Pastoral indigenista de Roraima realiza encontro e reafirma missão junto aos povos indígenas
O encontro reuniu missionários e missionárias que atuam nos territórios indígenas do estado. Dentre os assuntos debatidos, a absurda Lei 14.701 foi destacada e repelida.
“Em um tempo em que a tecnologia, o agronegócio, os grandes empreendimentos e a devastação do meio ambiente trazem consequências desastrosas para os povos indígenas, a Igreja quer continuar solidária e presente junto aos povos mais sofridos e perseguidos da Terra”. Essa é uma das perspectivas delineadas no Plano Pastoral 2022-2025 da Pastoral Indigenista da Diocese de Roraima, que realizou seu encontro nos dias 6 a 8 de agosto, na sede da Prelazia de Roraima, em Boa Vista.
O encontro aconteceu ao final das manifestações dos povos indígenas de Roraima, que se concentraram no centro de Boa Vista, capital do estado, para se posicionar contra a absurda lei 14.701/2023, aprovada pelo Congresso Nacional após derrubar o veto do presidente Lula e na contramão da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que em 2023 julgou a tese do marco temporal inconstitucional.
Além de renegar a supremacia da Corte em sua decisão de inconstitucionalidade da tese do marco temporal, o poder legislativo, numa evidente posição anti-indígena, coloca na Lei elaborada antes do julgamento do STF (setembro/2023) e durante o recesso dos parlamentares (28/12/2023), uma série de outras maldades jurídicas e estão instrumentalizando e insuflando a violência no campo (a exemplo dos ataques aos povos Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, e Avá Guarani no Paraná, nos últimos dias).
Na tentativa de “apaziguar” as diferenças entre a decisão da Corte e a promulgação da Lei pelo poder legislativo, em abril desse ano, o ministro Gilmar Mendes instaurou um “processo de conciliação” entre as partes interessadas nos territórios reivindicados pelos indígenas. Criou a Comissão de Conciliação com representantes do Congresso Nacional, órgãos do executivo federal, dos estados e municípios, representantes das ações que questionam a decisão do Supremo, e organizações indígenas.
A primeira audiência da comissão foi realizada no dia 5 de agosto. Nela, o ministro relator manteve a lei em vigor – mesmo inconstitucional –, não definiu o objeto da conciliação – quando deveria separar direitos definidos como cláusula pétrea e direitos passíveis de conciliação –, e ainda deixou evidente que, em caso de não haver conciliação, ao final das audiências os direitos indígenas serão definidos pelo voto.
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Tais controvérsias e absurdas manobras para aprovação da tese do marco temporal foram destaque no encontro da Pastoral Indigenista, que refletiu e repeliu a Lei 14.701, definindo-a como genocida.
Estudar, entender, divulgar
Diante dos encaminhamentos descabidos da comissão de conciliação, os povos indígenas e as organizações indigenistas parceiras se mantêm mobilizadas, buscando compreender as armadilhas que os anti-indígenas armam contra os direitos conquistados e divulgando a inconsistência, a inconstitucionalidade e as violações aos direitos indígenas.
No início de agosto, o Cimi emitiu Nota Técnica que foi “juntada aos processos que tratam da Lei 14.701/2023, envolvidos em procedimento de conciliação sobre demarcação de terras indígenas”, afirmando ao STF que “não cabe conciliação sobre o marco temporal” por se tratarem de direitos indisponíveis e fundamentais.
Concordando com essa afirmação, a Pastoral Indigenista de Roraima avaliou durante o encontro serem fundamentais os estudos sobre a Lei para que cada missionário e missionária compreenda as artimanhas dos parlamentares anti-indígenas para ludibriar a todos e fazer prevalecer suas prerrogativas de morte.
“Amparar os indígenas e contribuir com essas análises nas aldeias foi o encaminhamento dado pelos missionários e missionárias presentes no encontro”, explica Irmã Cleane Caxias.
“Como pastoral indigenista, é de suma importância que a gente trate do tema do marco temporal, primeiro porque reafirma a nossa opção em defesa da vida e preferencialmente a vida dos povos indígenas. É um compromisso assumido pela Diocese de Roraima. E segundo, nós estamos diariamente nos territórios, nas bases e nesse momento de grandes ameaças à vida dos povos precisamos levar as reflexões aos territórios. É preciso alertar a todos sobre os processos de morte que estão resumidos nesse contexto da Lei 14.701”, afirma a missionária.
