constituinte originário impôs a obrigação de demarcar.

    Além disso, cumpre observar que muitos, se não a maioria dos aspectos relacionados neste dispositivo da proposição, pelo seu grau de especialização pode inviabilizar o exercício, por um cidadão, por exemplo indígena, do seu constitucional direito de petição, ainda mais, quando se considera o disposto no § 4º do art. 1º do Projeto de Lei, quando exige que o requerimento seja instruído com: "relatórios de trabalhos desenvolvido por antropólogos de qualificação reconhecida; relatórios de estudos antropológicos; relatórios de estudos de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental; levantamentos fundiários necessários à delimitação da terra indígena pretendida; relatório dos trabalhos de identificação e delimitação, com a caracterização da terra indígena a ser demarcada; laudos, croquis, mapas, fotografias, títulos dominiais, pareceres, declarações e quaisquer outros elementos de prova".

    Outra completa impropriedade do Projeto de Lei diz respeito ao disposto no § 5º do art. 1º, quando estabelece que o Presidente do INCRA seria a autoridade encarregada de presidir o procedimento especial, no que considera uma "primeira fase", a quem competiria, nos termos do art. 4º do PL "exercer o juízo de admissibilidade do requerimento de demarcação e homologação de terra indígena", examinando se estão presentes os requisitos exigidos e os documentos de que tratam os §§ 3º e 4º do seu art. 1º.

    Além do fato da prevista participacão do INCRA, nos termos do que dispõe o art. 4º do PL ser completamente burocrática, cumpre destacar, que esta autarquia tem como finalidade institucional, a promoção da colonização e da reforma agrária, atividades governamentais relevantes, mas que em nada se referem à demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas.

    Considerando apenas a experiência do período Republicano, anote-se que o país registra noventa anos de ação indigenista governamental e não-governamental, sendo perfeitamente legítimo asseverar que o país detém significativo conhecimento sobre formas específicas de proceder a identificação, a comprovação e a delimitação das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, carecendo apenas de firme determinação político-administrativa.

    A fase do contraditório e da ampla defesa, prevista no art. 5º do Projeto de Lei, além de ser improcedente, de acordo com o que demonstramos anteriormente, institucionaliza a participação dos interesse privados e revela-se inócuo, na medida em que eventual decisão desfavorável à parte que tenha externado contrariedade com a demarcação de determinada terra indígena, poderá recorrer ao Poder Judiciário, não só pelo que assegura o art. 12 do PL, mas por força do que dispõe o inciso XXXV do art. 5º da CF.

    O art. 6º do Projeto de Lei prevê que a apreciação do procedimento administrativo pelo Ministro da Justiça, após audiência, no prazo comum de noventa dias do MME, do MMA, da SAE, da PGR e, se não forem partes, do Estado e do Município, constitui-se na segunda fase do procedimento administrativo, que se encerra com a decisão, nos termos previstos no seu art. 7º, ou seja:

    1. convertendo o procedimento em diligência;
    2. extinguindo o procedimento, sem julgamento do mérito;
    3. julgando, mediante decisão fundamentada procedente ou improcedente o pedido formulado pelo requerente e decidindo sobre as questões levantadas nas contestações;
    4. declarando, mediante portaria os limites da terra indígena e determinando sua efetiva demarcação.

    Estas possibilidades decisórias nem precisariam ser relacionadas em dispositivo legal, na medida em que são parte intrínseca do poder decisório de qualquer autoridade administrativa, que sempre deverá fundamentar e motivar seus atos, respeitados os princípios inscritos no art. 37 da CF.

    No caso, cumpre observar que a solução adotada no Brasil desde a vigência do Decreto nº 88.118, de 1983, por intermédio do qual o poder de decisão sobre os limites a serem demarcados foi retirado do órgão indigenista federal, denota a disposição no sentido de submeter a apreciação das demarcações de terras indígenas ao juízo não só jurídico, mas político da administração central do país, como têm ocorrido nestes anos.

    No art. 8º do PL propõe-se que a após a decisão positiva do Ministro da Justiça e independentemente dos trabalhos demarcatórios, o processo seja remetido ao Presidente da República para homologação da demarcação, após aprovação do Congresso Nacional.

    Neste dispositivo, além da inconstitucionalidade já apontada, que somente seria sanada caso a Proposta de Emenda Constitucional nº 215, de 2000, apresentada e encabeçada pelo mesmo autor do PL 2604/2000, redundando em que o PL deveria ser apresentado após a tramitação e eventual promulgação da PEC, cumpre anotar as seguintes incongruências nele contidas:

    1. não tem cabimento remeter o procedimento ao INCRA para efeito de sua demarcação, quando a administração pública possui órgão autárquico especializado nesta atividade;
    2. o Presidente da República somente pode homologar uma demarcação, quando ela, naturalmente estiver demarcada, considerando que a demarcação consiste no ato administrativo de colocação de marcos oficiais nos limites das terras indígenas.

    No que se refere à fase do registro da terra indígena no Cartório de Registro de Imóveis, a ressalva inscrita no §3º do art. 8º do PL é igualmente descabida, na medida em que um registro não pode ser feito com ressalva das "ocupações decorrentes de títulos dominiais". No caso, deve-se prever um procedimento judicial sumaríssimo, para desconstituição destes títulos, prevendo-se, no máximo que a demarcação da terra indígena fique pre-anotada, até que a demanda se encerre.

    Quanto à indenização das benfeitorias decorrentes de ocupação de boa-fé, o disposto no § 2º do art. 10 estabelece uma retenção prévia e por disposição legal, complementamente inaceitável, na medida em que condiciona a saída dos ocupantes da área, à desconstituição dos títulos imobiliários eventualmente incidentes. Ao contrário, deve-se prever a imissão imediata da União, na posse da terra demarcada, em benefício da comunidade indígena interessada.

    O disposto no art. 11 é inaceitável, em razão de sua flagrante inconstitucionalidade, conforme anteriormente exposto.

    O art. 12, também conforme já mencionado é inócuo, tendo em vista o disposto no inciso XXXV do art. 5º da CF.

    Por fim, o disposto no art. 13, prevendo a aplicação do disposto no PL aos procedimentos demarcatórios, ainda não homologados e não registrados em cartório atenta contra o princípio constitucional da segurança jurídica e contra o erário, na medida em que os atos administrativos declaratórios dos limites de determinada terra indígena, além de terem acarretado justas e legítimas expectativas, implicaram no gasto de recursos públicos.

    Brasília, 22 de Agosto de 2000

    Paulo Machado Guimarães
    Advogado e Assessor Jurídico do Cimi

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  • 20/06/2004

    Análise Jurídica do Despacho n.º 80/96 do ministro da Justiça, por Rosane Lacerda

    I . Introdução

    No dia 24 de dezembro p.p. o Diário Oficial da União, seção I, publicou o Despacho n.° 80 da lavra do Ministro de Estado da Justiça, Nelson Jobim, no qual expressou sua decisão acerca dos limites da Terra Indígena Raposa / Serra do Sol localizada no Estado de Roraima.

    Como passou a permitir o Dec. 1.775 de janeiro de 96, a proposta de demarcação da área – identificada em 1992 com 1.678.800 ha de ocupação tradicional indígena, recebeu contestações do Governo do Estado de Roraima e de outros, no prazo de 09 de abril conforme o art. 9.° do mencionado Decreto.

    Tais contestações receberam pareceres contrários por parte dos advogados do órgão indigenista, que foram acolhidos pelo seu Presidente, mas julgados de modo diverso pelo Ministro da Justiça (Despacho n.° 19 publicado no DOU de 10.07.96.), que determinou a sua devolução à Funai para a realização de novas diligências, juntamente com os autos do procedimento demarcatório, conforme o Inc. II do § 10 do art. 2.° do Dec. 1.775/96.

    Encerrando-se em 10 de outubro o prazo para a realização de tais diligências (conforme o inciso anteriormente citado), aguardou-se desde então a decisão do Ministro, que só veio a ser tomada às vésperas do Natal de 1996. 

    II . A Decisão Ministerial

    Em seu despacho o Ministro Nelson Jobim optou pelo que denominou de “conciliação dos interesses concorrentes”. Desta forma, mesmo declarando julgar improcedentes as contestações, decidiu pela redução dos limites da Terra Indígena em 20%, através da introdução de

    “… alguns pequenos ajustes, ditados pelo interesse público, em preservar núcleos populacionais não indígenas, já consolidados, ou em resguardar situações jurídicas estabelecidas pelo próprio Poder Público Federal”.  (Grifamos.)

    Desta forma, em sua parte dispositiva, conclui o despacho determinando:

    a) a exclusão, da área indígena das 10 propriedades privadas tituladas pelo INCRA a partir de 1982”, e a denominada “Fazenda Guanabara”, de propriedade de Newton Tavares;

    b) a exclusão, também dos limites da terra indígena, da sede municipal do recém criado Município de Uiramutã e das vilas existentes como Surumu, Água Fria, Socó e Mutum;

    c) a vedação da fruição indígena exclusiva sobre as vias públicas e respectivas faixas de domínio público que existem na área indígena.

    Determina por fim à Funai a elaboração de nova planta de identificação com base nos parâmetros explicitados no Despacho, após o que deverão os autos retornar ao Ministério para a edição da competente Portaria Declaratória.

    III .  Análise dos fundamentos da decisão Ministerial.

    III. a) Quanto à exclusão das fazendas localizadas no interior da Terra Indígena.

                III. a.1. As 10 fazendas tituladas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária [i]

                No item 2.2.3, relativo à “apreciação das manifestações dos interessados”, afirma o Ministro que:

    “…embora não sejam suficientes para elidir, por si sós, a caracterização indígena das terras que ocupam, comprovam, contudo, haverem recebido titulações das áreas, por parte do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, que as outorgou com base em levantamento antropológico anterior[ii] e que excluíra tais áreas da delimitação indígena então feita.” (Grifos no original.)

    Mais tarde, no item 4.3.2, relativo à “apreciação das questões”, conclui que:

    “…tem a Administração Federal o dever ético e político de resguardar os títulos de propriedade outorgados pelo INCRA sobre as áreas então excluídas pela própria FUNAI dos limites da terra indígena.”          (Grifamos.)

    De fato, neste ponto como nos demais decididos no Despacho, o ato do Ministro da Justiça se reveste de caráter eminentemente político, porém nem um pouco constitucional, e muito menos ético. Vejamos.

    A delimitação a menos realizada pelo GT de 1981, que excluiu tais fazendas, veio a ser posteriormente corrigida pela identificação efetuada em 1992, cuja proposta foi aprovada pelo Parecer n.° 036/DID/DAF/93. O próprio Ministro da Justiça, no Despacho em tela, em nenhum momento afirma e muito menos comprova que tais limites estejam fora da ocupação tradicional indígena.

    O que ele afirma – num juízo de valor individual e desprovido de fundamentação científica,  é que o laudo antropológico de 1993 não demonstra “ser esta parte da área indispensável à preservação indígena”.

    Observe-se em primeiro lugar que a expressão incorre em imprecisão, uma vez que a Constituição Federal fala em “preservação de recursos naturais” necessários ao bem-estar dos índios, e não de “preservação indígena” como menciona o Ministro.

    Em segundo lugar, significa que o próprio Ministro reconhece tais terras como parte dos limites da ocupação tradicional indígena, que, no entanto, por terem sido invadidas (e tituladas em 1982), já não seriam mais indispensáveis aos índios. Ou seja, a invasão de terra indígena teria o efeito jurídico de extinguir um dos elementos que a Constituição define como componentes da ocupação tradicional indígena: a “imprescindibilidade à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem estar” (CF, art. 231, § 1.°).

    Em terceiro lugar, ao querer conferir legitimidade aos títulos expedidos pelo INCRA em 1982 sobre tais terras, o Ministro comete um erro inadmissível até mesmo para quem é ainda iniciante em curso jurídico: o de pretender haver direito adquirido contra a Constituição Federal. É que a Carta Política de 1988 dispõe expressamente que:

    “§ 6.°. São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo…”  (Grifamos.)

    Assim, entender que se possa dar validade a tais atos, é o mesmo que atentar contra este elementar princípio da ordem jurídica, que não reconhece a existência de direito adquirido contra a Constituição.

    Observe-se ainda que a razão de ser desta nulidade e extinção constitucionalmente decretadas advém do fato de, na mesma Constituição, estar presente o instituto do INDIGENATO, ou seja, o reconhecimento de os direitos territoriais indígenas são originários, precedendo a formação do próprio Estado Brasileiro.

    Para o Ministro, a circunstância de ter a Funai falhado ao excluir tais terras da proposta de demarcação realizada em 1981, levando o INCRA  a proceder à sua titulação em nome de particulares, conduz a um dever ético e político da Administração em resguardar tais títulos. Trata-se esta de uma pretensão absolutamente inconstitucional.

    Ora, o Ministro deveria saber, talvez mais do que ninguém, que a única ressalva constitucionalmente prevista contra a nulidade e extinção dos atos que tenham  por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas, é a ocorrência de relevante interesse público da União conforme disposição de  lei complementar (CF, art. 231, § 6.°). A titulação pelo INCRA, com base numa falha da Funai em 1981, posteriormente corrigida, de nenhum modo caracteriza este relevante interesse público da União. Ademais, inexiste ainda a mencionada lei complementar com base na qual devem ser regulamentadas tais ressalvas.

    Deveria também saber o Ministro que o DEVER ÉTICO E CONSTITUCIONAL que tem a Administração Federal em relação às terras indígenas (CF, art. 231, caput) resume-se a demarcá-las, e não a tentar agradar a gregos e troianos com medidas de “conciliação de interesses concorrentes.” Se assim fosse, não teria a Constituição Federal reconhecido o indigenato nem mandado demarcar as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, mas apenas as poucas que não tivessem ainda sido invadidas.

    III. a.2.  A Fazenda Guanabara.

    Figura no Despacho em tela que a contestação apresentada por Newton Tavares, pretenso proprietário deste imóvel,

    “…embora não documente suficientemente a cadeia dominial, ministra indícios de ocupação desde o começo do século, além de ter sido vencedor em ação discriminatória movida pelo INCRA.” (Grifamos.)

    Assim sendo,

    “de posse privada antiquíssima (…), deverá ser excluída, sem comprometer a integridade da gleba indígena, à luz dos pressupostos constitucionais. É que o referido imóvel (…) é de ocupação privada anterior a 1934, desde 1918 …”     (Grifamos.)

    Esta argumentação do titular da pasta da Justiça peca tanto do ponto de vista legal quanto do ponto de vista ético.  Vejamos.

    Em primeiro lugar, o Ministro dá prevalência a simples indícios (e apenas indícios) de ocupação antiga da Fazenda Guanabara, contra a antigüidade da ocupação indígena sobre o local, fato totalmente ignorado no Despacho, embora já mencionado no Parecer assinado pelo advogado do órgão indigenista sobre a Contestação apresentada por Newton Tavares[iii].

    Informa o Parecer, com base na perícia judicial constante nos autos da Ação n.° 92.1634-09 em andamento na Justiça Federal em Roraima – em que se discute a posse da Fazenda Guanabara,    que ao se iniciar a ocupação do imóvel no início do século, as suas terras continuavam marcadas pela antiga presença indígena, cujo curso normal veio a sofrer constrangimentos por parte dos novos ocupantes e por que não dizer invasores.

    Como constatou o perito judicial,

    “…as terras reivindicadas atualmente com a designação ‘Fazenda Guanabara’ mantinham-se ocupadas nas primeiras décadas do presente século por índios nativos Macuxi – ancestrais diretos e ascendentes nas 2.° e 3° gerações dos índios Macuxi contemporâneos residentes nesta mesma área, sendo especificamente o ano de 1918 (…), a ocasião provável em que teria ocorrido a chegada e a instalação do primeiro colono na região, na condição de criador particular de gado, o Sr. João Menezes da Silva, …”

    Informa ainda o Parecer que no exato local onde hoje encontra-se edificada a casa sede da fazenda “Guanabara”, se situava  naquela época  a aldeia  anteriormente denominada “Warimanakem”, cujo Tuxaua,

    “conforme depoimento narrado pela sua filha Tereza, testemunha dos fatos quando ainda era criança, … teria sido assassinado pelo jagunço Ambrósio a mando do mencionado posseiro João Menezes da Silva, o que teria provocado a dispersão dos índios … ” [iv]

    de acordo com o costume Macuxi de se abandonar o local de habitação dos falecidos, dando origem assim, às aldeias Amália (Puergdá); Jibóia (A-man); Macaco (Iuargá-Epin); Piaba (Savî ) e Santa Cruz (Xununu-Etamu), todas elas localizadas desde então e ainda hoje no interior das terras ora excluídas da demarcação pelo Despacho Ministerial.

    Pois bem. Turbada (e não esbulhada)[v] a posse indígena em 1918 – o que se comprova claramente pela continuidade da sua presença – embora que sob constrangimentos, através da existência no local das cinco aldeias acima mencionadas, veio a Constituição Federal de 1934 a encontrar  o mesmo imóvel, em continuação à turbação praticada. Ou  seja, à data da promulgação da Constituição Federal de 1934, os Macuxi encontravam-se ainda na posse do local, embora que turbada pela presença da fazenda atualmente denominada Guanabara.

    A contra senso o Ministro da Justiça, porém, decidiu em seu Despacho considerar apenas a posse particular do imóvel, existente em 1934, de modo a descaracterizar totalmente a posse indígena que àquela época, apesar de todos os constrangimentos ilegais, continuava a se desenvolver no local.

    Assim, o Ministro confere peso apenas aos meros indícios de ocupação do local pelos antecessores do Sr. Newton Tavares, em total desconsideração à posse indígena, mais antiga e turbada por aquela.

    Em segundo lugar, o fato de o pretenso proprietário do imóvel ter sido vencedor em ação discriminatória movida pelo INCRA nunca deveria ter sido sequer mencionado pelo Ministro, pois completamente descabido como fundamento contra a demarcação da área nestes limites.

    A discriminatória, seja judicial ou administrativa, constitui no modo  pelo qual a União ou os Estados, através dos seus órgãos fundiários específicos, apuram a existência de terras devolutas que enquanto tal possam pertencer ao seu patrimônio respectivo. As terras em questão, por serem indígenas, não são devolutas, e portanto não estão legalmente sujeitas a sofrer os efeitos da mencionada ação.

