Nota de pesar: Jurusi foi ao encontro de Nahi
Com profundo pesar, o Cimi lamenta o falecimento de de Elizabeth Aracy Rondon Amarante, a querida Beth Myky, que dedicou sua vida à causa dos povos indígenas
É com imenso pesar que o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) informa o falecimento de Elizabeth Aracy Rondon Amarante, nossa querida Beth Myky. Beth faleceu neste domingo, 3 de março de 2024, aos 90 anos de idade, e deixa para nós o legado imensurável de uma vida inteira dedicada à causa indígena.
Beth pertencia à Congregação Sagrado Coração de Jesus e era neta do marechal Cândido Rondon, cujo exemplo seguiu ao escolher dedicar sua vida à causa dos povos indígenas. O fato de que ficou mais conhecida pelo nome do povo com quem escolheu conviver, os Myky, é um pequeno indicativo do tamanho do amor e do carinho que nutriu por este povo – e do grau de compromisso que assumiu com a causa dos povos originários.
Nascida no Rio de Janeiro (RJ), Beth foi viver com os Myky, em Mato Grosso, no ano de 1979 – quando o Cimi, do qual mais tarde seria eleita vice-presidente, recém iniciava sua caminhada. A história do Cimi se confunde e se alimenta da trajetória da própria Beth. Ela foi uma das grandes referências para todos e todas os missionários e missionárias que, em todo o Brasil, davam também seus passos e firmavam sua aliança com os povos originários.
Beth foi uma das pessoas que encarnaram, ao lado de Vicente Cañas e Thomaz Lisboa, a chamada “Missão Calada”: uma proposta de mudança radical na relação entre Igreja e povos indígenas, na qual missionários e missionárias não iam às aldeias para ensinar, mas para aprender; não para serem ouvidos, mas para ouvirem; não para converterem, mas para serem convertidos.
Foi com os Myky, na aldeia onde viveu por quase cinco décadas, que Beth aprendeu a fiar algodão, a trançar a palha e a viver como eles. Por sua dedicação ao povo com quem escolheu viver, foi também por ele escolhida e acolhida como parte integrante.
Com sua convivência junto aos Myky, contribuiu para que não apenas fortalecessem a luta pela conquista de sua terra, mas para que pudessem conhecer seus direitos e se apropriar das ferramentas disponíveis no mundo não-indígena.
Esforçou-se para aprender não só a língua dos Myky, mas para apreender o mundo a partir de sua perspectiva. Foi olhando a partir da aldeia, com olhos, ouvidos e espírito apurados pela convivência com o povo, que buscou contribuir com sua educação: uma educação libertadora, baseada no diálogo e no respeito à diferença.
Depois de quase cinquenta anos de vida Myky, orgulhava-se de ter ajudado a formar professores e lideranças preparadas para defender o próprio povo e perpetuar sua cultura, suas tradições e seu modo de vida.
Beth atuou para fortalecer a autonomia e a resistência dos Myky – que, à época do contato, na década de 1970, eram apenas 23 pessoas. Fez isso também por meio do registro de depoimentos e das falas indígenas em diversos livros e publicações e, inclusive, da elaboração de um dicionário português-Myky, até hoje utilizado por pesquisadores e professores do próprio povo. Hoje, o povo Myky cresceu e segue em luta pela conquista de sua terra, consciente e com pleno domínio de seus direitos.
A radicalidade e a coerência de Beth Myky ajudaram a moldar o que viria a ser o Cimi – e seguirá, para sempre, como uma referência incontornável do que deve ser a missão junto aos povos indígenas.
Nas trilhas, das estradas e da missão, caminhos marcados por tantas curvas. Algumas tão intensas que não se mirava à frente: inculturação, encarnação?
Algumas certezas, muitas dúvidas, mas o passo firme e o coração aberto ao que viria, veio!
Nas estradas que separaram a Brasnorte rural-ista do aconchego, as curvas que, singrando as matas, levam a Japuíra, passando pelo “lugar do contato”, onde Jaúka um dia encontrou os Myky; a busca pelo reencontro cotidiano segue.
Nestes encontros, de uma Amarante Rondon que se fez Beth Myky entre eles/elas, deixando o conforto e assumindo encarnada a vida dos povos; novas estradas agora também escritas à mão.
Estas mãos, pesadas pelo manejo do machado, da enxada e do facão, tornaram a tinta e o grafite desenhos moldados em letras. Nestas, novas estradas “encardenadas” foram abertas para registrar o saber feito língua-cultura-comunicação. Outra história foi escrita!
Vá, querida Jurusi, atravesse este rio Papagaio que separa a vida da luta dos frutos dela. Lá, na outra margem, te esperam, com um beijo e um beiju, quentinho: Iasi, Jaúka, Kiwxi, Meliá, Veva, Pedro, Edna, Suzana e outras tantas e outros tantos que fizeram da vida a convivência.
Siga em paz para sua nova Grande Aldeia.
Aqui seguimos nós, até o Reencontro, pisando nas marcas impressas por seus passos.
Brasília (DF) e Cuiabá (MT), 4 de março de 2023
Conselho Indigenista Missionário – Cimi