Irmão Simão Bauce, missionário e membro da coordenação colegiada da Pastoral Indigenista de Roraima, também marca o compromisso com os povos indígenas. “A Pastoral Indigenista de Roraima está comprometida faz décadas com a vida e a defesa dos territórios dos povos indígenas. Acompanhar o debate da tese do marco temporal, que não é nova, pois vem se arrastando há anos, junto com o movimento indígena é uma das prioridades do nosso plano pastoral”, esclarece, pontuando os três eixos da missão: “Terra, território e sustentabilidade, em ação junto com o movimento indígena e na formação missionária”.
“O marco temporal foi derrubado já no ano passado no STF, mas voltou com muita força através da Lei 14.701, atualmente vigente. Essa lei está causando muito dano aos povos indígenas. Mortes, vítimas, desaparições como temos visto nesses dias as situações no Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Sul”, lamenta Simão.
O missionário também destaca que a tese é um retrocesso histórico e que “nos últimos tempos nos exigiu muito, por ser sobretudo um tema relativo a ataques contínuos às terras indígenas”, e reforça que como igreja, a Diocese de Roraima defende o direito dos povos indígenas a uma vida digna.
Irmã Virgilina Cunha lembrou da manifestação dos povos indígenas de Roraima e disse que estar junto com eles em todos os momentos fortalece e direciona a missão para continuar a caminhada.
“Acompanhamos a movimentação dos povos indígenas contra o marco temporal e a Lei 14.701, que estão aí para destruir os direitos indígenas conquistados. Todos os territórios e regiões estavam presentes, um grande número de lideranças se unindo na luta em defesa do território, dos seus direitos e para uma compreensão dos danos que essa lei pode causar na vida dos povos indígenas”, ressalta.
A liderança indígena Adizon Menandro Macuxi, vice-coordenador geral da Associação dos Povos Indígenas da Terra São Marcos (APITSM), esteve presente no encontro e afirmou que a importância de estar presente é, justamente, entender melhor para poder levar o debate às comunidades.
“Conseguimos entender melhor o que é essa lei, como estão as articulações em Brasília e essas questões políticas e jurídicas. Precisamos levar as informações precisas para as comunidades. Informar nossas lideranças e ver de que forma a gente vai estar se organizando para combater essa lei genocida, que não só afeta nossos direitos, mas também afeta diretamente a Constituição Federal de 88”, alerta.
A importância de estar presente é, justamente, entender melhor para poder levar o debate às comunidades.
Desafios que encorajam
A Pastoral Indigenista de Roraima se reúne sistematicamente para refletir e fortalecer os caminhos de sua missão. No encontro de agosto, além da insensata tese do marco temporal, foram debatidas a situação da saúde indígenas no Distrito Sanitário Especial Indígena – DSEI Leste de Roraima, pelo Doutor Paulo Daniel, o relatório “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil”, pela coordenação e assessoria do Cimi, e a realidade da Missão Catrimani, área do povo Yanomami que tem sofrido o flagelo da invasão garimpeira, abordada pelos religiosos que lá atuam.
Para Pe. Mattia Bezze, missionário e membro da coordenação colegiada da Pastoral Indigenista de Roraima, todas as situações ferem de morte os direitos e a vida indígenas e exige da missão cada vez mais força e coragem para enfrentá-las.
“Os esclarecimentos de como está atualmente o DSEI-Leste feitos pelo Doutor Daniel foram fundamentais para a compreensão do funcionamento, complexidade, riscos, desafios e alguns avanços da saúde indígena no estado. O tema trágico do marco temporal e os danos que esta lei e as estratégias das bancadas ruralistas, encabeçadas por alguns senadores de Roraima. O relatório do Cimi mostra que missionários e missionárias precisam ter os olhos [clínicos] para registrar e relatar as várias violências que sofrem. E ouvir a missão Catrimani foi dolorido, mas muito importante para conhecermos o que se passa por lá”, resumiu Matias.
Com todos esses desafios, o Plano Pastoral 2022-2025 da Pastoral Indigenista da Diocese de Roraima está ancorado, “como Igreja na Amazônia”, nas determinações do Encontro de Santarém, que aconteceu em 2022: “queremos continuar assumindo a opção preferencial pelos povos indígenas, com suas culturas, identidades e histórias”.
Da mesma forma, está encorajado pelo Papa Francisco em sua encíclica Laudato Si, quando fala sobre o Cuidado da Casa Comum: “É preciso assumir a perspectiva dos direitos dos povos e das culturas, dando assim provas de compreender que o desenvolvimento de um grupo social supõe um processo histórico no âmbito de um contexto cultural e requer constantemente o protagonismo dos atores sociais locais a partir da sua própria cultura” (LS 144), enfatiza o Plano.