    Assim, de modo algum a Discriminatória vale para desconstituir ou tornar sem efeito o caráter da ocupação tradicional indígena sobre a área, muito menos para dar prevalência à ocupação privada sobre esta.

    Por tudo isto, é completamente sem sentido e beira o cinismo a afirmação do Ministro de que a exclusão da fazenda não comprometerá a integridade da terra indígena, uma vez que, como vimos anteriormente, naquelas terras incidem também  posse indígena atual, comprovada pela ocupação efetuada por cinco aldeias.

    Além disso, o Ministro da Justiça agiu também em desacordo com princípios éticos pelos quais deveria se reger. Localizado no interior das terras da aldeia Santa Cruz, o mencionado imóvel vem ao longo dos anos causando irreparáveis danos, morais e materiais, à população indígena local. O fazendeiro Newton Tavares, beneficiário da decisão,

    “…tentou confinar a aldeia e seus habitantes, construindo um muro com um portão trancado,  guardado por homens armados, e uma vala de quatro metros de largura e três de profundidade ao longo de dez quilômetros. Além de estarem impedidos de circularem livremente, os índios também estavam impedidos de caçar, pescar, plantar e construir nas suas próprias terras.

    “No dia 5 de julho de 1987, jagunços da fazenda armados agrediram um casal da aldeia Santa Cruz,  espancando o homem e violentando a mulher. O fato foi denunciado à Funai, mas não houve nenhuma providência. No dia seguinte, os Macuxi, em represália, detiveram três jagunços. No dia 11 de julho, a Secretaria de Segurança Pública do Estado comandou uma invasão à aldeia que envolveu 150 homens, entre policiais civis e militares e dois oficiais do Exército. A operação resultou na prisão ilegal de dez índios, entre eles cinco menores de idade, e no espancamento de vários outros, inclusive crianças e uma mulher grávida. O fato teve diversas conseqüências, mas sem que o fazendeiro fosse retirado da Área ou houvesse qualquer punição às arbitrariedades cometidas.

    “Em 1990, Manuel Ferreira dos Santos, um outro jagunço da mesma fazenda, após fazer várias ameaças de morte e queimar a casa de índios da aldeia Santa Cruz, assassinou a tiros os índios Damião Mendes e Mário Davis, o último alvejado pelas costas. Levado a julgamento em 10 de novembro de 1993, em função da omissão da Funai, de um péssimo trabalho do Ministério Público Estadual e da hostilidade aos índios existente em Boa Vista, Miguel foi julgado e absolvido.”[vi]  (Grifamos.)

    Como se vê, além de não estar legalmente amparado em suas pretensões, o beneficiário do despacho ministerial também é apontado como presença nociva, que não mede atos de violência para consolidar a invasão da área indígena, e o mais grave, tudo isso sob o amparo do próprio poder público.

    III.b) Quanto à exclusão das vilas e da sede do Município de Uiramutã, situados no interior da área indígena.

    No mencionado relatório do Ministro Maurício Correia este sugere à Administração Pública Federal, quando da demarcação da terra indígena Raposa / Serra do Sol,

    “…providências acautelatórias, para que, a par de oficiar essa homologação, não fira direitos que imponham sejam protegidos na aplicação da justiça administrativa, para que não se deixe ao oblívio  e ao relento os chamados civilizados que possam se encontrar no pleno direito, uso e gozo dessas propriedades que lá possuem, e que herdaram muitos deles, de seus pais, avós e tataravós.”[vii]   (Grifamos.)

    Julgando agir com base neste entendimento, decidiu o Ministro da Justiça também excluir dos limites a serem demarcados, as vilas e a recém criada sede municipal de Uiramutã, sob o argumento de que :

    “… tais áreas de ocupação pública, … , em que o Poder Público mantém órgãos de administração e de prestação de serviços, devem ser preservadas em atenção ao fato social consolidado e em respeito ao próprio interesse público.” (Grifamos.)

    Ora, a sugestão de “providências acautelatórias” aos direitos de terceiros ocupantes de terras indígenas, de que trata o Ministro do STF, tanto neste ponto quanto nos relativos às fazendas, não pode ser interpretada como significando um aval para a redução dos limites da área.

    Redução de limites de terra indígena, nela deixando os seus invasores, sejam eles quais forem,  não é ato de resguardo a “direitos” de terceiros, uma vez que estes inexistem em terras de comprovada ocupação tradicional indígena conforme o já mencionado § 6.° do art. 231 da Constituição Federal de 1988:

    “São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, …” (Grifamos.)

    Ao praticar tal ato, o que a Administração Pública está fazendo é cometer violações contra a Constituição Federal,  que determina à União os deveres  de DEMARCAR as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios (CF, art. 231, caput), e PROTEGER E FAZER RESPEITAR  os  seus  direitos  originários de posse permanente e usufruto exclusivo das riquezas naturais de seu solo, rios ou lagos (CF, art. 231, caput e § 2.°). É violar também a cláusula constitucional da INDISPONIBILIDADE das terras indígenas (CF, art. 231, § 4.°).

    Os direitos que cabem a terceiros, a serem observados em sede administrativa pela União, são a “indenização de benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé” (CF, art. 231, § 6.°), e o reassentamento, conforme dispõe o próprio Dec. 1.775/96:

    “art. 4.°. Verificada a presença de ocupantes não índios na área sob demarcação, o órgão fundiário federal dará prioridade ao respectivo reassentamento, segundo o levantamento efetuado pelo grupo técnico, observada a legislação pertinente.”

    Como vimos anteriormente, apenas uma ressalva a tal regra é permitida pela Constituição Federal, e não contempla o que o Ministro denomina de “interesse social consolidado” nem um interesse público qualquer. Esta exceção à nulidade dos títulos e aos atos de ocupação, posse, domínio e usufruto sobre as terras indígenas (e portanto à cláusula da indisponibilidade) tem como critério exclusivamente o

    “…relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, …” (CF, art. 231, § 6.°)  (Grifamos.)

    Observe-se que tal interesse público, além de ser exclusivamente da União (e não de estados membros ou de municípios), deve ser qualificado como relevante, e não de qualquer magnitude. 

    Portanto ao decidir “em atenção ao fato social consolidado” e “em respeito ao interesse público”, que não caracteriza como sendo da União, nem de relevância, o Ministro da Justiça  age em completo desprezo às regras estabelecidas pela Constituição do País, que se destinam à proteção não só do patrimônio público federal como também dos direitos  originários dos povos indígenas.

    Também causa espécie a concepção expressa no despacho ministerial, que descaracteriza a ocupação tradicional indígena nos locais em que foram erguidas as vilas. Diz o Ministro:

    “… os espaços físicos ocupados por tais aglomerações urbanas não se incluem nos pressupostos constitucionais elencados no art. 231, § 1.°: (a) não são habitados exclusivamente por indígenas; (b) não são utilizados, nem utilizáveis, para atividades produtivas indígenas; (c) não são imprescindíveis para a preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem estar, posto que tal requisito é atendido por outros espaços; e (d) não são necessárias   à   sua   reprodução   física   e  cultural,  segundo  os  seus  usos, costumes e tradições. O fato incontestável da existência de tais aglomerados e do longo tempo a que remontam demonstra a sua não inclusão nos círculos constitucionais definidores das terras indígenas.” (Grifamos.)

    Trata-se exatamente da interpretação restritiva ao § 1.° do art. 231 da Constituição Federal, que desde os primeiros meses de sua gestão à frente da Pasta da Justiça o Ministro Jobim já ameaçava adotar.

    Como informa o Parecer n.° 036/DID/DAF/93, que aprovou o relatório de identificação realizado em 92, as pequenas vilas preservadas pelo Ministro no interior da Terra Indígena Raposa / Serra do Sol,

    “…funcionam como ponto de apoio e de abastecimento para os ocupantes da área, em especial os vaqueiros das fazendas, garimpeiros e funcionários públicos.”

    A continuidade de sua presença no interior da área, agora legitimada pelo Despacho ministerial, significa mais do que a consolidação das invasões até hoje praticadas naquela área, mas o consentimento para o desenvolvimento de focos permanentes de conflitos que se projetarão para o futuro.

    III.c) Quanto à vedação da fruição indígena exclusiva sobre as vias públicas no interior da Terra Indígena.

    A decisão a este respeito foi dada sem maiores esclarecimentos além da rápida menção ao “interesse público”, de modo a

    “…assegurar a livre circulação de pessoas e veículos em tais estradas”.

    Tais vias públicas, à exceção da BR-202, que liga à sede do Município de Normandia, consistem todas em estradas estaduais, utilizadas principalmente para o trânsito de garimpeiros ilegais no interior da área.

    Novamente aqui o Ministro da Justiça viola a cláusula constitucional da indisponibilidade das terras indígenas (CF art. 231, § 4.°), e a regra também constitucional pela qual a única possibilidade de legitimação a atos de ocupação, domínio e  posse de terceiros sobre tais terras encontra-se na ocorrência de relevante interesse público da União, prevista em lei complementar (CF, art. 231, § 6.°).

    IV) Conclusões

    O Ministro de Estado da Justiça, no Despacho n.° 80, de 20.12.96 (DOU 24.12.96, Seção I, p. 28282), em que ordena a redução de limites da Terra Indígena Raposa / Serra do Sol,

    a) considera válidos os títulos de propriedade concedidos a particulares pelo INCRA, em detrimento da ocupação tradicional indígena;

    b) dá primazia a meros indícios de ocupação particular, em total desconsideração à anterior e continuada posse indígena nas mesmas terras;

    c) considera a ocupação particular em terra indígena na data do advento da Constituição Federal de 1934, sem questionar-lhe a legitimidade em relação à sua origem;

    d) considera ação discriminatória de terras devolutas da União como meio válido para a comprovação de direitos de particulares sobre as terras tradicionalmente ocupadas por indígenas;

    e) considera o “interesse social” de invasores e o interesse público municipal como válidos para dar legitimidade à ocupação, posse e domínio sobre as terras indígenas;

    Por tudo isto, o Ministro da Justiça:

    a) viola o princípio jurídico da inexistência de direitos adquiridos contra a Constituição, e viola a própria Constituição Federal de 1988, especialmente seu art. 231, nos seguintes dispositivos:

    – o caput, que determina à União o dever de demarcar e proteger as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios;

    – o § 4.°, que grava as terras indígenas com as cláusulas da indisponibilidade e da inalienabilidade;

    – o § 6.°, que declara nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios;

    – o mesmo § 6.°, onde exige o relevante interesse público da União, segundo o disposto em lei complementar, para dar validade a tais atos considerados nulos;

    b) não resolve o problema da terra indígena em questão, favorecendo, pelo contrário, a permanência e o crescimento das invasões, e estimulando a continuidade e provavelmente o aumento dos já alarmantes índices de violência contra indivíduos e comunidades indígenas no estado de Roraima, especialmente de Raposa / Serra do Sol;

    c) abre perigosos e graves precedentes para a situação de muitas outras terras indígenas no restante do País, demarcadas ou ainda a demarcar, cujas invasões semelhantes (por fazendas existentes em 1934, ou de titulações recentes pelo INCRA; pequenas vilas e estradas estaduais) podem ser agora fortalecidas;  

    Tratou-se, enfim, de decisão exclusivamente política, onde os próprios pareceres elaborados pelo departamento jurídico do órgão, com o auxílio de advogados contratados e pagos para o desenvolvimento da tarefa, foram completamente ignorados e portanto inócuos, numa situação que o Conselho Indigenista Missionário – CIMI já previa e denunciava desde o início.

    Por tudo isto impõe-se ao Ministro – que está a pretender uma vaga no Supremo Tribunal Federal, que reveja a decisão, fazendo incluir nos limites da Terra Indígena Raposa / Serra do Sol as áreas onde se encontram a Fazenda Guanabara, as outras 10 Fazendas anteriormente mencionadas, os locais onde se encontram as vilas e a recentíssima sede do município de Uiramutã, e reconheça os direitos exclusivos dos índios sobre as vias estaduais lá existentes, conforme ampara a Constituição Federal que estabelece, como única ressalva, a ocorrência de casos de relevante interesse público da União Federal.

    É o parecer, SMJ.

    Brasília – DF, 13 de janeiro de 1997.

    Rosane Lacerda
    Assessora Jurídica do Conselho Indigenista Missionário – Cimi

     



    [i] FAZENDA DOIS IRMÃOS , de  Alaísa Valéria Paracat Costa; FAZENDA MARAVILHA, de Roberto José da Costa Neto; FAZENDA NOVA ESPERANÇA, de Raimundo de Jesus Cardoso Sobrinho; FAZENDA CEARAZINHO, de Severiano Barroso Sales; FAZENDA CARINAMBU, de João Gualberto Sales; FAZENDAS NOVO DESTINO E JACARÉ, de Valmir Gonçalves de Oliveira; FAZENDA RONDÔNIA, de Edimilson Peixoto Sales; FAZENDA TREZE DE MAIO, de Domício de Souza Cruz; FAZENDA MANGUEIRA, de Napoleão Zeolla Machado.

    [ii] Refere-se ao relatório de identificação realizado em 1981, que concluía pela proposta de demarcação de 1.347.810 ha.

    [iii]  Otávio Uchoa Guedes Cavalcanti. Brasília, 05 de junho de 1996.

    [iv] Otávio Uchoa, idem, p. 6.

    [v]  A diferença entre os atos de turbação e de esbulho consistem em que na primeira o possuidor ainda se mantém, de algum modo,  na posse das terras, apesar da invasão praticada por terceiro. A situação de esbulho, pelo contrário, implica no total desapossamento. 

    [vi]  Euclides Pereira Makuxi, Coordenador do Conselho Indígena de Roraima – CIR. Roraima, um Estado de Violência Institucionalizada. In: Povos Indígenas no Brasil 1991/95 – Instituto SócioAmbiental, 1996, p. 167.

    [vii]  STF, Ministro Maurício Correia, Relatório na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.°1512-5 / RR, p. 15.

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  • 20/06/2004

    Considerações ao pacote indigenista do presidente FHC assinado nos dias 05 e 08 de janeiro de 1996, por Rosane Lacerda

    I. Introdução

    Desde o terceiro mês do Governo Fernando Henrique Cardoso – março de 1995, o Ministro da Justiça Nelson Jobim anunciava a intenção do Executivo Federal em alterar o Decreto nº 22 de 04 fevereiro de 1991 que dispunha sobre o procedimento de demarcação de terras indígenas. O objetivo da alteração era incluir no procedimento demarcatório o princípio do "contraditório" e da "ampla defesa" aos ocupantes das terras indígenas. Como conseqüência, as terras então demarcadas seriam objeto de revisão, exceto as que já se encontrassem registradas em cartório e no patrimônio da União como terras indígenas.

    Nos nove meses que se seguiram, o CIMI opôs-se radicalmente à decisão expressa pelo ministro, denunciando-a como um violento retrocesso político e um acinte às disposições constitucionais de proteção aos direitos indígenas e ao patrimônio público nacional, consagradas em 1988. Através da mobilização da opinião pública internacional – sobretudo dos organismos europeus de cooperação econômica e humanitária, de algum espaço na imprensa nacional, do apoio à mobilização indígena através da Comissão Executiva do CAPOIB e organizações indígenas regionais, e do incentivo à rearticulação do Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas, a entidade conseguiu contribuir concretamente para impedir a realização dos planos do governo durante o ano de 1995. Ao mesmo tempo, contudo, o governo manteve paralisados todos os procedimentos demarcatórios durante o período.

    Agora, aproveitando-se das férias e recesso de início de ano da maioria dos assessores e diretores do CIMI, bem como de grande parte dos dirigentes de organizações indígenas, e não-governamentais atuantes na defesa dos direitos indígenas, o Presidente Fernando Henrique Cardoso assinou, no último dia 08 de janeiro (segunda-feira) o Decreto nº 1.775 através do qual adota uma nova sistemática de demarcação de terras indígenas, conforme o pretendido desde março de 1995. O Decreto, publicado no Diário Oficial da União em 09 de janeiro, revoga enfim o mencionado Decreto nº 22/91 juntamente com o Decreto nº 608, de 20 de julho de 1992.

    Antes disso, como já vinha anunciando, assinou na sexta-feira 05 de janeiro, as homologações das demarcações de 17 terras indígenas localizadas nos Estados do Amazonas, Acre, Bahia, Pernambuco, Roraima, Pará, Mato Grosso e Rio de Janeiro. O pacote não contemplou, contudo, a Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR), como se anunciava anteriormente.

    Tecemos a seguir, à guisa de uma primeira contribuição, um comentário em linhas gerais sobre o Pacote, seus significados e implicações jurídicas e políticas.II. Comentários

    a) o tipo de terras a que se destina o Decreto nº 1.775/96:

    Diferentemente dos Decretos que lhe antecederam (88.118/83; 94.945/87; 22/91), este não faz qualquer menção à demarcação das terras reservadas ou de domínio indígena. Destina-se apenas às terras tradicionalmente ocupadas, o que pode significar a edição posterior de um outro decreto a respeito daqueles casos.

    Este detalhe deve ser considerado pois apesar de a grande importância estar nas terras de ocupação tradicional, casos há em que povos ou comunidades indígenas, estando impossibilitados de nelas se localizarem ou não dispondo mais de terras daquele tipo, necessitam de novas terras que sejam demarcadas enquanto reservas indígenas, isto é, com todas as implicações legais que o Estatuto do Índio confere a este tipo de terra.b) a sistemática adotada:

    A nova sistemática, adotada pelo Decreto n 1.775, divide-se basicamente em cinco fases:

    b.1) identificação (art. 2º, §§ 1º a 6º)

    São os estudos destinados à coleta de provas que fundamentam a demarcação. Aí nos chamam à atenção os seguintes pontos:

    1º. A falta de um caráter interdisciplinar nos trabalhos de identificação, visto que o maior peso é dado aos estudos antropológicos, enquanto que dados relevantes como os etno-históricos, sociológicos e ambientais, são apenas complementares. Este detalhe me parece importante porque, como sabemos, em muitos casos, dados como os etno-históricos, a exemplo dos relativos a povos expulsos de parcelas significativas de suas terras (como os do NE, SD, Sul e MS) possuem dimensão significativa.

