As eleições municipais, os partidos políticos e os povos indígenas
A partir de análise de votação sobre o marco temporal no Congresso, Cleber Buzatto avalia relação entre as eleições municipais e a postura dos partidos políticos em relação aos direitos indígenas
Estamos em plena semana eleitoral. No domingo, 6 de outubro, realiza-se o primeiro turno das eleições nos 5.565 municípios[1] do Brasil. É o período em que os candidatos às prefeituras e às câmaras de vereadores se acotovelam no interior das aldeias implorando o apoio das lideranças e o voto dos eleitores indígenas. Muitos indígenas também são candidatos e pedem o voto dos seus parentes. Nesse momento crucial, sempre surge a pergunta: o partido político do candidato importa?
Para os povos indígenas não resta qualquer sombra de dúvidas. Sim, o partido político importa.
Para chegar nesta resposta, o Cimi, por meio de sua assessoria de comunicação, levantou as informações acerca da posição dos partidos políticos na votação em que o Congresso Nacional analisou os vetos do presidente Lula relativos à Lei 14.701/2023. O critério considerado na análise foi o percentual de votos dados por cada partido político na decisão que derrubou o veto de Lula e reintroduziu o marco temporal no conteúdo da lei (§ 2º do art. 4º). Foram somados os votos dos deputados federais e dos senadores da República dos respectivos partidos.
Trata-se de um critério objetivo acerca de um tema sobre o qual não se tem dúvidas. O marco temporal é a arma mais letal que os inimigos dos povos indígenas têm usado nos ataques violentos que desferem permanentemente contra seus direitos. Portanto, por óbvio, os partidos políticos que votaram a favor do marco temporal são eles próprios e representam os interesses de atores sócio-político-econômico-religiosos contrários, antagônicos, adversários, inimigos dos povos indígenas. Por outro lado, apesar das contradições que possam existir, os partidos que votaram contra o marco temporal mostram-se aliados dos povos na instância do Poder Legislativo responsável pelas decisões acerca dos seus direitos fundamentais.
Neste cenário, foi possível identificar, com nitidez, a existência de três blocos de partidos políticos. Um destes blocos é formado por 11 partidos total ou majoritariamente contrários aos povos indígenas, um bloco de 7 partidos total ou majoritariamente favoráveis aos povos e um partido dividido ao meio.
A pesar de parecer repetitivo, fazemos a opção didática de marcar a posição de cada um dos partidos políticos, o quantitativo de votos e o respectivo percentual contrário ou favorável aos povos indígenas nessa votação emblemática.
Feitas estas notas introdutórias e às tendo como referências analíticas, vamos aos dados.
Os 11 partidos políticos contrários aos povos indígenas
Novo (30): teve 4 votos, sendo 100% contrário os povos indígenas
PL (22): teve 103 votos, sendo 98,1% contrário os povos indígenas
PSDB (45): teve 15 votos, sendo 93,3% contrário aos povos indígenas
União Brasil (44): teve 58 votos, sendo 93,1% contrário aos povos indígenas
PP (11): teve 52 votos, sendo 92,3% contrário aos povos indígenas
Republicanos (10): teve 38 votos, sendo 92,1% contrário aos povos indígenas
Podemos (20): teve 21 votos, sendo 90,5% contrário aos povos indígenas
PSD (55): teve 51 votos, sendo 80,4% contrário aos povos indígenas
Patriotas (51): teve 5 votos, sendo 80% contrário aos povos indígenas
MDB (15): teve 44 votos, sendo 73,3% contrário aos povos indígenas
Avante (70): teve 6 votos, sendo 66,7% contrário aos povos indígenas
Os 7 partidos políticos favoráveis aos povos indígenas
PT (13): teve 63 votos, sendo 100% favorável aos povos indígenas
PSOL (50): teve 12 votos, sendo 100% favorável aos povos indígenas
PcdoB (65): teve 7 votos, sendo 100% favorável aos povos indígenas
Rede (18): teve 2 votos, sendo 100% favorável aos povos indígenas
PSB (40): teve 17 votos, sendo 70,6% favorável aos povos indígenas
PDT (12): teve 18 votos, sendo 66,7% favorável aos povos indígenas
Cidadania (23): teve 3 votos, sendo 66,7 favorável aos povos indígenas
Solidariedade (77): teve 5 votos, sendo 60% favorável aos povos indígenas
Partido dividido ao meio
O PV (43), que teve 6 votos, foi o único partido que se dividiu ao meio e ficou 50% contrário e 50% favorável aos povos indígenas.