    2º. O fato aparentemente implícito de o antropólogo cujo laudo fundamentará a demarcação não pertencer aos quadros da Funai e a possibilidade de também o grupo técnico ser formado por servidores estranhos ao órgão. Quem serão, de onde virão estes especialistas?

    3º. A aparente dissociação entre os trabalhos do antropólogo e do grupo técnico. O primeiro faria um trabalho independente do segundo. Aliás, ao que parece o grupo técnico seria coordenado por outro antropólogo que não o anterior, o que nos leva a prever que eventuais divergências entre ambos poderão causar impasses prejudiciais ao andamento dos trabalhos e seu resultado;

    4º. O fato de em nenhum momento o Decreto explicitar a necessidade de os estudos de identificação virem a atender ao disposto no § 1º do art. 231 da Constituição Federal, ou seja, demonstrar a ocupação tradicional indígena segundo os usos, costumes e tradições indígenas.

    Quanto aos demais parágrafos que compõem a fase de identificação, as diferenças em relação ao extinto Decreto 22/91 são mínimas. Acrescenta-se prazo de vinte dias a partir de solicitação do órgão indigenista para que os órgãos fundiários estaduais e municipais designem técnicos à participação no levantamento fundiário das ocupações não-indígenas incidentes; mantém-se a participação nos trabalhos do "grupo indígena envolvido"; a participação de "outros órgãos públicos, membros da comunidade científica e especialistas sobre o grupo indígena envolvido" a convite do grupo técnico, antes permitida pelo Decreto 22/91, é agora substituída pela "colaboração" dos mesmos, também a convite, excluindo-se no caso os especialistas sobre o grupo indígena envolvido; mantém-se em trinta dias (a partir da publicação do ato de constituição do grupo técnico) a obrigatoriedade de órgãos públicos e a faculdade de entidades civis prestarem informações sobre a área em identificação; e, por fim, mantém-se a obrigatoriedade de, ao concluir os trabalhos, o grupo técnico enviar relatório circunstanciado ao órgão indigenista, caracterizando a terra indígena a ser demarcada. Importante observar que aí a demarcação passa pelo seu primeiro momento decisivo, que é o crivo do Presidente do órgão indigenista oficial para aprovar ou não o relatório de identificação (parte inicial do § 7º). Só obtendo esta aprovação é que a demarcação segue adiante.

    b.2) contestação (art. 2º, §§ 7º a 9º)

    É aqui que encontramos uma das piores novidades do Decreto nº 1.775/96: a possibilidade de contestação por terceiros ao relatório de identificação, ou seja, o "contraditório" pretendido pelo Governo FHC desde março de 1995. Para tanto, ele inicialmente estende a obrigatoriedade de publicação do relatório (e no Decreto 22/91 prevista apenas para o Diário Oficial da União), para o Diário Oficial do estado onde se localize a terra indígena, afixando-o também, juntamente com o memorial descritivo e mapa da área, na sede da Prefeitura Municipal correspondente (art. 2º, § 7º). O objetivo da amplitude desta publicação é favorecer, a todos quantos possam se interessar, o conhecimento quanto à intenção de se demarcar determinada terra indígena para que tenham então a oportunidade de virem a se manifestar a seu respeito (contrariamente, é claro).

    b.2.1) manifestação de Estados, Municípios e "demais interessados"

    Prevê o decreto que contra a proposta de demarcação podem se manifestar "Estados e Municípios em que se localize a área…" e "demais interessados". A contestação serviria ao propósito de estes "interessados" requererem "indenização", ou demonstrarem "vícios, totais ou parciais, do relatório" de identificação. Para tanto, apresentariam ao órgão indigenista um documento escrito com a fundamentação de seu pedido e, juntamente com este, as "provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas" (art. 2º, § 8º). É justamente neste ponto, em que se coloca o "contraditório" que surgem com mais clareza a má-fé e inconstitucionalidade do pretendido pelo Decreto.

    Quanto às pessoas a se manifestarem, não é segredo para ninguém o fato de as oligarquias estaduais e municipais representarem ainda hoje pontas-de-lança dos interesses anti-indígenas. Criadas às custas de massacres e expulsões de muitos povos, não são poucas as cidades que creditam o seu "desenvolvimento" à ocupação dessas terras, enquanto que na verdade apenas uma elite privilegiada é que dele se beneficia. Os índios são sistematicamente hostilizados nesses locais e os representantes dessas elites tanto no Executivo quanto no Legislativo e até mesmo no Judiciário, não medem esforços para açambarcar definitivamente as terras indígenas para si e seus apadrinhados. Foi justamente para proteger os indígenas do raio de ação destes interessados que o sistema jurídico brasileiro atribuiu ao plano federal a competência para a ação legislativa, executiva e judicial atinente a estes povos. Incluir Estados e Municípios na possibilidade de contestação às demarcações consiste então ao nosso ver num retrocesso moral e politicamente questionável.

    Quanto aos "demais interessados", podem ser quaisquer pessoas. Não se exige delas, nem dos Estados e Municípios, qualquer condição, qualquer requisito prévio que as habilitem a se manifestar em relação aos autos da demarcação contestada. Assim, nos parece que qualquer um, mesmo que não tenha interesse direto no caso, pode contestar a demarcação. Entretanto, considerando-se constitucionalmente a questão, vemos que Estados, Municípios e outros não poderiam ser considerados na qualidade de "interessados", vez que pelo que determina a Constituição Federal não pode haver interesse de terceiros em terras indígenas, pois os únicos interessados são a União (com relação ao domínio) e os próprios indígenas (em relação à posse e usufruto das riquezas do solo, rios e lagos nelas existentes).

    Em segundo lugar, com relação às "provas". Possibilita o decreto a utilização de "títulos dominiais" como uma das "provas pertinentes". Ora, segundo a Constituição Federal (art. 231, § 6º) "São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse" das terras tradicionalmente ocupadas… Isto significa que a utilização de títulos dominiais, assim como quaisquer outros documentos como contratos de arrendamento, doação etc, é absolutamente inconstitucional.

    Terceiro, quanto aos direitos pleiteados de indenização e demonstração de vícios, não especifica o decreto o tipo de indenização pretendida – se quanto ao valor das benfeitorias ou quanto ao valor da terra. Uma vez que Constituição Federal já determina que as benfeitorias (mas só as derivadas de ocupação de boa-fé) devem ser indenizadas, logo não seria para estes que a possibilidade estaria dirigida, vez que não seria necessário se pleitear indenização de benfeitorias. Estaria dirigida, então, para a pretensão de indenização da terra (imóvel e suas benfeitorias). Mas aí, nesta hipótese, teríamos mais um caso de inconstitucionalidade uma vez que a Constituição reza que "a nulidade e a extinção (dos atos que tenham por objeto a ocupação, a posse e o domínio) não geram direito a indenização ou a ações contra a União.

    Quanto ao prazo para esta contestação, poder-se-ia imaginar que se iniciasse apenas com a publicação do relatório, uma vez que daí é que se teria conhecimento quanto ao que se iria contestar. Seria então aberto um prazo para a contestação. No entanto não é isto que ocorre. A manifestação dos "interessados" pode se dar "desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação do relatório". Desta forma, os trabalhos do antropólogo anteriormente mencionado e do grupo técnico já podem se iniciar sob toda a pressão exercida "legitimamente" por estas contestações. Observe-se, além disso, que não há qualquer disposição no sentido de delimitar essas manifestações, ou seja, quem quiser se manifestar pode fazê-lo por diversas ocasiões e não de uma vez só. Imagine-se o tumulto provocado por esta situação. Enquanto isso, os elementos de prova da ocupação indígena terão que ser levantados e trabalhados dentro de uma prazo bastante exíguo…

    b.2.2) parecer do órgão indigenista oficial

    Encerrado o prazo para as apresentações das contestações, o órgão indigenista passa a ter sessenta dias para a elaboração de pareceres em resposta a estas manifestações contrárias. Findo este prazo, toda a documentação deve ser entregue ao Ministro da Justiça. Imaginemos uma terra indígena com cerca de duzentos grandes e médios invasores, por exemplo, todos ou boa parte deles apresentando as suas razões e "provas pertinentes". Só nesta área seriam então necessários cerca de duzentos pareceres a cargo do órgão indigenista…

    b.3) decisão (art. 2º, § 10º)

    É nas mãos do Ministro da Justiça que o decreto concentra todo o poder para decidir quanto a quem tem razão: se o antropólogo e a equipe técnica ou os terceiros "interessados", ou seja, se a terra vai ou não ser demarcada. A Funai é completamente excluída da decisão. Para tanto, o Ministro tem um prazo de trinta dias dentro dos quais deve ou decidir (aprovando ou rejeitando a demarcação) ou mandar investigar mais quanto a outras questões que estejam postas. Neste último caso ele age determinando a realização de "todas as diligências que julgue necessárias". Dá-se um prazo de 90 dias para o cumprimento destas diligências mas, na verdade, o que se tem aí é mais uma medida protelatória, possibilitada e justificada, é claro, pelos questionamentos trazidos pelo contraditório.

    Se a decisão for favorável à demarcação, ele faz declarar, mediante portaria, a ocupação tradicional indígena. Se não, ele simplesmente devolve os autos para que sejam arquivados pelo órgão indigenista, pelo não atendimento não só ao disposto no § 1º do art. 231 da Constituição (que caracteriza a terra de ocupação tradicional indígena) como a "demais disposições pertinentes". O que seriam estas "demais disposições pertinentes"? Para que considerá-las e não apenas o § 1º do art. 231 da Constituição que é o que realmente interessa para caracterizar a terra como tradicionalmente ocupada ou não? Parece-nos então bastante obscuros os critérios do decreto a serem adotados pelo Sr. Ministro para a decisão com relação ao futuro das terras indígenas.

    b.4) homologação (art. 5º)

    Uma vez realizada a demarcação conforme estabelecido no Decreto (será que alguma chegará a tanto?), esta precisa ainda passar pelo crivo do Presidente da República, que lhe confirmará a validade através de um decreto de homologação. Não há aqui nenhuma novidade ou diferença quanto ao Decreto 22/91.

    b.5) registro (art. 6º)

    Recebendo a homologação do chefe do Executivo Federal, o documento é encaminhado pelo órgão indigenista oficial a registro em cartório imobiliário da comarca onde se localiza a terra indígena e na Secretaria do Patrimônio da União (SPU). A novidade é que o novo decreto estabelece um prazo de trinta dias a contar da data de publicação do decreto de homologação, para que o registro seja efetuado. O Decreto 22/91 não previa este prazo.c) o reassentamento de ocupantes não-indígenas (art. 4º)

    Diz o decreto que será priorizado pelo órgão fundiário federal, mas não diz quando. No caso do Decreto 22/91, este reassentamento já poderia ser feito durante a própria demarcação. Neste sentido o Decreto 22 era mais coerente pois a Constituição Federal determina que os direitos de posse e usufruto dos índios, sendo originários, não dependem da demarcação.d) casos anteriores e pendentes (art. 3º e art. 9º)

    É nestes dois artigos que o Decreto 1.775/96 põe seriamente em risco as demarcações em andamento e as já efetuadas. No art. 3º, ao determinar que a validade das identificações feitas anteriormente dependem de sua compatibilidade com "os princípios estabelecidos" pelo decreto – que são, obviamente, o "contraditório" e a "ampla defesa" aos invasores das terras indígenas, ele praticamente sepulta todos os trabalhos já desenvolvidos de comprovação da ocupação tradicional indígena pelo órgão indigenista. Podemos dizer, portanto, que todas as terras cujos procedimentos administrativos de demarcação já tenham inclusive obtido declaração ministerial de ocupação, podem ser revistas.

    Mais, nem mesmo se estiverem homologadas estas demarcações estarão a salvo. Dispõe o art. 9º do Decreto que basta que nestes casos não tenha havido ainda o registro para que os "interessados" possam manifestar-se, com fundamentação escrita e através de "provas" documentais e testemunhais, para requerer indenizações ou apenas demonstrar vícios do relatório de identificação. Neste caso o prazo para a manifestação destes "interessados" é de noventa dias, a contar da última terça-feira, 09 de janeiro de 1996.

    Nos casos específicos em que estas manifestações atinjam áreas já homologadas e não apenas identificadas ou delimitadas, a decisão sobre o que vai para o Presidente da República a quem o Ministro da Justiça irá propor o que ele entender como "providências cabíveis", como por exemplo a revogação do decreto de homologação, o que significa, entre outras coisas, um atestado de ilegitimidade dos atos praticados pela administração pública.e) índios isolados (art. 7º)

    No caso específico das áreas onde se localizem grupos indígenas isolados, mais um absurdo é declarado pelo decreto: ao invés de determinar ou possibilitar a tomada de providências para a salvaguarda da integridade física e cultural destes grupos (extremamente vulneráveis nos casos de contatos com os regionais) através de medidas especiais ou adequadas de proteção, o decreto, inversamente prevê a possibilidade de "disciplinamento" do ingresso e trânsito de terceiros nestas áreas, ou seja, admitindo a possibilidade, em último caso, de sua invasão, e mais, colocando que o órgão indigenista "poderá" (e não "deverá") tomar as providências necessárias à proteção dos índios. O dispositivo serve, ademais, de pretexto ao ressurgimento da intenção do governo em fazer uso do poder de polícia para arvorar-se no direito a conceder ou não permissão para o ingresso em terra indígena.f) as instruções necessárias à execução do decreto (art. 8º)

    São atribuídas ao Ministro da Justiça e não ao Presidente da Funai como se previa o Decreto 22/91, num exemplo da concentração de poderes nas mãos daquele.

    III. Resumo

    Em resumo o Decreto nº 1.775 de 09 de janeiro de 1996:

    – transforma o procedimento da administração pública Federal de explicitação de limites da ocupação tradicional indígena em "processo", ou seja, inclui no seu âmbito a contestação por parte de Estados, Municípios e quaisquer "interessados";

    permite que nestas contestações sejam admitidos como meio de prova títulos de propriedade e outros, que a Constituição Federal em art. 231 § 6º já considera nulos, extintos e sem efeitos jurídicos justamente por terem por objeto a ocupação, domínio e posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios;

    desconsidera, por conseguinte, a mesma Constituição Federal segundo a qual os índios possuem direitos originários de posse permanente sobre a terra e usufruto exclusivo de suas riquezas naturais de solo, rios e lagos e que esses direitos são também inalienáveis, imprescritíveis e indisponíveis;

    considera legítima a pretensão de Estados, Municípios e quaisquer "interessados" requererem indenização contra a demarcação, quando a própria Constituição Federal exclui essa possibilidade ao dizer que não geram a nulidade e extinção dos títulos de terceiros em terras indígenas, "direito a indenização ou a ações contra União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé";

    permite que as contestações sejam feitas a qualquer momento e por diversas oportunidades, desde o início da identificação e delimitação da área até noventa dias após a publicação de seu relatório, fazendo com que estes trabalhos, destinados à comprovação da posse indígena se dêem sob grande pressão e tumulto;

    condiciona a proteção da posse indígena à demarcação, ao excluir a previsão de reassentamento de posseiros concomitantemente aos trabalhos demarcatórios (na vigência do Decreto 22/91 o reassentamento simultâneo era previsto);

    permite que sejam revistos, a pedido de quaisquer "interessados" todos os trabalhos demarcatórios ainda em andamento e até mesmo as áreas homologadas e não registradas; manifestações contra as homologações assinadas na vigência do Decreto 22/91 poderão ser feitas num prazo de noventa dias, contados a partir da data da publicação do Decreto 1.775, ou seja, 09 de janeiro último;

    exclui a possibilidade de revisão (para ampliação) de terras insuficientes para a sobrevivência de povos indígenas, antes previsto pelo Decreto 22/91;

    permite a utilização de ingresso e trânsito de terceiros em terras onde existam grupos indígenas isolados ao mesmo tempo em que desobriga a Funai quanto às providências necessárias à sua proteção, inversamente ao que colocava o Decreto 22/91;

    concede extremos poderes ao Ministro da Justiça a quem cabe, inclusive, determinar o arquivamento do processo de demarcação não apenas por entender não caracterizada a ocupação tradicional indígena mas também por outros motivos não especificados.

    IV. Conclusões

    Este elenco de medidas, inconstitucional em seus pontos mais importantes, vem apenas comprovar que a verdadeira preocupação do Presidente Fernando Henrique Cardoso e do Ministro Nelson Jobim com o Decreto 22/91 nunca foi a constitucionalidade ou não do mesmo, mas o aproveitamento da oportunidade para golpear os direitos constitucionais dos povos indígenas à terra, criando obstáculos à sua efetivação. O Decreto 1.775 de 08 de janeiro de 1996, transforma em letra morta vários dispositivos constitucionais referentes aos direitos indígenas, abrindo as terras do patrimônio público à sanha especulativa de interesses particulares e escusos, ao mesmo tempo em que induz a manutenção e acirramento de conflitos entre índios e pequenos posseiros.

    Além disso, faz jogar por terra, através da possibilidade de revisão das identificações, delimitações e homologações, o investimento (humano e financeiro) que já se empenhou em todos estes anos. Vidas de indígenas e de missionários abnegados, bem como recursos públicos, nacionais e estrangeiros, são assim jogados fora.

    A medida atinge inclusive as homologações assinadas na sexta-feira anterior à publicação do Decreto. As 17 homologações, referentes a terras indígenas nos Estados do Amazonas, Acre, Bahia, Pernambuco, Roraima, Pará, Mato Grosso e Rio de Janeiro, foram feitas nesta oportunidade com o objetivo de divulgar positivamente a imagem do Governo e anular ou amenizar as reações contrárias ao novo Decreto. Contudo são também passíveis, desde a última segunda-feira (08 de janeiro), de serem questionadas por quaisquer interessados e depois revogadas. É importante inclusive que as comunidades e povos a que se referem estas homologações sejam devidamente informados quanto a esta circunstância.

    Trata-se, portanto, de um grande retrocesso em termos de política indigenista e uma grande vitória dos interesses antiindígenas, que nunca desistiram do seu intento de se apoderar, definitivamente, das terras indígenas e suas riquezas naturais.

    Recife-PE, 11 de janeiro de 1996.

    Rosane Lacerda
    Assessora Jurídica do Conselho Indigenista Missionário – Cimi

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  • 20/06/2004

    Exploração Mineral em Terras Indígenas – PL 1610-A, de 1996, por Paulo Machado Guimarães

    Proposição inconstitucional e lesiva aos direitos e interesses dos Povos Indígenas

    O PL 1610-A, de 1996, dispõe sobre a exploração e o aproveitamento de recursos minerais em terras indígenas, de que tratam os artigos 176, § 1º e 231, § 3º da Constituição Federal.

    Em síntese, o Projeto em questão, na redação aprovada pelo Senado Federal sugere que:

    1. a autorização para pesquisa e a concessão para a lavra mineral em terra indígena seja feita apenas por empresa brasileira constituída nos termos da CF e a garimpagem somente será permitida aos índios;

    2. o Poder Executivo declare a disponibilidade de áreas em terras indígenas para requerimento de autorização de pesquisa e concessão de lavra, mediante edital que estabelecerá os requisitos a serem atendidos pelos requerentes;

    3. o edital seja elaborado pelos órgãos federais de gestão dos recursos minerais (DNPM) e de assistência aos índios (FUNAI), com base em parecer técnico conjunto caracterizando a área como apta à mineração e apoiado em laudo antropológico específico e contenha memorial descritivo da área, critérios para habilitação à prioridade, condições técnicas, econômicas, sociais, ambientais e financeiras, bem como outras condições relativas à proteção dos direitos e interesses da comunidade indígena afetada;

    4. as condições financeiras incluam o pagamento às comunidades indígenas de: renda por ocupação do solo; e participação nos resultados da lavra, em percentual não inferior a 2% do faturamento bruto resultante da comercialização do produto mineral. A receita proveniente da participação dos índios no resultado da lavra seria aplicada em benefício direto e exclusivo de toda a comunidade indígena afetada, segundo plano de aplicação previamente definido;

    5. a audiência da comunidade indígena envolvida seja feita pelo órgão federal de assistência aos índios (FUNAI), com a possibilidade de participação da empresa declarada prioritária – art. 10;

    6. eventuais impasses que surjam quando da negociação do contrato a ser firmado entre a empresa e a comunidade sejam resolvidos por arbitragem;

    7. concluído o procedimento administrativo, o Poder Executivo remeteria o processo ao Congresso Nacional para que autorize, através de Decreto Legislativo a efetivação dos trabalhos de pesquisa, ficando à cargo do DNPM a outorga do alvará de pesquisa – arts. 11 e 12;

    8. concluída a pesquisa, o titular da autorização poderá requerer a concessão de lavra, instruindo o pedido com contrato firmado entre a empresa mineradora e a comunidade indígena afetada, com a assistência do órgão indigenista federal, no qual fiquem estabelecidas todas as condições para o exercício da lavra e pagamento da participação dos índios nos resultados da lavra – art. 13;

    9. a outorga dos direitos para a execução da lavra, expedida pela autoridade competente, com estrita observância dos termos e condições da autorização do Congresso Nacional e das demais exigências desta Lei e da legislação mineral, ambiental e de proteção aos índios – art. 14;

    10. o Ministério Público acompanhe todos os procedimentos previstos nesta lei – art. 15;

    11. a União faça um levantamento geológico básico – art. 16;

    12. seja assegurada a análise, pelo DNPM, para efeito de declaração de prioridade, dos requerimentos apresentados antes da vigência da CF/88 – art. 18 e 19. A esses requerimentos, considerados prioritários, o § 1º do art. 19 estabelece que "poderão pleitear a concessão de pesquisa e a autorização de lavra sem submeter-se aos procedimentos de disponibilidade previstos nos arts. 4º, 5º e 9º". Ainda nesses casos, o § 4º do art. 19 prevê que os requerimentos prioritários poderão ser sobrestados caso a atividade mineral seja considerada prejudicial à comunidade indígena afetada, em laudo antropológico ou em RIMA. Da mesma forma o Congresso Nacional poderá, nesses casos não autorizar a mineração na área correspondente ao requerimento da empresa declarada prioritária e determinar que o DNPM indefira o pedido.

    A Constituição prevê no § 1º do art.176, que a pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas.

    A autorização para a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais em terras indígenas é, nos termos do art.49-XVI da CF, de competência exclusiva do Congresso Nacional, a quem cabe, pelo disposto no § 3º do art.231 da CF, ouvir as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

    Considerando estes parâmetros constitucionais, o PL 1610-A/96 incorre em flagrante inconstitucionalidade, na medida em que: restringe, no seu art.3º a exploração mineral às empresas brasileiras, quando o texto constitucional assegura esta possibilidade aos brasileiros, enquanto pessoas naturais; prevê, no seu art. 10, que o órgão indigenista federal ouvirá as comunidades indígenas afetadas, retirando esta atribuição do Congresso Nacional; não dispõe sobre as condições específicas para realização de pesquisa e lavra em terras indígenas, conforme exigência constante no § 1º do art.176 da CF, tratando-se de efetiva reserva legal.

    A concepção do projeto consiste em definir, administrativamente todas as questões relativas a exploração mineral em terras indígenas, para apenas submeter sua decisão à autorização do Congresso Nacional.

    Atente-se que é o Poder Executivo quem: declara a disponibilidade de determinada área em terra indígena para sua exploração; escolhe a empresa que irá ter direito a preferência para a pesquisa e lavra, através de escolha; ouve as comunidades indígenas; fixa as condições específicas para a atividade minerária em terra indígena.

    Na realidade, o texto constitucional conformou um tratamento especial em relação a exploração mineral em terras indígenas, deslocando o poder autorizativo do Poder Executivo para o Poder Legislativo, exatamente por entender que as graves repercussões e os fortes interesses econômicos sobre esta matéria exigem uma aferição mais detalhada e pública, que somente pode ser feita pelo Congresso Nacional, a quem se atribuiu competência exclusiva, impedindo, nos termos do § 1º do art.68 que seja objeto de delegação.

    O correto tratamento desta matéria, em respeito ao disciplinamento constitucional seria:

    1. a definição inicial pelo Congresso Nacional quanto ao interesse nacional na exploração de determinado minério encontrado em uma terra tradicionalmente ocupada por índios;

    2. audiência da comunidade ou das comunidades indígenas envolvidas, pelo Congresso Nacional;

    3. análise, através de Comissão Mista, quanto à conveniência e oportunidade para a autorização, considerando as especificidades étnicas e culturais do grupo indígena envolvido e a efetiva necessidade para o país na exploração mineral em questão;

    4. definição de condições específicas peculiares à comunidade indígena envolvida;

    5. deliberação, caso a caso, pelo plenário do Congresso Nacional.

    Superada estas fases, o Poder Executivo poderia proceder a escolha do brasileiro ou da empresa brasileira interessada na exploração mineral, sempre através de procedimento licitatório, emitindo-se a devida autorização para a pesquisa e posteriormente, firmando-se o correspondente contrato de concessão de lavra, remetendo-se ao Congresso os relatórios relativos a atividade minerária.

    A previsão de que os requerimentos para autorização de pesquisa ou para concessão de lavra protocolados antes da vigência da Constituição promulgada em 1988 sejam considerados prioritários caracteriza outra efetiva afronta ao texto constitucional, já que não existe direito adquirido contra determinação constitucional.

    Todos os requerimentos apresentados até a vigência da lei que dispuser sobre a exploração mineral em terras indígenas deverão ser arquivados, por não terem qualquer base legal para sua sustentação.

    Cumpre assinalar ainda, que este Projeto de Lei constitui um capítulo do Substitutivo aprovado pela Comissão Especial constituída na Câmara dos Deputados para apreciar e deliberar em caráter conclusivo sobre os Projetos de Lei que dispõem sobre a nova legislação indigenista, substituindo o atual Estatuto do Índio (lei 6001/73), cujo Relator foi o Deputado Luciano Pizzato (PFL/PR).

    Este Substitutivo e os projetos que lhe deram origem (PL 2057/91, 2061/91 e 2069/92 e outros apensados) aguardam deliberação do Plenário da Câmara quanto a recurso interposto contra a decisão da Comissão Especial.

    Tendo em vista a necessidade de que a exploração mineral em terras indígenas seja regulamentada no conjunto dos demais aspectos tratados no Substitutivo mencionado acima, que dispõe sobre o "Estatuto das Sociedades Indígenas", seria mais conveniente e adequado que o PL 1610-A/96 fosse apreciado em conjunto com o PL 2057/91.

    Brasília, junho de 2002.

    Paulo Machado Guimarães
    Advogado e Assessor Jurídico do Cimi

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  • 20/06/2004

    O Governo Lula e a visão dos Povos Indígenas como “potenciais de risco à estabilidade institucional”, por Rosane Lacerda

    I – Introdução

    Desde os primórdios da formação do Estado Brasileiro, as populações indígenas sempre foram objeto de atenção da esfera militar de governo.

    Ao longo do Século XX esse interesse pela questão indígena sempre esteve presente, variando de intensidade conforme o grau de interferência dos militares na condução política do país. Em 1934, por exemplo, o Decreto n.º 24.700, de 12 de julho de 1934, chegou mesmo a subordinar o Serviço de Proteção aos Índios – SPI, ao Ministério da Guerra.

    Sucedendo o SPI em 1967, a Fundação Nacional do Índio – Funai, foi durante cerca de quinze anos comandada por militares: Oscar Jeronymo Bandeira de Mello, Ismarth Araújo de Oliveira, João Carlos da Veiga, Paulo Moreira Leal, Gérson da Silva Alves, Airton Alcântara e Cantídio Guerreiro Guimarães.

    Em 1983, através do Decreto n.º 88.118, o General J.B. Figueiredo, então Presidente da República, instituiu, no âmbito do procedimento administrativo de demarcação das Terras Indígenas, o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI).

    O “grupão”, como era chamado, tinha em sua composição o Ministro Extraordinário para Assuntos Fundiários (MEAF), cujo titular – o General Danilo Venturini, acumulava também a função de Secretário-Geral do Conselho de Segurança Nacional.

    Nos termos do Decreto 88.118/83, cabia ao “grupão” a apreciação das propostas de demarcação das terras indígenas formuladas pela Funai, e aos Ministros do Interior e do MEAF a decisão quanto às demarcações.

    Pouco depois, já sob o advento de José Sarney na Presidência da República, o processo de militarização da questão indígena foi aprofundado, na criação do “Projeto Calha Norte”, e na edição dos Decretos n.º 94.945/87 e 94. 946/97.

    Elaborado por um GT Interministerial formado por solicitação da Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional – SGCSN, o Projeto Calha Norte avocava  o controle da política indigenista do governo federal. 

    Um ano mais tarde, em 1987, as concepções da SGCSN acabaram sendo expressas nos Decretos n.º 94.945/87 e 94. 946/87, o primeiro dando nova sistemática ao procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, e o segundo estabelecendo tipos diferentes de terras indígenas (terras indígenas e “colônias indígenas”) a serem demarcadas e tratadas de modo distinto pelo Estado, conforme um suposto “grau de aculturação”das comunidades indígenas. 

    O Dec. 94.945/97 ampliou mais ainda a órbita de interferência militar nos procedimentos administrativos de demarcação, instituindo, para os trabalhos de identificação e delimitação, uma Equipe Técnica formada por representantes de diversos órgãos, inclusive da Secretaria-Geral do Conselho de Segurança acional, mais tarde substituída pela Secretaria de Assessoramento da Defesa Nacional – Saden, da Presidência da República. Além da Equipe Técnica, a proposta de demarcação elaborada pela Funai deveria ser submetida, ainda, ao “Grupão Interministerial”, concebido originalmente pelo General Danilo Venturini (1983), devendo, ao final, ser decidida pelos Ministros da Agricultura e do Interior, e, em se tratando de Faixa de Fronteira, também pelo Secretário-Geral da Seden-PR, à época o General-de-Brigada Rubem Bayma Denys.

    Mesmo o processo de democratização, com a assunção de dirigentes civis, eleitos pelo voto popular, não tem sido suficiente para desfazer a questão indígena como objeto de interesse militar.

    Pouco antes do término de seu mandato, o então Presidente Fernando Henrique Cardoso editou o Decreto n.º 4.412, de 7 de outubro de 2002,  através do qual passou a dispor sobre a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal nas terras indígenas. O decreto passou a permitir a ambas as instituições não apenas o ingresso e trânsito em terra indígena para operações e deslocamento, estacionamento, patrulhamento, policiamento e demais operações e para atividades relacionadas a segurança e integridade do território nacional, garantia da lei e da ordem e segurança pública (art. 1.º, I), e “implantação de programas e projetos de controle e proteção da fronteira” (art. 1.º, III) como passou também a permitir, nas terras indígenas, a

    instalação e manutenção de unidades militares e policiais, de equipamentos para fiscalização e apoio à navegação aérea e marítima, bem como das vias de acesso e demais medidas de infra-estrutura e logística necessárias” (art. 1.º, II) (Grifamos.) 

    Nos termos do Decreto, essa instalação de unidades militares e policiais em terras indígenas fica condicionada ao encaminhamento prévio de plano de trabalho à Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional (art. 2.º), a quem caberá facultativamente, e não obrigatoriamente, solicitar manifestação da Fundação Nacional do Índio – Funai acerca de eventuais impactos em relação às comunidades indígenas das localidades objeto das instalações (art. 2.º, parágrafo único)

    Agora, a Portaria n.º 15 – CH/GSI, de 11 de maio de 2004,  do Ministro Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, vem designar, no âmbito da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional, do Conselho de Governo, a criação de Grupo de Trabalho destinado a propor uma nova política indigenista.

    Veremos aqui como esta proposta encontra-se delineada, e o significado que possui  como movimentação tendente à implementação de uma política indigenista focada na ótica de sustentação de interesses e concepções  militares.

    II – O Conselho de Governo e a Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional.

    A Lei n.º 10.683, de 28 de maio de 2003,  que trata da “organização da Presidência da República e dos Ministérios e dá outras providências”, dispõe em seu art. 7.º quanto à existência do Conselho de Governo, a quem atribui a competência para 

    assessorar o Presidente da República na formulação de diretrizes de ação governamental”. 

    Nos termos do inciso II do mencionado dispositivo, o Conselho possui, como um de seus níveis de atuação, as denominadas Câmaras do Conselho de Governo

    criadas em ato do Poder Executivo, com a finalidade de formular políticas públicas setoriais cujo escopo ultrapasse as competências de um único Ministério”. 

    Encontram-se hoje em funcionamento as seguintes Câmaras do Conselho de Governo: 

              Câmara de Política Econômica  (Decreto n.º 4.182, de 04/04/2002);

              Câmara de Políticas de Infra-estrutura (Decreto s/n.º, de 21/03/2003);

              Câmara de Política Social (Decreto n.º 4.714, de 30/05/2003);

              Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Decreto n.º 4.766, de 26/06/2003);

              Câmara de Política de Recursos Naturais (Decreto n.º 4.792, de 13/07/2003);

              Câmara de Políticas de Integração Nacional e Desenvolvimento Regional (Decreto n.º 4.793, de 23/07/2003)

              Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional (Decreto n.º 4.801, de 06/08/2003);

              Câmara de Comércio Exterior (Camex) (Decreto n.º 4.732, de 10/09/2003);

              Câmara de Política Cultural, criada pelo (Decreto n.º 4.890, de 21/11/2003);

              Comissão Executiva Interministerial – Biodiesel (Decreto s/n.º, de 23/12/2003). 

    A Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional – Creden, um dos níveis de atuação do Conselho de Governo, foi criada originalmente ainda no governo FHC, pelo Decreto n.º 1.895, de 06 de maio de 1996, com o objetivo de “formular políticas, estabelecer diretrizes, aprovar e acompanhar os programas a serem implantados, no âmbito das matérias correlacionadas”, tendo como seus temas específicos, a cooperação internacional em assuntos de segurança e defesa (I); a integração fronteiriça (II); populações indígenas e direitos humanos (III); operações de paz (IV); narcotráfico e outros delitos de configuração internacional (V); imigração (VI) e atividades de inteligência (VII). 

    Em sua composição inicial, a Creden contava com a participação dos ministros de Estado da Casa Civil da Presidência da República, da Justiça, das Relações Exteriores, da Casa Militar da Presidência da República, do Estado-Maior das Forças Armadas, do Exército, da Marinha, da Aeronáutica,  e do Secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Nos termos do art 3.º do Decreto, cabia à Casa Militar da Presidência da República exercer as atividades de Secretaria-Executiva da Câmara. 

    Em 1999 a Creden  foi reformatada pelo Decreto 3.203, de 08 de outubro de 1999, que manteve sob sua esfera de competência os mesmos temas antes elencados, entre os quais “populações indígenas e direitos humanos”.  O Decreto de 1999 no entanto, acresceu ao seu art. 1.º, parágrafo único no qual dispôs caber também à Câmara: 

    o permanente acompanhamento e estudo de questões e fatos relevantes, com potencial de risco à estabilidade institucional, para prover informações ao Presidente da República.” 

    A Câmara passou então a ser composta pelos Ministros de Estado da Casa Civil da Presidência da República, da Justiça, das Relações Exteriores, da Defesa e do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, garantindo-se a participação, nas reuniões, dos Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica (art. 2.º, incisos e § 1.º). Ao Gabinete de Segurança Institucional atribuiu-se, no mesmo Decreto, as funções de presidência e Secretaria-Executiva da Câmara (art. 3.º). 

    Sete meses após o início do governo Lula, a Creden passou por nova regulamentação, através do Decreto n.º 4.801, de 06 de agosto de 2003. Manteve-se o mesmo elenco dos temas pertinentes – inclusive a referência aos fatos relevantes com potencial de risco à estabilidade institucional – apenas desmembrando-se os temas  populações indígenas” e “direitos humanos”. 

    O Dec. 4.801/03 alterou também a composição da Câmara acrescentando, aos Ministros de Estado da Justiça, Defesa, Relações Exteriores, Casa Civil da Presidência da República e Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, os Ministros do Planejamento, do Orçamento e Gestão, do Meio Ambiente e da Ciência e Tecnologia, este último incluído pelo Dec. 5.064/2004. Também dispõe o Dec. 4.801/03 serem convidados para participar das reuniões, em caráter permanente, os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica (art. 2.º, § 1.º). 