Sistemas eleitorais brasileiros: majoritário e proporcional
A esta altura do campeonato, você pode estar se perguntando: o que tem a ver a eleição municipal e a votação dos deputados federais e dos senadores da República a favor ou contra o marco temporal? Tem tudo a ver. Vejamos.
Em 2022, no artigo Os Povos Indígenas e a Luta Institucional Político Partidária Eleitoral no Brasil, publicado pelo Cimi e pelo Le Monde Diplomatique Brasil, analisamos o vínculo umbilical entre as diferentes estratégias de luta dos povos, demonstrando que a luta institucional político partidária eleitoral deve estar associada às demais lutas e mobilizações que os povos fazem na defesa de seus direitos. No mesmo ano, por meio do artigo Partidos Políticos, Direitos Indígenas e as Eleições no Brasil em 2022, informamos a posição dos partidos políticos em cinco votações emblemáticas envolvendo direitos indígenas realizadas pela Câmara dos Deputados entre os anos de 2012 e 2021.
Como podem observar ao comparar a quantidade de votos contrários aos direitos indígenas, houve uma piora recorrente e significativa nas últimas legislaturas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
A eleição municipal que se avizinha está diretamente conectada e prepara a eleição de 2026 para deputados federais, senadores e presidência da República, além de deputados estaduais e governadores.
Neste cenário, a compreensão dos sistemas eleitorais vigentes no Brasil é importante para desconstruir a ideia de que na hora do voto, especialmente no município, o que importa mesmo é a pessoa e não o partido. Isso porque, ao votar numa pessoa candidata de um partido antagônico aos seus direitos, você estará reforçando esse partido e, ainda, caso o seu candidato não seja eleito, você estará ajudando a eleger outro candidato deste partido ou federação que você não gostaria e que irá trabalhar contra seus direitos no exercício do mandato e ou em eleições futuras. É o chamado tiro no próprio pé.
De que forma isso acontece?
As eleições, no Brasil, são regidas por dois sistemas eleitorais, o majoritário e o proporcional. As eleições para prefeitos(as), governadores(as), senadores(as) e presidente da República obedecem o sistema majoritário, ou seja, ganha aquele candidato que fizer mais votos. Trata-se de um sistema mais simples e que admite as coligações partidárias.
Nas eleições para vereadores(as), deputados(as) estaduais e deputados(as) federais, por sua vez, é aplicado o sistema proporcional. Um dos objetivos principais do sistema proporcional é exatamente fortalecer os partidos políticos, que são um dos pilares da democracia representativa. Este sistema admite apenas a junção de partidos por meio da Federação Partidária, não sendo aceitas as coligações como ocorria há alguns anos. É um sistema mais complexo.
O voto num determinado candidato a vereador de um determinado partido político nunca é perdido, mesmo que o candidato em questão não seja eleito. O voto sempre é aproveitado
Quociente eleitoral e quociente partidário
O sistema proporcional se estrutura a partir de dois institutos fundantes, o quociente eleitoral e o quociente partidário. Para ser eleito(a) no sistema proporcional, o candidato a vereador(a) precisa atender dois critérios. O primeiro é que o candidato obtenha uma votação de no mínimo 10% do quociente eleitoral. Já o segundo critério é estar entre os mais votados no seu partido ou federação. A quantidade de vagas do partido ou federação na câmara de vereadores depende do cálculo do quociente partidário.
O quociente eleitoral é calculado dividindo-se a quantidade de votos válidos pelo número de vereadores do respectivo município. Assim, hipoteticamente, num município em que são registrados 10 mil votos válidos e houver 10 vagas de vereadores, o quociente eleitoral será de 1.000 (mil) votos. O primeiro requisito que o candidato ou candidata precisa cumprir para se eleger neste caso é receber no mínimo 100 votos, equivalentes a 10% do quociente eleitoral.
Já o quociente partidário determina o número de vagas a que cada partido político ou federação terá direito na câmara de vereadores. Para se chegar na quantidade de vagas de cada partido ou federação partidária na câmara de vereadores de um município, deve-se dividir a quantidade de votos válidos para este determinado partido ou federação pelo quociente eleitoral. Sendo assim, ainda hipoteticamente, considerando que o quociente eleitoral seja de 1.000 (mil) votos e que o partido ou federação partidária consiga 2.000 votos válidos, tem-se que o mesmo conquistou duas vagas na câmara de vereadores.
E como se chega, então, ao número de votos do partido ou federação partidária usado para formar o seu respectivo quociente partidário? Somando os chamados votos nominais (aqueles dados especificamente a cada um dos candidatos ou candidatas a vereador) e os chamados votos de legenda (aqueles dados diretamente ao partido político). Então, seguindo com nossas hipóteses, se o partido ou federação tiver 10 candidatos concorrendo no município e a soma dos votos destes 10 candidatos for 1.800 votos, e ainda este partido ou federação tiver outros 200 votos na legenda, temos que o número de votos válidos a serem considerados no cálculo para se chegar ao seu quociente partidário será de 2.000 votos.