    Ainda nos termos do Dec. 4.801/03 (art. 3.º), a Câmara passou a dispor de Comitê Executivo,  com a finalidade de acompanhar a implementação das suas decisões. Compõem o Comitê Executivo da Creden, o Subchefe Militar do Gabinete de Segurança Institucional; o Secretário-Executivo da Casa Civil; o Subchefe de Coordenação da Ação Governamental da Casa Civil; o  Secretário-Geral do Ministério das Relações Exteriores; o Secretário-Executivo do Ministério da Justiça; o Secretário-Executivo do Ministério do Planejamento; o Secretário-Executivo do Ministério do Meio Ambiente; o Secretário de Acompanhamento e Estudos Institucionais do Gabinete de Segurança Institucional; o Chefe de Gabinete do Ministro da Defesa; um representante do Comando da Marinha, um do Comando do Exército e um do Comando da Aeronáutica e o Secretário-Executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia. 

    Como se vê, a Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional possui, desde o seu nascedouro, um enfoque voltado essencialmente para questões afetas à área militar e policial: segurança e defesa, fronteiras, narcotráfico e outros crimes de configuração internacional, atividades de inteligência e operações de paz. 

    Daí haver em sua composição uma presença majoritária do segmento militar: Ministros do Exército, Marinha, Aeronáutica, Estado-Maior das Forças Armadas e Casa Militar da Presidência da República (Dec. 1895/96); Ministros da Defesa e Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, e Comandantes da Marinha, Exército e Aeronáutica (Dec. 4.801/03). 

    Não se pode deixar de estranhar, portanto, a inclusão dos temas “direitos humanos” e “populações indígenas” no rol de especificidades temáticas da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional. Considerando-se os enfoques essencialmente sociais que ambos os temas carregam, não seria de modo algum impertinente que tivessem sido incluídos no âmbito de atribuições de outra Câmara do Conselho de Governo, a Câmara de  Política Social, instituída pelo Dec. n.º 4.714/03. 

    Optou no entanto o Governo Lula por não incluir as questões DDHH e populações indígenas no âmbito de preocupações da Câmara de Política Social. Ao invés disso, preferiu submetê-los à esfera de atuação da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional, de perfil essencialmente militar. 

    No que tange à questão indígena, essa opção pela Creden certamente indica haver uma predominância, na direção do atual governo, de uma concepção que entende as populações indígenas como fator de risco para a segurança e a soberania do país. Tal idéia não é nova, subsiste desde os primórdios da formação do Estado Brasileiro, e  teve no século passado exemplos como a vinculação do Serviço de Proteção ao Índio – SPI, ao Ministério da Guerra, e a submissão da direção da Fundação Nacional do Índio – Funai, a presidentes militares. 

    Além disso, causa estranheza que, embora o tema “direitos humanos” faça parte do rol daqueles afetos à Creden, o Ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República – SEDH-PR, não tenha sido incluído na sua composição.

    III – As portarias de 12 de maio, da Creden

    Prevê o Decreto n.º 4.801/2003 (art. 4.º) a possibilidade de serem “criados grupos técnicos com a finalidade de desenvolver ações específicas necessárias à implementação das decisões da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional.” 

    Assim, na quarta-feira 12 de maio, a Seção 2 do Diário Oficial da União – DOU, publicou as portarias de números 13, 14, 15 e 16, assinadas no dia anterior pelo presidente da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional, o Ministro de Estado Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, General Jorge Armando Félix. 

    Destinam-se as quatro portarias à criação de Grupos Técnicos – GTs, para o tratamento de matérias específicas à área de competência da Câmara. A Portaria n.º 13  constitui Grupo Técnico para acompanhamento permanente da atividade nuclear no Brasil”; a Portaria n.º 14constitui Grupo Técnico para elaborar proposta legislativa, regulando o § 2.º do art. 20 da Constituição”; a Portaria n.º 15  constitui Grupo Técnico para elaborar uma nova proposta de Política Indigenista”; e a Portaria n.º 16constitui Grupo Técnico para elaborar uma proposta de Política de Contraterrorismo”. 

    Para o GT destinado ao acompanhamento permanente à atividade nuclear, prevê a Portaria n.º 13 a participação de 04 representantes dos Ministérios que compõem a Creden: Segurança Institucional, Defesa, Relações Exteriores e Ciência e Tecnologia. 

    A Portaria n.º 14, que institui GT para propor legislação referente à Faixa de Fronteira, determina a participação de 05 dos ministérios componentes da própria Creden (Segurança institucional, Casa Civil, Justiça, Defesa e Relações Exteriores), bem como a inclusão de representantes dos Comandos da Marinha, Exército e Aeronáutica. Inclui também a participação de representantes dos Ministérios das Minas e Energia, Comunicações e Desenvolvimento Agrário, e da Agência Brasileira de Inteligência – ABIN. 

    No caso do GT instituído para propor nova Política Indigenista, a Portaria n.º 15 determina que seja composto por 06 dos ministérios que compõem a Creden (Segurança institucional, Casa Civil, Justiça, Defesa e Relações Exteriores e Planejamento, Orçamento e Gestão), mais os Comandos do Exército, Marinha e Aeronáutica, a Agência Brasileira de Inteligência – ABIN,  e os Ministérios da Educação e Minas e Energia, e Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Também fazem parte do GT representantes da Fundação Nacional do Índio  – Funai, e Departamento de Polícia Federal – DPF, ambos vinculados ao Ministério da Justiça. 

    Quanto ao GT destinado à formulação de uma proposta de Política Contraterrorismo, sua composição, conforme a Portaria n.º 16, é formada por representantes da Casa Civil, Ministérios da Justiça, Defesa, Relações Exteriores, Segurança Institucional, e pelos Comandos do Exército, Marinha e Aeronáutica. 

    A designação de tais membros dos GTs (titulares e suplentes), conforme o § 2o do art. 4.º do Dec. 4.801/03,  fica a cargo do Ministro de Estado Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, mediante proposta dos Ministros de Estado a que estiverem subordinados. 

    Importante observar, no que concerne à composição dos mencionados GT’s, através das respectivas portarias, a total ausência de previsão de participação de representantes do Ministério do Meio Ambiente – MMA, cujo Ministro de Estado – atualmente a Ministra Marina Silva, constitui membro da Câmara de Conselho de Governo. 

    À exceção do GT para acompanhamento permanente da atividade nuclear (Port. n.º 13), aos demais foi conferido o prazo de 60 (sessenta) dias para a conclusão de seus trabalhos. 

    IV – O GT de Política Indigenista da Creden

    Conforme vimos anteriormente, através da Portaria n.º 15 – CH/GSI, de 11 de maio de 2004, o Ministro Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República instituiu Grupo de Trabalho como objetivo de formular, à Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional, uma proposta de nova política indigenista. 

    Um primeiro aspecto a ser considerado a respeito deste GT é quanto à sua composição. Como vimos, parte de seus integrantes é constituída por representantes dos Ministérios cujos titulares têm assento na Câmara – Segurança Institucional, Casa Civil, Justiça, Defesa, Relações Exteriores e Planejamento, bem como os Comandos do Exército, Marinha e Aeronáutica. No entanto, o Dec. 4.801/03, que instituiu a Creden, dispõe, quanto à criação dos Grupos Técnicos, que deles 

    poderão participar representantes de outros órgãos ou de entidades públicas e privadas” (art. 4.º, § 1.º). 

    Assim, foram também designados a compor o GT representantes dos Ministérios da Educação e Minas e Energia, Secretaria Especial de Direitos Humanos, como também ABIN, Funai e Departamento de Polícia Federal. 

    Desta composição chama a atenção imediatamente a ausência de representantes de alguns Ministérios. Primeiramente, o do Meio Ambiente que, além de ser um dos integrantes da Câmara conforme o art. 2.º, inc. VII do Decreto n.º 4.801/03, é também pasta responsável por uma das temáticas mais vinculadas à questão indígena. É, portanto, completamente incompreensível que representantes do MMA não tenham sido indicados a compor o GT responsável pela formulação da política indigenista. 

    Em segundo lugar, são também incompreensíveis as ausências, no referido GT, de representantes do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, e do Ministério da Saúde – MS, bem como de seus órgãos vinculados –  o Incra e a Funasa, respectivamente. Como é público e notório, a questão indígena possui um de seus principais focos de atenção na questão da terra, ficando ao alcance do Incra e do MDA uma importante parcela de contribuição na solução e mesmo na prevenção de conflitos fundiários entre indígenas e pequenos ocupantes de suas terras. Portanto a formulação de uma política indigenista focada na prevenção e solução de tais conflitos precisa, necessariamente, envolver a discussão e o planejamento deste setor em específico. 

    No mesmo sentido temos também no Ministério da Saúde, através da Funasa, a responsabilidade atual pelo atendimento à saúde dos Povos Indígenas. A reflexão quanto a esta forma de assistência em específico necessita, sem sombra de dúvida, fazer parte do conjunto de preocupações voltadas para a formulação da política indigenista. 

    Embora seus Ministros não façam parte da Câmara, representantes do MDA e do MS poderiam ter sido, conforme permite o § 1.º do  art. 4.º do Dec. 4.801/03, designados a integrar o GT, a exemplo do que ocorreu com os Ministérios da Educação e das Minas e Energia. É incompreensível que Pastas com tanta repercussão sobre a realidade indígena não tenham sido contempladas na composição do GT encarregado da elaboração de uma proposta de nova política indigenista. 

    Ademais, o mencionado dispositivo do Dec. 4.801/03 permitiria, inclusive, fossem designados a participar do GT, representantes de órgãos públicos não pertencentes ao Poder Executivo, bem como de entidades privadas. Isto possibilitaria, por exemplo, a participação de representantes do Ministério Público Federal. O MPF, que por disposição constitucional tem como uma de suas funções institucionais a defesa judicial dos direitos e interesses das populações indígenas (CF/88, art.129, inc.V) tem papel altamente relevante na discussão em torno de uma nova política indigenista. É incompreensível que tenha sido deixado de fora do GT pelo Ministro Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. 

    De igual modo seria também possível a designação, para a composição do GT, de representantes de legítimas e autênticas organizações indígenas. Aliás, é de se levar em conta que a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, sobre povos indígenas e tribais em países independentes, recentemente promulgada pelo Decreto n.º 5.051, de 19 de abril de 2004, tem como um de seus princípios fundamentais o direito de participação dos povos indígenas nas decisões que lhes digam respeito. Neste sentido, a ausência de representantes dos povos indígenas na composição do GT sobre política indigenista vem em descumprimento a este preceito instituído pela Convenção 169 da OIT, à qual aderiu o estado brasileiro. 

    Cabe observar ainda a opção pela não inclusão, no GT de política indigenista, de representantes de organizações indigenistas com larga experiência na questão. A propósito, mesmo antes da posse do governo Lula, tais entidades já vinham se manifestando acerca da necessidade de formulação de uma política indigenista para o país. O Conselho Indigenista Missionário – Cimi, chegou por exemplo a apresentar ao Ministro da Justiça, já em 13 de janeiro de 2003,  a proposta de criação de um Conselho Superior de Política Indigenista – Copind. 

    Chama a atenção ainda que, ao mesmo tempo em que tais entidades, órgãos e ministérios civis são alijados do processo de discussão quanto à nova política indigenista, na mesma são incluídos representantes da Agência Brasileira de Inteligência – ABIN, com assento também no GT relativo a Faixa de Fronteira. Entre as competências da ABIN, fixadas pela Lei n.º 9.883, de 07 de dezembro de 1999, encontram-se o planejamento e execução da proteção de 

    conhecimentos sensíveis, relativos aos interesses e à segurança do Estado e da sociedade”, e a avaliação  das “ameaças, internas e externas, à ordem constitucional” (art. 4.º, incisos II e III). 

    Ainda como se vê na página da Agência na rede Internet, cabe à mesma a 

    coordenação do fluxo de informações necessárias às decisões de Governo, no que diz respeito (…) às ameaças, reais ou potenciais, para os mais altos interesses da sociedade e do País” (http://www.abin.gov.br). 

    Curioso é que apesar de tais atribuições, a ABIN sequer faz parte do GT sobre política “contraterrorismo”, assim como também não teve representantes designados para compor o GT de  “energia nuclear”, temáticas com as quais possui toda afinidade. A questão indígena, entretanto, foi colocada como alvo de sua atenção, o que indica estar sendo (mal)compreendida como ameaça, real ou potencial, para os mais altos interesses da sociedade e do País. Daí porque a questão ter sido colocada no âmbito da Câmara do Conselho de Governo afeta aos interesses militares, e não na Câmara de Política Social. 

    Um segundo enfoque bastante revelador do modo equivocado como a questão indígena é vista e tratada pelo Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República é dado pela análise do conteúdo temático do GT. 

    O caput do art. 1.º da Portaria n.º 15 elenca os seguintes temas a serem objeto de consideração do GT para a formulação de proposta de nova política indigenista: 

    “I – estudos regionais sobre os interesses de Governo e os das populações indígenas, nas Terras Indígenas;

    II – exploração de recursos naturais em Terras Indígenas;

    III – questões relativas à existência de Terras Indígenas em faixa de fronteira e a defesa do território nacional;

    IV – modificações legislativas que se fazem necessárias no Estatuto do Índio;

    V – implicações do crescimento demográfico das populações indígenas;

    VI – novo papel da Fundação Nacional do Índio – Funai; e

    VII – soluções possíveis para municípios criados em terras indígenas.” 

    Este elenco de temas, e a forma como é expresso, torna ainda mais preocupante a condução da elaboração da proposta de política indigenista, dada pelo Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República – GSI-PR, e os objetivos que pretende alcançar. 

    Como se vê, emerge como primeira preocupação temática elencada, a consideração de “estudos regionais” sobre os “interesses de Governo nas terras indígenas”. 

    A idéia de que uma política indigenista possa ser calcada em “interesses de governo nas terras indígenas”, constitui um enorme retrocesso político. Além disso, contraria completamente o mandamento constitucional que garante aos índios poderem viver livremente em suas terras, conforme seus usos, costumes e tradições, sem a interferência de interesses de terceiros. Além do mais, o item I passa a idéia de um antagonismo de interesses, que deve ser solucionado: de um lado os “interesses de governo nas terras indígenas”; do outro os “interesses das populações indígenas” nas mesmas terras. Qual dos dois pesará mais na balança da política indigenista? 

    Preocupa também que a proposta de política indigenista venha a ser, como pretende o GSI – PR, baseada na “exploração dos recursos naturais em Terras Indígenas". Ocorre que a exploração das riquezas naturais existentes no solo, rios e lagos das terras indígenas é algo que diz respeito ao direito constitucional de usufruto exclusivo pelos índios (CF/88, art. 231, § 2.º). As outras formas de exploração de recursos naturais – mineração e aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos –  aguardam ainda regulamentação legislativa, enquanto que o garimpo, por não-indígenas, é constitucionalmente vedado. 

    Não é porém segredo para ninguém a enorme pressão exercida sobre os recursos naturais em terras indígenas, mesmo ao arrepio da Constituição Federal. E a presença, na composição do GT que tratará do tema, do Ministério das Minas e Energia, já indica a ótica sob a qual o tema será tratado para os fins de uma nova política indigenista: a supremacia do interesse econômico, notadamente na área de exploração mineral e de aproveitamento de recursos hidro-energéticos, sobre a proteção das populações indígenas. 

    O terceiro tema elencado ("questões relativas à existência de Terras Indígenas em faixa de fronteira e a defesa do território nacional") fala por si só. Parte da concepção de que a presença das comunidades indígenas em faixa de fronteira representa fator de risco para a soberania nacional e em impedimento à defesa das fronteiras, resultando, daí, na necessidade de se vedar, nessa área, a demarcação de terras indígenas Preocupações com uma suposta “internacionalização da Amazônia”, com supostos “movimentos indígenas separatistas”, e com uma hipotética possibilidade de “criação de enclaves indígenas no território nacional”, são temas recorrentes no meio militar, apesar de a presença indígena nas fronteiras e demarcações como da T.I. Yanomami terem dado provas do contrário. 

    É portanto extremamente preocupante a possibilidade de se ter uma política indigenista pautada por esta visão equivocada, com riscos de enormes e irreparáveis prejuízos para as comunidades indígenas. 

    O tema IV trata das "modificações legislativas que se fazem necessárias no Estatuto do Índio". Esta formulação, ao invés de uma referência à necessidade de revisão da legislação indigenista, sugere a idéia de manutenção do velho Estatuto, apenas com algumas modificações “ que se fizerem necessárias”, o que seria feito em  desconsideração a todo o processo de discussão havido em torno dos Projetos de Lei em tramitação no Congresso desde 1991, e que resultou no Substitutivo da Comissão Especial da Câmara, aprovado em 1994. 

    O quinto  tema V elencado, ("implicações do crescimento demográfico das populações indígenas") é no mínimo intrigante, pois não vem acompanhado de qualquer referência de onde se pretenda chegar, ou do que signifiquem tais “implicações”, ou mesmo sobre quem elas incidam. Implicações na política de assistência por parte do Estado ? Instalação de uma política de “planejamento familiar” indígena ? Previsão, na demarcação das terras indígenas, da necessidade de se contemplar a projeção de crescimento demográfico das comunidades ? Esta última hipótese encontra-se constitucionalmente prevista na referência às terras “necessárias à sua reprodução física” (CF/88, art. 231, § 1.º). 

    Quanto ao tema VI (" novo papel da Fundação Nacional do Índio – Funai"), fica explícita  a idéia da permanência do órgão, o que soa estranho quando se está diante de um contexto de revisão legislativa e de elaboração de nova política indigenista. Se a idéia é a permanência da Funai, qual o alcance da discussão para a formulação de uma política indigenista nova? 

    Muito preocupante, também, é o tema VI ("soluções possíveis para municípios criados em terras indígenas"). Ora, de acordo com a Constituição Federal, são nulos os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas (CF/88, art. 231, § 6.º). A criação de municípios, ou melhor, de sedes de municípios em terras indígenas é portanto ato nulo, inconstitucional. Não podem haver "soluções possíveis" para medidas que atentam contra a CF e ter em perspectiva o contrário quando da formulação de nova política indigenista, é apostar contra os direitos e interesses das populações indígenas. 

    Este conjunto de temas, por si mesmo e a considerar quem o elaborou (o Gabinete de Segurança Institucional – GSI), indica sem sombra de dúvidas, que o atual governo pretende imprimir não só pontualmente, mas à própria política indigenista, uma perspectiva baseada na ingerência militar e na exploração das terras indígenas e seus recursos naturais.  Ou seja, controlar as terras indígenas e transformá-las em fonte de exploração econômica, passarão a ser, segundo se depreende desta iniciativa do GSI, os pontos centrais da política indigenista. 

    Observe-se que em nenhum momento denota-se preocupação com a proteção à integridade física e moral dos índios, à integridade de suas identidades étnico-culturais, com o respeito ao seu direito de participação, à autonomia de suas decisões, à proteção de suas terras e meio-ambiente. Em nenhum momento percebe-se preocupação com a necessidade de se remodelar a atuação da Administração Pública para uma assistência específica e relação respeitosa com os povos e comunidades indígenas. Tais questões foram propositalmente ignoradas na edição da Portaria 15, e tendem a ser também ignoradas ou mal colocadas quando dos trabalhos do GT.                       

    De tudo, pode-se concluir que apolítica a ser adotada pelo Governo Lula caminha a passos largos para a militarização. Certamente, resultará, do GT instituído pela Portaria n.º 15 – CH/GSI, de 11 de maio de 2004, a ser encaminhada à Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional, do Conselho de Governo, uma proposta que terá como eixo fundamental uma “neo-pacificação” das comunidades indígenas, com o propósito de se garantir a abertura à exploração econômica de suas terras e riquezas naturais. 

    Trata-se de um inacreditável retrocesso em termos de política indigenista. Ainda mais vindo de um Governo cujo prestígio, entre indigenistas, povos indígenas e defensores dos direitos humanos em geral, advinha justamente  de uma perspectiva contrária, de consolidação de um modelo democrático, participativo, fundado na correção de erros históricos e embasado em garantias constitucionais,  às duras penas conquistadas. 

    _____________________

    Composição do CREDEN e dos GT’s criados em 12 de maio de 2004.

    Dec. 4.801/2003

    CREDEN

    Portaria 13

    GT – atividade nuclear

    Portaria 14

    GT – faixa de fronteira

    Portaria 15

    GT – política indigenista

    Portaria 16

    GT – contraterrorismo

    Ministros Integrantes

    Representantes dos Ministérios

    Representantes dos Ministérios

    Representantes dos Ministérios

    Representantes dos Ministérios

    Segurança Institucional

     

    Segurança Institucional

    Segurança Institucional

    Segurança Institucional

    Segurança Institucional

    Casa Civil

     

    _________

    Casa Civil

    Casa Civil

    Casa Civil

    Justiça

     

    _________

    Justiça

    Justiça

    Justiça

    Defesa

     

    Defesa

    Defesa

    Defesa

    Defesa

    Relações Exteriores

     

    Relações Exteriores

    Relações Exteriores

    Relações Exteriores

    Relações Exteriores

    Planejamento, O

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  • 20/06/2004

    A participação indígena no Conselho Nacional de Saúde, por Marluce Angelo

    O Decreto nº 4.878, de 18 de novembro de 2003, dispõe sobre a composição do Conselho Nacional de Saúde – CNS. Revoga o caput do art. 2º e seus incisos, assim como os §§ 1º, 2º, 3º e 7º do Decreto nº 99.438, de 07/08/1990, e os Decretos nºs 2.979, de 02/03/1999, e  4.699, de19/05/2003.

    Os decretos que foram revogados faziam referência a um representante da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), na composição do Conselho Nacional de Saúde.

    O Decreto nº 4.878/03, no inciso I do seu art. 1º, refere-se a um representante de entidades nacionais de organizações indígenas, na categoria de representantes dos usuários,.

    O Decreto nº 4.878/03 aumenta o número de representantes de entidades nacionais no Conselho Nacional de Saúde – CNS, que é presidido pelo Ministro de Estado da Saúde.

    O CNS passa, nos termos do parágrafo único do art. 1º do Dec. 4.878/03 a ser integrado por quarenta membros titulares, sendo cinqüenta por cento representantes da categoria dos usuários e os outros cinqüenta por cento distribuídos entre os representantes dos trabalhadores em saúde, (vinte e cinco por cento), e representantes dos gestores e prestadores de serviços (vinte e cinco por cento) e contará ainda com quarenta representantes primeiros suplentes e quarenta representantes segundos suplentes.

    O mandato dos integrantes do CNS encerrar-se-á em 28 de fevereiro de 2005.

    É da competência do CNS:

    1)       atuar na formulação de estratégia e no controle da execução da Política Nacional de Saúde em nível federal;

    2)       estabelecer diretrizes a serem observadas na elaboração dos planos de saúde;

    3)       a elaboração de cronograma de transferência de recursos financeiros aos Estados, Distrito Federal e Municípios, consignados ao Sistema Único de Saúde;

    4)       aprovar os critérios e valores para remuneração de serviços e os parâmetros de cobertura de assistência;

    5)       acompanhar e controlar a atuação do setor privado da área da saúde credenciando mediante contrato ou convênio;

    6)       acompanhar o processo de desenvolvimento e incorporação científica e tecnológica na área de saúde, visando à observação de padrões éticos compatíveis com o desenvolvimento sócio-cultural do país; e

    7)       articular-se com o Ministro da Educação quanto à criação de novos cursos de ensino superior na área de saúde, no que concerne à caracterização das necessidades sociais.

    As funções de membros do CNS não serão remuneradas, considerando-se o seu exercício relevante serviço prestado à preservação da saúde da população. Consideram-se colaboradores do CNS as universidades e demais entidades de âmbito nacional, representativas de profissionais e usuários dos serviços de saúde.

    O CNS poderá também convidar entidades, cientistas e técnicos nacionais ou estrangeiros, para colaborarem em estudos ou participarem de comissões instituídas no âmbito do próprio CNS, sob a coordenação de um dos seus membros.

    As comissões terão a finalidade de promover estudos com vistas à compatibilização de políticas e programas de interesse para a saúde, cuja execução envolva áreas não compreendidas no âmbito do Sistema Único de Saúde e em especial:

    a)       alimentação e nutrição;

    b)       saneamento e meio ambiente;

    c)       vigilância sanitária e farmacoepidemiologia;

    d)       recursos humanos;

    e)       ciência e tecnologia; e

    f)         saúde do trabalhador.

    O Decreto nº 99.438, de 07/08/90, cujo caput do art. 2º e seus incisos, assim como os §§ 1º, 2º, 3º e 7º foram revogados, dispõe sobre a organização e atribuições do Conselho Nacional de Saúde, sendo este integrante da estrutura básica do Ministério da Saúde.

    O Decreto nº 1.448/95, que deu nova redação ao art. 2º do Decreto nº 99.438/90, que dispunha sobre a composição do CNS, estipulada em trinta e dois membros.

    O artigo 2º do Decreto nº 2.979/99, revogado, acrescentava na composição do CNS: o Ministério da Educação; o Ministério do Trabalho e emprego; o Ministério da Agricultura e do Abastecimento e a Secretaria de Estado de Planejamento e Avaliação da Presidência da Republica.

    O Decreto nº 4.699/2003, igualmente revogado, estabelecia sobre o mandato dos novos integrantes do CNS, que seriam designados em razão do término do mandato suplementar, o prazo para o encerramento seria excepcionalmente em 31/08/2003. A nova composição seria definida em decreto específico, que dispunha sobre o mandato regular dos novos integrantes. No seu art. 3º a competência para designar os membros dos CNS é do Ministro de Estado da Saúde.

    Grande é a responsabilidade do representante de entidades nacionais de organizações indígenas. Seu papel é de fundamental importância, pois os povos indígenas conquistam mais um espaço para expor as suas idéias, na esperança que ações desta dimensão venha a atender às lutas destes povos. A inclusão de um representante indígena no Conselho Nacional de Saúde contribui para construção de uma nova política indigenista, fundada na participação, no respeito e no reconhecimento do protagonismo dos povos indígenas.

    Brasília, 03 de dezembro de 2003.

    Marluce Angelo
    Estudante da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Brasília

    *Texto elaborado sob a supervisão do advogado Paulo Machado Guimarães, Assessor Jurídico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi

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  • 20/06/2004

    Inadequações da atual legislação de Radiofusão Comunitária aplicada a Comunidades Indígenas – Considerações Preliminares, por Rosane Lacerda

    Sumário

    Introdução.

    I. Comunidades Indígenas e Radiodifusão Sonora Comunitária.

    I.1. Legislação de RadCom. 

    I.2. Alguns aspectos: 

    a)       Natureza da área a ser atendida.

    b)       Raio de abrangência das transmissões.

    c)       Destinatários da outorga do serviço.

    I.3. Importância para as Comunidades Indígenas.

    I.4. Aspectos constitucionais. 

    I.5. Inadequações da legislação de RadCom no caso das Comunidades Indígenas: 

    a)   Concepção voltada para o espaço urbano.

    b)   Limite do raio de cobertura das transmissões.

    c)   As “associações” como titulares da outorga.

    d)   Exigência de apoio de entidades sediadas na área pretendida.

    II. Comunidades Indígenas e Radiodifusão Comunitária de Som e Imagem.

    II.1. Legislação de TV Comunitária.

    II.2. O Projeto de Lei n.º 2..701/97.

    III. Conclusão.

    Bibliografia.


    Introdução.

    Tem sido evidente nos últimos anos, sobretudo na década de 90, as conquistas das comunidades locais e grupos representativos da sociedade civil organizada no que diz respeito às possibilidades jurídico-legais de utilização de veículos de comunicação social via radiodifusão.

    De uma situação de absoluta clandestinidade, com suas conseqüências muitas vezes policiais, logrou-se, no campo da comunicação sonora e de imagens a previsão, na Lei n.º 8.977, de 6 de janeiro de 1995 que dispõe sobre o Serviço de TV a Cabo, da existência de “canais básicos de utilização gratuita”, entre os quais “um canal comunitário aberto para a utilização livre por entidades não governamentais e sem fins lucrativos” (art. 23, I, g).  

    Pouco mais tarde, no campo da comunicação sonora, logrou-se também a aprovação da Lei n.º 9.612, de 19 de fevereiro de 1998, pela qual se instituiu o Serviço de Radiodifusão Comunitária.  

    Em que pese a importância de tais diplomas no âmbito de uma comunicação alternativa, não comercial, a legislação de radiodifusão comunitária ainda encontra-se limitada em seus avanços. Primeiro, quanto aos regramentos específicos que traz às duas modalidades contempladas (a rádio comunitária e o canal comunitário de TV a Cabo), com insuficiências e incongruências no nível de sua respectiva regulamentação. Segundo, pelo fato de deixar a descoberto outras formas possíveis de radiodifusão comunitária, a exemplo do sistema aberto de TV. 

    Pretendemos aqui fazer algumas considerações preliminares ao que compreendemos por limitações e inadequações desta legislação no que se refere à sua aplicação a um potencial e específico segmento de usuários do sistema: as Comunidades Indígenas.  

    Neste sentido, passaremos a analisar a legislação de radiodifusão comunitária e seus instrumentos reguladores à luz tanto das especificidades sócio culturais indígenas quanto da legislação indigenista em vigor.


    I. Comunidades Indígenas e Radiodifusão Sonora Comunitária.

    I.1. Legislação de RadCom.

    A radiodifusão sonora de caráter comunitário, também chamada “rádio comunitária”, embora viesse sendo operada com cada vez mais intensidade em diversos pontos do país por organizações comunitárias locais, sem fins lucrativos, só veio a ser objeto de normatização a partir da  Lei n.º 9.612, de 19 de fevereiro de 1998, que instituiu o Serviço de Radiodifusão Comunitária.  

    Juntamente com a Lei n.º 9.612/98, constituem diplomas normativos básicos do Serviço de Radiodifusão sonora Comunitária o  Decreto n.º 2.615, de 03 de junho de 1998, que  aprovou o Regulamento do Serviço, e a Norma Complementar n.º 02/98, aprovada pela Portaria n.º 191, de 06 de agosto de 1998, do Ministro das Comunicações. 

    Além destes, destacam-se ainda os seguintes diplomas normativos editados posteriormente: a  Portaria n.º 83, de 19 de julho de 1999, que dá nova redação aos itens 6.1, 6.6, 6.7, inciso X, 10.9, 11.2, 11.4, 14.2.7.1.1, 14.2.10, 14.3.1, 14.4.3, 14.4.4 e 15.3, inciso IV, e inclui o item 14.4.12, da Norma Complementar n.º 02/98; a Portaria n.º 131, de 19 de março de 2001, que aprova o termo de liberação de funcionamento do Serviço de Radiodifusão Comunitária; a Medida Provisória n.º 2.143-32, de 02 de maio de 2001, que dispõe sobre a expedição, pelo Poder Concedente, de licença de funcionamento, em caráter provisório, até a apreciação do ato de outorga pelo Congresso Nacional; a Portaria n.º 244, de 08 de maio de 2001, que altera o subitem 7.1.1 da Norma 2/98, e dispõe sobre a emissão de licença de funcionamento em caráter provisório; a Medida Provisória n.º 2143-33 de 31 de maio de 2001 (reedição) que dispõe sobre a expedição de autorização de operação, em caráter provisório, até a apreciação do ato de outorga pelo Congresso Nacional; a Lei n.º 10.597, de 11 de dezembro de 2002, que altera o parágrafo único do art. 6º da Lei nº 9.612, de 19/02/1998, para aumentar o prazo de outorga; e a Portaria n.º 83 de 24 de março de 2003, realiza todos os atos necessários à instrução, ao saneamento e ao desenvolvimento dos processos relativos aos pedidos de autorização para os Serviços de Radiodifusão Comunitária. 

    Mencione-se, ainda, a Portaria n.º 92, de 02 de abril de 2003, do Ministro das Comunicações, que instituiu o Grupo de Trabalho em caráter emergencial e extraordinário para a instrução, saneamento e desenvolvimento dos processos em andamento relativos aos pedidos de autorização para os Serviços de Radiodifusão Comunitária, e que teve os seus trabalhos concluídos e encerrados em julho de 2003. 

    I.2. Alguns aspectos.

    Pensado como instrumento de comunicação para comunidades locais, o serviço de radiodifusão sonora comunitário foi definido, no caput do art. 1.º da Lei 9.612/98, como sendo de “cobertura restrita”. Sobre a expressão destacam-se dois aspectos: natureza da área a ser atendida e raio de abrangência das transmissões.  

    a) Natureza de área a ser atendida.

    Uma primeira observação é de que a Lei n.º 9.612/98, ao definir em que consistiria a referida “cobertura restrita”, acabou limitando o serviço de radiodifusão sonora comunitária ao âmbito das áreas urbanas, como se vê na redação dada pelo § 2.º de seu art. 1.º:

    “Entende-se por cobertura restrita aquela destinada ao atendimento de determinada comunidade de um bairro e/ou vila.” (Grifamos.)

    Pouco depois o Decreto n.º 2.615/98 veio a acrescentar, no conceito de cobertura restrita, a expressão “localidade de pequeno porte”:

    “Art. 6º  A cobertura restrita de uma emissora do RadCom é a área limitada por um raio igual ou inferior a mil metros a partir da antena transmissora, destinada ao atendimento de determinada comunidade de um bairro, uma vila ou uma localidade de pequeno porte.” (Grifamos.)

    Esta referência a localidade de pequeno porte poderia implicar na abrangência de comunidades não urbanas na área de cobertura das transmissões. No entanto, a visão da área coberta pelo sistema de radiodifusão sonora comunitária como algo de natureza essencialmente urbana vem a ser reforçada pela  Norma Complementar n.º 02/98,  que define localidade de pequeno porte como sendo (Item 3.II):

    “toda cidade ou povoado cuja área urbana possa estar contida nos limites de uma área de cobertura restrita.” (Grifamos.)

    Nos parece então, que a legislação atual que dispõe sobre o serviço de radiodifusão sonora comunitário esteja voltada exclusivamente para as realidades das comunidades urbanas, sejam estas de grandes cidades ou de pequenos povoados.

    b) Raio de abrangência das transmissões.

    Um segundo aspecto a ser observado é o do raio de alcance das transmissões da radiodifusão sonora comunitária.

    A Lei n.º 9.612/98 em nenhum momento impõe qualquer tipo de limite à área coberta. As restrições que faz (art. 1.º, § 1.º) resumem-se à potência de operação, que limita ao máximo de 25 watts ERP, e à altura do sistema irradiante, ou seja, da antena transmissora, que determina seja não superior a 30 metros. Também não há na definição de cobertura restrita, vista anteriormente, qualquer previsão de limites ao raio de abrangência das transmissões. 

    Contudo, veio o  Decreto n.º 2.615/98 a introduzir  limitação à área de cobertura das transmissões, estabelecendo para tanto um raio de até mil metros, ou seja, 1 km, tendo como base a antena transmissora:

    Art. 6.º A cobertura restrita de uma emissora do RadCom é a área limitada por um raio igual ou inferior a mil metros a partir da antena transmissora, (…).” (Grifamos.)

    Assim, enquanto que na Lei n.º 9.612/98 a expressão “cobertura restrita”  é entendida como aquela necessária ao atendimento de determinada comunidade (de bairro ou vila), independentemente de seu tamanho,  no Decreto n.º 2.615/98 “cobertura restrita” é entendida como a área à qual se limita o raio de alcance das transmissões, determinado em mil metros a partir da antena transmissora.   

    Ou seja, o Decreto não só produziu uma mudança conceitual em relação ao significado de “cobertura restrita”, como também estabeleceu um limite – bastante estreito, por sinal – para a área de atendimento pelo Serviço de radiodifusão sonora comunitária. 