Isso significa, na prática, que o voto num determinado candidato a vereador de um determinado partido político nunca é perdido, mesmo que o candidato em questão não seja eleito. O voto sempre é aproveitado. Seguindo a linha do nosso exemplo, considerando que o partido ou federação partidária conquistou duas vagas na Câmara de Vereadores (quociente partidário), dos 10 candidatos que concorreram na eleição, os dois candidatos mais votados no respectivo partido ou federação estarão eleitos para estas duas vagas. Portanto, os votos dados aos outros oito candidatos que não foram eleitos servirão na soma dos votos necessários para eleger os dois vereadores(as) deste partido ou federação.
Se você votar em candidatos a prefeitos e vereadores de partidos que atuam na contramão dos direitos indígenas na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, você estará ajudando a aumentar as bancadas destes partidos nestes espaços de poder daqui há dois anos. Então, mais fortes, estes partidos terão maiores possibilidades para desmontar esses direitos
Eleições municipais e direitos indígenas
Como fizemos questão de frisar no início deste texto, o Brasil possui atualmente 5.565 municípios. Assim, serão eleitos, neste mês de outubro, 5.565 prefeitos(as). Ainda, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), serão eleitos 58.114 vereadores(as)[2]. São, portanto, 63.679 agentes políticos e um número muito maior de pessoas a serem nomeadas para funções político-administrativas de confiança em torno destes mandatos que passarão a atuar e gerir seus respetivos municípios a partir de janeiro de 2025.
Por evidente, essa quantidade enorme de agentes estará envolvida e empenhada direta e organicamente na campanha eleitoral a ser realizada em 2026 em busca de eleger deputados federais, senadores e presidente da República, governadores e deputados estaduais de seus respectivos partidos políticos e/ou federações/coligações.
Quanto mais prefeitos(as) e vereadores eleitos, mais fortes estarão os partidos políticos e maiores serão suas possibilidades de eleger deputados federais e senadores de suas preferências. Nesse sentido, o seu voto no próximo domingo para prefeitos e vereadores servirá de energia aos partidos políticos que usarão esta energia no pleito eleitoral de 2026.
Portanto, se você votar em candidatos a prefeitos e vereadores de partidos que atuam na contramão dos direitos indígenas na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, você estará ajudando a aumentar as bancadas destes partidos nestes espaços de poder daqui há dois anos. Então, mais fortes, estes partidos terão maiores possibilidades para desmontar esses direitos.
Sendo assim, por mais contradições que possa haver, por coerência ou estratégia política, fica evidenciado que o mais adequado, para os povos originários e seus aliados, é votar em candidatos a prefeito(a) e vereador(a) de partidos políticos identificados acima como favoráveis aos direitos indígenas na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.
Você pode ainda estar se perguntando: e nos casos das disputas para prefeito(as) cujas coligações misturam partidos políticos caracterizados acima como antagônicos e aliados dos povos indígenas?
Cumpre observar ainda que, como dissemos acima, a eleição para prefeito(a) dá-se de acordo com o sistema majoritário, no qual as coligações partidárias são admitidas. Via de regra, especialmente em municípios de menor porte, os partidos políticos identificados como favoráveis aos povos na acabam se juntando em coligações que incluem também partidos identificados como contrários aos direitos indígenas.
Nestes casos, dentro do limite do pragmatismo necessário diante do modelo de representação política vigente em nosso país, o voto em candidatos a prefeito(a) de coligações com a participação dos partidos favoráveis é o mais adequado frente a candidaturas de coligações formadas somente por partidos identificados como inimigos.
Na votação que derrubou o veto do Presidente Lula e reintroduziu o marco temporal na Lei 14.701/2024, os inimigos dos povos indígenas conquistaram 321 votos na Câmara dos Deputados e 53 votos no Senado Federal, o que representou 70,4% do total. O seu voto no dia 6 de outubro de 2024, ajudará a piorar ou a melhorar esse cenário? A resposta a esta questão passa necessariamente pelo partido político dos candidatos(as) a prefeito(a) e vereador(a) que receberá seu voto no próximo domingo.
[1] Destes, em apenas 103 poderá haver segundo turno. Nos demais municípios, tudo se decidirá no próximo domingo mesmo.
[2] TSE: candidaturas por vaga – eleições de 2024. Disponível em: https://sig.tse.jus.br/ords/dwapr/r/seai/sig-candidaturas/vaga?session=203748876781149