    Observe-se que em razão dessa limitação, os deputados Fernando Ferro, Milton Mendes e Jacques Wagner apresentaram à Câmara Federal o Projeto de Decreto Legislativo n.º 698/98, prevendo a revogação, entre outros, do citado dispositivo. Conforme consta na “justificativa” do Projeto,

    “por este artigo, o alcance da rádio será de uma circunferência com raio de mil metros. É uma clara exorbitância à Lei 9.612/98, uma vez que tal restrição não faz parte da legis referida. Cabe observar que, quando da discussão nesta casa do Projeto de Lei 1.532/96, que deu origem à Lei 9.612/98, uma das propostas era esta, que a rádio comunitária cobrisse um raio de, no máximo, mil metros. Ora, o assunto foi debatido exaustivamente até que tal proposta foi descartada. Em outras palavras, o Congresso, instituição responsável pela elaboração das leis deste país, rejeitou a possibilidade de limitação do alcance das rádios a mil metros de raio. Ao introduzir, através de Decreto, tal restrição, o Executivo achincalha com os membros desta Casa, tornando inócuos os debates aqui realizados e as decisões tomadas. Enfim, o Executivo assume o papel – que não lhe cabe – de elaborador de leis. Razões técnicas, políticas, sociais, fizeram com o Congresso, após debater a questão, descartasse uma cobertura máxima de mil metros para as emissoras. Não cabe ao Executivo impor a população uma norma que o Legislativo ponderou e resolveu eliminá-la. Por este motivo, o Artigo 6.º deve ser excluído do Decreto 2.615/98.”  (Grifamos)

    Conforme observado acima pelos parlamentares, a exigência de limitação das transmissões ao raio de mil metros não encontra amparo legal.  Por outro lado, condiz tal limitação com a concepção vista anteriormente, de radiodifusão sonora comunitária voltada para os espaços essencialmente urbanos, seja de bairros, vilas ou povoados.  

    Ainda nos termos do Decreto n.º 2.615/98 (art. 8.º, II), a cidade ou povoado que tenha área urbana adstrita à circunferência de mil metros como limite máximo permitido para o alcance das transmissões, recebe a denominação de “localidade de pequeno porte”:

    Localidade de pequeno porte: é toda cidade ou povoado cuja área urbana possa estar contida nos limites de uma área de cobertura restrita;” (Grifamos.)

    Para estas “localidades de pequeno porte” a Norma Complementar n.º 02/98 prevê a operação de apenas uma emissora de rádio comunitária. Ou seja, em comunidades de espaço urbano limitado ao raio de mil metros, só é possível a operação de uma única estação transmissora. 

    Nos casos de espaço urbano superior ao raio de mil metros, o item 6.1 da Norma Complementar, com a redação dada pela Portaria n.º 83/99, do Ministério das Comunicações, prevê a possibilidade de operação de mais de uma emissora:

    “6.1 Em localidades que não se enquadrem como de pequeno porte, nos termos do inciso II, do art. 8º do Decreto nº 2.615, de 3 de junho de 1998, poderá ser admitida mais de uma emissora, desde que atendido o disposto no item 14.2.10.” (Grifamos.)

    Esclareça-se que o mencionado item 14.2.10 da Norma Complementar n.º 02/98 é o que estabelece que a separação mínima entre duas estações de rádio comunitária deverá ser uma relação de proteção de no mínimo 25 dB, nas áreas de prestação de serviço delimitadas pelo contorno de 91 dBµ.  

    c)   Destinatários da outorga do Serviço.

    Em terceiro lugar, cumpre observar quanto a quem a lei atribui legitimidade para operar o serviço de radiodifusão sonora comunitária.  

    Prevê a Lei n.º 9.612/98 que podem operar no sistema, com a devida outorga de concessão por parte do poder público, pessoas jurídicas sem fins lucrativos, tenham estas a forma de associações comunitárias ou de fundações (art. 1.º, caput). Tais pessoas jurídicas devem estar, conforme determina o art. 7.º da Lei,

    “… legalmente instituídas e devidamente registradas, sediadas na área da comunidade para a qual pretendem prestar o Serviço, e cujos dirigentes sejam brasileiros natos ou naturalizados há mais de 10 anos.”

    Exige também a Lei n.º 9.612/98 (art. 8.º) seja criado, no âmbito da pessoa jurídica autorizada a explorar o Serviço,

    “… um Conselho Comunitário, composto por no mínimo cinco pessoas representantes de entidades da comunidade local, tais como associações de classe, beneméritas, religiosas ou de moradores, desde que legalmente instituídas, com o objetivo de acompanhar a programação da emissora, com vista ao atendimento do interesse exclusivo da comunidade e dos princípios estabelecidos no art. 4º desta Lei.” (Grifamos.)

    Importante também observar a exigência, pelo art. 9.º § 2.º da Lei n.º 9.612/98,  de apresentação pelas entidades interessadas no prazo de habilitação para a execução do Serviço, dos seguintes documentos, relacionados à comprovação da regularidade da situação jurídica da entidade, à situação de seus membros diretores:

    “I – estatuto da entidade, devidamente registrado;

    II – ata da constituição da entidade e eleição dos seus dirigentes, devidamente registrada;

    III – prova de que seus diretores são brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos;

    IV – comprovação de maioridade dos diretores;

    V – declaração assinada de cada diretor, comprometendo-se ao fiel cumprimento das normas estabelecidas para o serviço;”  (Grifamos)

    De se observar também, entre os documentos exigidos, a comprovação do apoio expresso de entidades sediadas na área pretendida para a prestação do serviço:

    “VI – manifestação em apoio à iniciativa, formulada por entidades associativas e comunitárias, legalmente constituídas e sediadas na área pretendida para a prestação do serviço, e firmada por pessoas naturais ou jurídicas que tenham residência, domicílio ou sede nessa área.”  (Grifamos.)

    I.3. Importância para as Comunidades Indígenas.

    No final dos anos 70 e início dos 80,  o velho “gravador do Juruna”, apesar do modo caricato como era tratado na mídia, chamava a atenção enquanto veículo de informação para a comunidade Xavante que passaria a ouvir, testemunhar e assim, ao menos teoricamente, poder cobrar, as “promessas de branco”, geralmente não cumpridas. 

    Nos anos 90 algumas comunidades indígenas, passando a ter acesso a equipamentos de produção áudio-visuais, demonstraram um grande potencial de utilização deste material como forma de registro e divulgação de suas práticas e valores culturais, geralmente para consumo interno, no espaço das próprias aldeias. 

    Atualmente grande quantidade de comunidades indígenas em todo o país possui aparelhos de rádio, através dos quais sintonizam as programações radiofônicas emitidas por estações locais ou regionais.  

    Contudo não existe, ainda, uma prática corrente de produção própria e transmissão  voltada para o interior das terras indígenas. Em outras palavras, têm sido bastante raras as notícias de utilização, por Comunidades Indígenas, das chamadas rádios comunitárias. Recentemente imprensa divulgou a existência de duas implantadas no Mato Grosso do Sul, e de uma projetada para o Tocantins (Krahô). Em Pernambuco, o Povo Xukuru também já se manifestou no sentido de que pretende ter a sua própria rádio comunitária.  Observe-se que as poucas rádios de que se tem notícia operam ainda na informalidade, uma  vez que não foram submetidas aos regramentos impostos pela legislação de radiodifusão sonora comunitária.  

    Esta pouca incidência da utilização das rádios comunitárias pelas Comunidades Indígenas no Brasil não pode ser vista, entretanto, como decorrência de uma suposta pouca importância do uso deste tipo de veículo para tais Comunidades.  

    Cremos que a falta de informação, a falta de familiaridade com determinados trâmites burocráticos requeridos pela legislação, as inadequações desta à realidade indígena,  e a dificuldade de acesso a recursos para a aquisição de equipamentos podem explicar, em parte, essa subutilização do sistema pelas Comunidades Indígenas. 

    No entanto, em linhas breves, pode se dizer que a utilização das rádios comunitárias pode ser tão ou mais importante para as Comunidade Indígenas do que para determinadas comunidades urbanas não-indígenas. 

    A “DECLARAÇÃO DE MILÃO SOBRE A COMUNICAÇÃO E OS DIREITOS HUMANOS” , aprovada em 29 de agosto de 1998 pela 7ª Conferência Mundial da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC) realizada naquela cidade italiana entre os dias 23 e 29 de agosto daquele ano, incluiu em seus termos o reconhecimento expresso da importância dos meios de comunicação social para as comunidades indígenas:

    “5. Os direitos dos povos indígenas devem ser respeitados em consideração às suas lutas para conseguir acesso à participação nos meios de comunicação.

    6. Os meios de comunicação têm a responsabilidade de ajudar a manter a diversidade cultural e lingüística no mundo e apoiá-la através de medidas legislativas, administrativas e financeiras.

    7. Os meios de comunicação podem desempenhar um papel importante reforçando os direitos culturais e, em particular, os direitos lingüísticos e culturais das minorias; dos povos indígenas, dos imigrantes e refugiados, facilitando-lhes o acesso aos meios de comunicação.” (Grifamos.)

    Embora a Declaração restrinja-se à contribuição das rádios comunitárias ao respeito e manutenção da diversidade cultural e lingüística, o certo é que a sua importância vai muito mais além, podendo ser um valioso instrumento informativo e formativo para aquelas comunidades.

    A conscientização acerca dos seus direitos, o fortalecimento de sua organização social, o resgate de suas memórias históricas, a valorização de sua identidade étnica, o estímulo à mobilização para a participação em assuntos de interesse coletivo, tudo isso são conteúdos que podem ser enormemente potencializados a partir da utilização da radiodifusão sonora comunitária no âmbito das Comunidades Indígenas.

    I.4. Aspectos constitucionais.

    Antes de qualquer consideração a respeito da aplicabilidade da legislação atual em radiodifusão comunitária à realidade indígena, necessário se faz ter como ponto de partida a observação quanto às bases constitucionais do direito de acesso à informação em sua relação com esta realidade específica.   

    Diz a Constituição Federal de 1988, em seu art. 220, que: 

    “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.” (Grifamos.)

    Ou seja, os limites serão unicamente aqueles fixados pelo próprio texto constitucional. E uma das restrições impostas constitucionalmente reside na subordinação do serviço de radiodifusão  ao ato de outorga pela  Administração Pública:

    “Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observando o princípio da complementariedade dos sistemas privado, público e estatal”.

    Neste sentido é que se insere a Legislação relativa ao serviço de radiodifusão sonora comunitária,  normatizando  e regulamentando o procedimento de outorga pelo Executivo. 

    Há no entanto que considerar, no que se refere aos Povos e Comunidades Indígenas, a incidência do princípio da autonomia frente ao Estado Brasileiro, e do grau de interferência deste princípio nos limites infra-constitucionais aplicáveis ao tema em questão.  

    Reza o art. 231, caput, da Carta Política de 1988:

    São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” (Grifamos.)

    Ou seja, sobre o espaço físico das terras de ocupação tradicional, que são bens da União Federal (CF/88, art.20, inc. XI), as comunidades indígenas possuem os direitos originários, imprescritíveis, exclusivos e indisponíveis de posse permanente e usufruto das riquezas do seu solo, rios e lagos (CF/88, art. 231, §§ 2.º e 4.º).  

    Sobre tal espaço físico a Constituição reconhece aos índios o direito ao pleno exercício de suas formas próprias de organização social, sem qualquer perspectiva de sua incorporação ou integração à comunhão nacional brasileira, determinando, pelo contrário, se deva proteger e respeitar os seus costumes, línguas, crenças e tradições, bem como quaisquer outros dos seus bens, materiais ou imateriais (CF, art. 231, caput). 

    De oportuno, vale registrar a observação de GUIMARÃES (1999 : 541/542):

    “Ao reconhecer aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, atribuindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens, a Constituição Federal promulgada em 5 de outubro de 1988, no caput do seu art. 231 projetou para o mundo jurídico referências normativas, sintetizadoras das principais bases viabilizadoras da existência dos povos indígenas.

    Este parâmetro constitucional implica em efetivo condicionamento ao exercício do poder normativo e coercitivo do Estado Nacional, de forma que quaisquer atos normativos, administrativos, judiciais e de particulares se aplicam validamente a um povo indígena se não desrespeitarem seus bens e valores étnico e culturais.

    Nesse condicionamento reside a fonte da autonomia dos povos indígenas em relação ao Estado brasileiro.

    (…)

    Agora há que se respeitar, em todas as formas de relação, os elementos constitutivos de cada comunidade indígena. Desta imposição de respeito emerge o que é um princípio básico para o relacionamento com os povos indígenas, ou seja o princípio do respeito à diversidade étnica e cultural.” (Grifamos.)

    Podemos então inferir que, quando da execução da radiodifusão comunitária pelas próprias Comunidades Indígenas em suas terras, não pode a norma infraconstitucional disciplinadora do sistema vir a ser aplicada de modo a causar embaraços aos princípios da autonomia daqueles povos e do respeito à sua diversidade étnica e cultural.  

    Em outras palavras, a Administração Pública, ao lidar com a questão, deve pautar-se de modo a respeitar as formas próprias de organização daquelas comunidades e povos, o seus valores culturais e lingüísticos, os seus modos próprios de expressão e comunicação, isso tudo tendo em conta a extensão territorial verificada em cada caso. 

    I.5. Inadequações da legislação de RadCom no caso das Comunidades Indígenas.

    a) Concepção voltada para o espaço urbano.

    Como vimos anteriormente (item I.2.”a”), o conjunto normativo relativo às chamadas “rádios comunitárias” é pensado essencialmente para as comunidades situadas em meio urbano, seja das grandes cidades, seja de pequenos povoados. 

    Passou ao largo, portanto, a questão da utilização deste tipo de veículo de comunicação social por comunidades cujos integrantes se situam de forma mais ou menos dispersa no meio rural, seja em sítios, fazendas ou pequenas propriedades. De forma mais destacada ainda, passou ao largo da legislação a possibilidade de utilização das rádios comunitárias por comunidades tradicionais existentes no meio rural, como as comunidades indígenas, as comunidades caiçaras e as comunidades remanescentes de quilombos.  

    Certamente esta opção da legislação pelo atendimento às comunidades urbanas no caso das rádios comunitárias reflete toda uma pressão social sobre o legislador a partir das crescentes e intensas experiências desenvolvidas, então de forma clandestina, por diversos tipos de comunidades localizadas em regiões urbanas. 

    No entanto, para as comunidades rurais e para as comunidades indígenas em especial, a radiodifusão sonora comunitária pode ser veículo de crescente potencial de utilização. 

    Neste sentido, as limitações em vigor tanto na  Lei n.º 9.612/98, quanto no Decreto n.º 2.615/98 e na Norma Complementar n.º 02/98 que restringem o atendimento do Sistema às comunidades de bairro, de vila ou de povoado, são totalmente inadequadas ou insuficientes  em caso de atendimento a comunidades indígenas. 

    No caso destas, é de se considerar inicialmente que a forma de ocupação territorial não pode ser definida em termos de bairro, vila ou povoado.  

    Em segundo lugar, inexiste no caso das comunidades indígenas um padrão único de ocupação espacial. A depender das características sócio-culturais de cada povo, sua população pode estar mais ou menos dispersa em zonas rurais, ou reunida em aldeias de maior ou menor densidade populacional.  

    Entendemos então que a Lei n.º 9.612/98 deveria incluir, em seu conceito de “cobertura restrita”, aquela destinada ao atendimento de determinada comunidade, seja ela indígena ou rural, e não apenas aquelas urbanas de bairro, vilas  ou povoados.  

    Infelizmente preocupação neste sentido não foi contemplada pelo Grupo de Trabalho instituído pela Portaria n.º 83, de 24 de março de 2003, do Ministro das Comunicações, que apresentou, junto com o relatório conclusivo de suas atividades em julho de 2003, proposta de alteração do Decreto n.º 2.615/98 e minuta de anteprojeto de lei em reformulação a Lei n.º 9.612/98

    Tanto na proposta de alteração do Decreto quanto na minuta de revisão da Lei, o GT mantém as características essencialmente urbanas das áreas a serem cobertas pelo serviço de radiodifusão comunitária. 

    Seja como for, há que se considerar que na hipótese de uma comunidade indígena determinada vir a demandar a utilização do sistema de radiodifusão sonora comunitário, não deverá a previsão legal direcionada para as áreas urbanas configurar empecilho a este acesso. 

    b) Limite do raio de cobertura das transmissões.

    É no modo como o Decreto n.º 2.615/98 conceitua a “cobertura restrita” em radiodifusão sonora comunitária que entendemos estar uma grande dificuldade em relação às comunidades indígenas, como também em relação às comunidades rurais não-indígenas. 

    A limitação do raio de alcance das transmissões a uma circunferência de mil metros em torno da antena transmissora pode tornar praticamente inócua a utilização do Sistema no interior de uma terra indígena.

    No caso das comunidades que contam com diversas aldeias, certamente essa limitação da cobertura a mil metros pode significar que o atendimento da rádio comunitária deva ficar restrito a apenas uma única aldeia, o que pode tornar o serviço inútil e sem sentido para a comunidade usuária. 

    Por outro lado também entendemos como totalmente inadequada a possibilidade de vir a se aplicar, por analogia, a previsão do disposto no item 6.1 da Norma Complementar n.º 02/98, que prevê a possibilidade de admissão de mais de uma emissora em caso de a localidade não se enquadrar na categoria “pequeno porte” . 

    É que se o objetivo da utilização do Serviço for o de favorecer uma maior aproximação e interação entre as diversas aldeias de um mesmo povo, a multiplicação de emissoras certamente não só não cumprirá com tal objetivo, como também poderá servir de elemento distanciador entre as várias aldeias daquele mesmo povo indígena. 

    Assim sendo, entendemos pela necessidade de se reformular a regulamentação do serviço de radiodifusão sonora comunitária a fim de se redirecionar o conceito de “cobertura restrita” para a concepção dada pela Lei n.º 9.612/98, excluindo-se a sua subordinação a qualquer limite de circunferência do raio de transmissão. 

    Neste sentido, vale mencionar a proposta de alteração do Decreto n.º 2.615/98 apresentada pelo GT instituído pela Portaria n.º 83/2003, do Ministro das Comunicações. Propõe o GT a seguinte redação, que nos parece mais adequada:

    “Art. 7º. A cobertura restrita de uma emissora do RadCom, destinada ao atendimento de determinada comunidade de um bairro, uma vila ou uma localidade de pequeno porte, será estabelecida em Norma Técnica a partir do zoneamento da área de interesse.” (Grifamos)

    c) As “associações” como titulares da outorga

    Outra inadequação da legislação que trata do serviço de radiodifusão sonora comunitária  ao caso das comunidades indígenas encontra-se no fato, já comentado (item I.2.“c”), de o titular da a outorga ser pessoa jurídica do tipo fundação ou associação. Isso levaria às comunidades indígenas a exigência de constituição de “associações”, concebidas nos moldes dos arts. 44 a 61 da Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Novo Código Civil), com estatuto devidamente registrado, ata de constituição da entidade, ata de eleição dos seus dirigentes também registrada, etc.   

    Ocorre que a Constituição Federal de 1988, no caput de seu art. 231, reconhece expressamente aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, como bens de ordem imaterial sobre os quais tem a União Federal o dever de proteger e fazer respeitar.  

    Este reconhecimento expresso da CF/88 quanto à existência das formas próprias de organização social de que são titulares as comunidades indígenas, implica na desnecessidade de sua substituição pela forma de organização estabelecida pela lei civil, qual seja, a das associações.

    É de se observar que as comunidades indígenas, antes mesmo da entrada em vigor do texto constitucional de 1988, já são reconhecidas como portadoras de direitos na esfera econômico-patrimonial, conferidos pela Lei n.º 6.001, de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio), podendo ser titulares: 

    – de domínio territorial havido por qualquer das formas de aquisição do domínio nos termos da legislação civil (art. 31); 

    – dos direitos de posse e usufruto das terras ocupadas (art. 40, II); 

    – da propriedade de bens imóveis ou imóveis (art. 40, III); 

    – do direito de ingresso em juízo na defesa de seus direitos e interesses (art. 37).  

    Além disso, o texto constitucional atual confere também às comunidades indígenas legitimidade processual ativa nos termos seguintes:

    “Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.” (Grifamos.)

    Em nenhum momento a Lei n.º 6.001/73 ou a Constituição Federal exigem das comunidades indígenas que se constituam enquanto “associações” consoante os termos do Código Civil a fim de poderem efetivar os direitos que lhes são assegurados. Muito pelo contrário. Exigências que possam ocorrer neste sentido são, aliás, violações do texto constitucional, por infringirem a regra da proteção e respeito às formas próprias de organização social de cada Povo indígena.   

    Assim sendo, entendemos como completamente inadequada à realidade indígena a exigência de constituição de associação nos termos da lei civil como condição para a outorga da exploração do sistema de radiodifusão sonora comunitária.  

    Itens como a comprovação da existência e da forma de organização da comunidade, comprovação da representatividade de seus dirigentes ou líderes perante órgãos públicos e em especial no que tange à sua responsabilidade perante a rádio comunitária, podem ser todos satisfeitos de forma diversa daquela exigida pelo regime civilista, e em sintonia com o espírito pluralista impresso pelo ordenamento constitucional vigente.  

    Assim, por exemplo, ao invés de um “estatuto”, “devidamente registrado”, poderia a Comunidade vir a apresentar um laudo antropológico, a ser registrado em cartório, no qual se relate a forma pela qual a comunidade se organiza socialmente, indicando como é formada, quais as instâncias decisórias, de que modo as decisões são tomadas, etc. No lugar da “ata de constituição da entidade e eleição de seus membros”, poderia ser apresentada uma declaração, feita pelo órgão indigenista oficial e registrada em cartório, atestando não só a existência da comunidade como também nominando o(s) atual(is) ocupante(s) da função de representação da mesma perante o Estado e natureza da função quanto ao tempo (se vitalício; se eletivo, tempo de duração previsto, etc). 

    Desta forma, cremos que a legislação sobre radiodifusão sonora comunitária necessitaria ser reformulada no tocante aos tipos de pessoas jurídicas consideradas com competência para poder operar no sistema, incluindo-se as comunidades indígenas como uma das legitimadas ao lado das fundações e associações comunitárias. 

    Também totalmente inadequada ao caso das Comunidades Indígenas é a exigência, de criação de um “Conselho Comunitário”, ao menos nos moldes descritos pelo art. 8.º da Lei n.º 9.612/98: mínimo de cinco pessoas representantes de entidades da comunidade local, desde que legalmente constituídas.  

    Em primeiro lugar, há que se ter em conta que geralmente as Comunidades Indígenas já possuem seus próprios “conselhos”, criados e em funcionamento segundo regras culturais e costumeiras, devendo ser objeto de respeito e consideração. 

    Em segundo lugar, a existência, no seio das Comunidades Indígenas, de “entidades legalmente constituídas” é algo totalmente estranho aos seus padrões culturais. Exigir que numa Comunidade Indígena tais entidades existam, e em número mínimo de cinco, a fim de que delas se extraiam representantes para a formação do referido “Conselho Comunitário”, seria provocar uma ingerência indevida e uma grande desorganização das estruturas tradicionais e autênticas de organização social indígena, cujos efeitos podem ser irreversivelmente danosos à comunidade. 

    Cremos que o objetivo de criação do “Conselho Comunitário” de que trata o art. 8.º da Lei n.º 9.612/98, que é o de “acompanhar a programação da emissora, com vistas ao atendimento do interesse exclusivo da comunidade e dos princípios estabelecidos no seu art. 4.º” pode ser cumprido de outro modo, a partir de mecanismos postos pela própria organização social do Povo Indígena interessado. 

    Observe-se que aqui o GT instituído pela Portaria n.º 83/2003, na proposta que faz de revisão da Lei de Radiodifusão Comunitária, restringe a possibilidade de outorga apenas às associações comunitárias, as quais deverão ser “criadas especificamente para esse fim”.  

    Entendemos que essa proposta viria a distanciar mais ainda a normatização do sistema de radiodifusão comunitária da realidade das Comunidades Indígenas, uma vez que sequer se poderia aproveitar as associações por acaso já existentes, levando-se à criação de outras, específicas, enquanto que a própria Comunidade Indígena, mediante seu modelo tradicional de organização, poderia cumprir com tal função. 

    d) Exigência de apoio de entidades sediadas na área pretendida.

    De igual modo afigura-se também como problemática, no caso das Comunidades Indígenas,  a aplicação da exigência contida no inciso VI do § 2.º do art. 9.º da Lei n.º 9.612/98, de manifestações  de apoio por “entidades associativas e comunitárias legalmente constituídas na área pretendida para a prestação do serviço.” 

    Em sendo a área pretendida para a prestação do serviço de radiodifusão uma terra de ocupação tradicional indígena, não poderão ter sede no local entidades associativas e comunitárias formadas por não-indígenas. Tais entidades associativas e comunitárias deveriam, portanto, ser formadas por integrantes da própria comunidade indígena.  

    Ocorre que em muitas Comunidades Indígenas com condições de demandarem a operação do sistema de radiodifusão sonora comunitária, tais entidades associativas e comunitárias legalmente constituídas não existem, nem se pode exigir a sua criação.

    É que, como colocado anteriormente, a exigência de constituição de tais entidades no seio da Comunidade viria em detrimento das formas próprias, costumeiras, usuais, de organização social indígena, podendo causar prejuízos à própria comunidade que se pretenda beneficiar com a utilização do sistema. 

    Neste ponto, o GT instituído pela Portaria n.º 83/2003, do Ministro das Comunicações, propõe uma única alteração nos termos como a matéria está disposta na Lei n.º 9.612/98, para incluir sejam as manifestações de apoio formuladas também pelos próprios associados da entidade criada para a execução e administração do sistema de radiodifusão comunitária.


    II. Comunidades Indígenas e Radiodifusão Comunitária  Sonora e de Imagem.

    II.1. Legislação.

    Com o crescente desenvolvimento tecnológico, diversas tem sido as modalidades de radiodifusão de sons e imagens em operação no país.  

    Tem-se, por exemplo:

    · TVs que funcionam em nível local e transmitem pelo sistema UHF (Ultra High Frequency);

    · TVs que operam na freqüência VHF (Very High Frequency) também   chamadas de “TVs abertas”;

    · TVs por assinatura ou “TVs pagas”:

    – TVs a Cabo (assim denominadas por utilizarem-se de meio físico – o cabo –  para as suas transmissões);

    – TVs MMDS (Multichannel Multipoint Distribution System), que utilizam-se de antena microondas (por ar e terra) para suas transmissões;

    – TVs DBS (Direct Broadcasting Satéllite), de transmissões por satélite e recepção por antenas parabólicas;

    – STV (Subscription Television), de transmissão também por satélite;

    – TVs DTH (Direct To Home) igualmente por satélite.

    Até o presente momento, a única experiência de radiodifusão de som e imagem de forma comunitária legalmente permitida e regulamentada, é a prevista na Lei n.º 8.977, de 6 de janeiro de 1995, que dispõe sobre o Serviço de TV a Cabo, e que reserva, neste tipo de sistema, um canal comunitário dentre um leque previsto de canais básicos de utilização gratuita:

    “Art. 23. A operadora de TV a Cabo, na sua área de prestação do serviço, deverá tornar disponíveis canais para as seguintes destinações:

    I – canais básicos de utilização gratuita:

    (…)

    g) um canal comunitário aberto para utilização livre por entidades não governamentais e sem fins lucrativos;” (Grifamos.)

    Dois anos após a promulgação da Lei, veio a ser aprovado, pelo Decreto n.º 2.206, de 14 de abril de 1997, o Regulamento do Serviço de TV a Cabo, onde consta (art. 63) relativamente ao canal comunitário previsto na alínea “g” do inciso I do art. 23 da Lei n.º 8.977/95,  que sua programação:

    “… será constituída por horários de livre acesso da comunidade e por programação coordenada por entidades não governamentais e sem fins lucrativos, localizada na área de prestação do serviço.” (Grifamos.)

    Logo em seguida, foi editada a Norma n.º 13/96 – REV/97, da ANATEL, sobre o Serviço de TV a Cabo, que dispõe:

    “7.4 A utilização do canal comunitário deverá ter a sua programação estruturada em conformidade com uma grade que incluirá programação seriada e horários de livre acesso.

    7.4.1 Nas localidades da área de prestação do Serviço poderá ser instituída entidade representativa da comunidade que coordenará a estruturação desta programação.”  (Grifamos.)

    Não há, portanto, uma previsão legal quanto à operação de um sistema comunitário no âmbito das demais modalidades de radiodifusão sonora e de imagem, notadamente a chamada TV aberta, cujas características seriam de mais fácil acesso e utilização para os fins almejados por uma TV comunitária.

    II. 3. O Projeto de Lei n.º 2.701, de 1997.

    A fim de ordenar juridicamente a operação de transmissões em UHF e VHF, em baixa potência, das chamadas TVs Comunitárias, tramita na Câmara dos Deputados o PL n.º 2.701/97, de autoria do Deputado Fernando Ferro, que dispõe sobre o Serviço de Televisão Comunitária aberta.

    Diz o PL, em sua justificativa:

    “Desde janeiro de 1995 vigora a Lei 8.997 que regulamenta as televisões a Cabo no Brasil. Em seu artigo 23, a Lei dispõe que as operadoras de TV a Cabo, na sua área de prestação de serviço, estão obrigadas a tornar disponíveis canais para entidades não-governamentais sem fins lucrativos. A abertura deste canal, chamado de canal comunitário, foi uma conquista da sociedade, obtida aqui nesta casa, que foi sensibilizada por um movimento que os mais diversos segmentos sociais.

    Devemos reconhecer, porém, que a conquista não supre completamente a demanda da sociedade. Ela atende apenas um segmento social. O alcance da TV a Cabo é limitado em função do baixo poder aquisitivo da população. Não podemos relevar que no Brasil um terço da sua população ganha menos de um salário mínimo e que o país é campeão mundial em desigualdade social. Uma TV a Cabo comunitária atende apenas àquele grupo social de maior poder aquisitivo. Por outro lado a TV Comunitária que já existe em atividade no Brasil, operando em UHF ou VHF, isto é, dentro dos parâmetros de uma televisão comum, sem exigir gastos por parte do usuário, permite uma participação mais integral da comunidade. Devido à sua abrangência e pluralidade de público a Televisão Comunitária contribui, inclusive, para reduzir as desigualdades sociais.” (Grifamos.)

    Ocorre, no entanto, que o PL n.º 2.701/97, segue, em linhas gerais o mesmo modelo da Lei n.º 9.612/98 que instituiu o Serviço de Radiodifusão Sonora Comunitária.

    Assim, prevê o PL, em primeiro lugar, que a outorga seja concedida a Fundações ou a Associações Civis, tal como no caso da Lei das Rádios Comunitárias:

    “Art. 1.º. Para os efeitos desta lei, considera-se Serviço de Televisão Comunitária a modalidade de serviço especial que compreende a radiodifusão televisiva de sons e imagens, em freqüência VHF ou UHF, operando em baixa potência, a ser outorgada a Fundações ou Associações civis, sem fins lucrativos, com sede na localidade de prestação do serviço.”

    Também aqui, como passo preparatório à outorga, encontra-se prevista a exigência de apresentação, pela entidade, de documentos que venham a comprovar a situação regular sua e  de seus membros diretivos:

    “Art. 8.º. Para obtenção da autorização para execução do Serviço de Televisão Comunitária as entidades interessadas deverão solicitar petição ao Poder Concedente conforme o Plano Básico.

    Parágrafo 1.º.  As entidades deverão apresentar no prazo fixado para habilitação os seguintes documentos:

    I – estatuto da entidade, devidamente registrado;

    II – ata de constituição da entidade e eleição dos seus dirigentes, devidamente registrada;

    III – prova de que cada um dos diretores é brasileiro nato ou naturalizado há mais de dez anos;

    IV – comprovação da maioridade dos diretores;

    V – declaração assinada por cada diretor comprometendo-se ao fiel cumprimento das normas estabelecidas para o serviço.

    (…)” (Grifamos.)

    Desta forma, o referido PL da TV Comunitária também não contempla o caso específico de utilização do sistema por Comunidades Indígenas, o que dá margem a que estas acabem tendo que assumir o modelo associativo previsto no Código Civil, a fim de poderem ter acesso à outorga por parte do poder público.

    Prevê também o PL n.º 2.701/97, a exigência de criação de um Conselho Comunitário no âmbito da entidade que pretenda operar no sistema Comunitário de TV:

    “Art. 3.º. O Serviço de Televisão Comunitária será autorizado a pessoa jurídica que preveja em seus estatutos a existência de um Conselho Comunitário, composto por, no mínimo, cinco entidades pertencentes à comunidade da área abrangida pela emissora.

    Parágrafo Único. O Conselho Comunitário terá caráter consultivo e fiscalizará a emissora no tocante ao seu caráter comunitário, à sua administração e à sua programação.” (Grifamos.)

    Trazemos a este ponto as mesmas observações críticas já relacionadas (item I.4.”c”), relativamente à exigência de constituição do mencionado Conselho, por sua incompatibilidade com o princípio constitucional do respeito e proteção à organização social indígena.

    O Projeto também prevê (art. 8.º, parágrafo único, inc VI), a apresentação documental que expresse:

    “manifestações de apoio à iniciativa, formuladas por entidades associativas e comunitárias, legalmente constituídas e sediadas na área pretendida para a prestação do serviço.” (Grifamos.)

    Também neste ponto entendemos cabíveis comentários anteriormente formulados  (item I.4.”d”) de inadequação da exigência, posto que na área pretendida só seria possível a existência de entidades formadas por indígenas, o que via de regra foge aos padrões sociais e culturais das comunidades indígenas, sendo incabível a exigência de sua  constituição.


    III. Conclusão.

    O sistema de radiodifusão comunitária traz, para as Comunidades e Povos Indígenas no país, um enorme potencial de afirmação e projeção étnico-cultural e política. No entanto, a sua utilização e incremento estão hoje a depender da superação de algumas dificuldades, tanto de ordem econômica, quanto jurídico-legal e administrativa.

    O ordenamento normativo que hoje está em construção acerca do tema da radiodifusão comunitária, seja ela de sons ou de sons e imagens, necessita, com urgência, contemplar este segmento específico da população, com sua realidade diferenciada, com seus  valores e padrões próprios, e que se encontra sob um regime de proteção especial pelo Poder Público por força da norma constitucional, como também em razão de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

    É preciso, portanto, que a normatização e a administração da execução do sistema de radiodifusão comunitária venha a levar em consideração as especificidades indígenas, em termos do que dispõe a Constituição Federal de 1988: o respeito à sua autonomia e ao princípio da diversidade étnico-cultural.

    Para tanto é indispensável a participação das próprias Comunidades e Povos indígenas, bem como de suas organizações mais representativas, nos debates em torno de formulações normativas mais adequadas às suas necessidades, pressionando também para que venha o poder público, no âmbito de sua competência, a garantir o efetivo cumprimento do direito de acesso a estes veículos democráticos comunicação.

    Recife – PE, setembro de 2003.

    Rosane Lacerda
    Assessora Jurídica do Conselho Indigenista Missionário – Cimi

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    Bibliografia

    “Acadêmicos prestam atendimento a Terena em MS”. Por Ana Paula de Souza. Funai, Brasília – DF, Notícias. outubro de 2002. In: http://www.funai.gov.br/ultimas/noticias/2_semestre_2002/outubro/un1028.htm#001 (Capturado em 10/09/2003).

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    Ministério das Comunicações. Secretaria de Serviços de Comunicação Eletrônica. Departamento de Outorga de Serviços. Anexo 5 do Relatório Final do Grupo de Trabalho de Radiodifusão Comunitária. Rascunho de anteprojeto de Lei da Radiodifusão Comunitária apresentado como sugestão de subsídios a um eventual anteprojeto de Lei para modificar, reformar e ampliar a Lei da Radiodifusão Comunitária, n° 9.612, de 19.02.98. Brasília – DF, julho de 2003. In:  http://www.mc.gov.br/rc/grupo_trabalho/atas/anexos/reunioes/Anexo5.pdf (Capturado em 1.º/09/2003) 

    PERUZZO, Cicília M. Krohling. TV Comunitária no Brasil: Aspectos Históricos. In: http://www.eca.usp.br/associa/alaic/boletin8/cicilia.doc (Capturado em 1.º/09/2003). 

    “Rádio comunitária indígena demo

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