“Massacre do Abacaxis”: Comunidade denuncia monitoramento por meio de drones em território indígena
Relato ocorreu no terceiro dia do ciclo de debates realizado na UFAM em mobilização dos três anos do crime
Passados três anos do caso que ficou conhecido como Massacre do Rio Abacaxis, as violações de direitos e invasões no território continuam a acontecer, desta vez, com a ajuda da tecnologia: representantes dos povos indígenas da região e vítimas do caso denunciaram o sobrevoo constante de drones na região, dentro do território indígena e sem autorização ou conhecimento da comunidade.
O caso foi relatado ao durante o terceiro dia do ciclo de debates, na manhã desta sexta-feira (4), no miniauditório da Faculdade de Informação e Comunicação (FIC), da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), na presença do representante da Polícia Federal, delegado Jonathas Simas.
A coordenadora geral de Prevenção de Conflitos no Campo e na Cidade do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Daniela Reis; e o membro do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), Marcelo Chalréo, também participaram do evento, de forma remota.
“Apareceram alguns drones e não sabemos a quem pertence ou porquê estão ali, quando olhamos para cima, já pensamos que vão nos matar, que vamos morrer”
“Apareceram alguns drones e não sabemos a quem pertence ou porquê estão ali, se é do governo ou da PF [Policia Federal]. As crianças, a gente, não têm mais liberdade de cair na água. Quando olhamos para cima, já pensamos que vão nos matar, que vamos morrer”, denunciou um representante indígena do povo Munduruku.
“O que nos parece é que a Justiça está protegendo o Estado e não os indígenas. Não era para ser ao contrário. Estão monitorando meu povo em que sentido: de ajudar ou massacrar?”, completou.
O delegado da Policia Federal afirmou que desconhece qualquer ação policial que envolva o monitoramento por meio de drones por parte da instituição e sugeriu a formalização da denúncia, uma vez que não é o responsável pelo caso. Em junho, ele coordenou a operação de apreensão de material de circuito de TV em um hotel em Nova Olinda do Norte (AM), onde teriam ocorrido sessões de tortura. A operação foi um complemento da investigação principal.
“Que nos parece é que a Justiça está protegendo o Estado e não os indígenas, estão monitorando em que sentido: de ajudar ou massacrar?”
Pela primeira vez, a PF admitiu, publicamente, que o caso envolve a investigação de 130 policiais, o que torna o inquérito complexo e evidencia a dimensão do envolvimento da estrutura de segurança pública. O trabalho inclui a tentativa de isolar a ação de cada um a fim de responsabilizar de acordo com os atos cometidos. De acordo com o delegado Jonathas Simas, dezenas deverão ser indiciados. Simas afirmou também que o inquérito está em fase de finalização e que a conclusão deverá ocorrer ainda este ano, mas por um novo delegado que será designado para o caso, segundo repasse de informações da Superintendência da PF e as trocas têm motivos plausíveis.
“Nos preocupa essas alterações de delegado. Claro que a PF tem sua autonomia. Entendo que cabe o diálogo, sempre que necessário, para que possamos entender as demandas para uma atuação eficaz. Coloco-me à disposição do delegado para fazer um diálogo somente sobre esse caso para ver em que podemos atender as necessidades e complexidades do caso”, afirmou a representante do Ministério da Justiça, Daniela Reis.
“Nos preocupa essas alterações de delegado”
O prazo dado para conclusão do inquérito foi rebatido por representantes da UFAM que acompanham o caso no âmbito do Coletivo pelos Povos do Abacaxis: como seria possível finalizar os trabalhos de um caso complexo, envolvendo a investigação de 130 policiais, em um curto prazo e diante da sétima troca de delegado. O questionamento do porquê de um caso desta dimensão não ter recebido reforços, em vez de trocas de delegados titulares não foi respondido. Sobre possíveis ingerências políticas na condução do trabalho da PF, Simas afirmou não ter visto ou presenciado quaisquer suspeitas a esse respeito.
Outro fato que chamou a atenção dos presentes foi a menção do delegado de que o caso chegou até ao conhecimento da PF por meio do pedido de apoio feito pelo então secretário executivo do Fundo de Promoção Social estadual, Saulo Moysés Rezende Costa, por ter sido baleado.
“Porquê de um caso desta dimensão não ter recebido reforços, em vez de trocas de delegados titulares não foi respondido”
Não há respostas
A comprovação de que o ex-secretário foi ferido foi uma das incongruências apontadas pelos povos Maraguá e Munduruku que ficaram sem respostas. Até o momento não se tem conhecimento, por exemplo, a respeito da existência de um laudo ou exame de corpo de delito sobre o disparo que o ex-secretário Saulo Moysés Rezende Costa alega ter sofrido. Além disso, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) informou não ter identificado, também, nenhum documento que comprovasse a autorização dada a Moysés para a pesca esportiva no local. Os indígenas alegam que a área está sinalizada e que, inclusive a PM, desrespeitou esse limite ao adentrar o território para fazer a operação.
“A terra indígena é demarcada. No momento em que a PM [Polícia Militar] entrou, tinha uma placa. Me perguntou se essa polícia está preparada, fortalecida para defender o cidadão porque dizer que errou o trajeto que terminou com seis tiros, três na cabeça de cada um dos nossos dois parentes mortos, não convence. Vemos que a justiça é muito lenta para os pobres. O caso Bruno e Dom [Vale do Javari] tinha um estrangeiro, que não era cidadão brasileiro e parece que é mais forte do que o nosso caso aqui”, afirmou o representante Munduruku que foi aplaudido pelos presentes.
“A terra indígena é demarcada, no momento em que a Polícia Militar entrou, tinha uma placa dizendo que é terra indígena”
O fato de ter um grupamento de policiais que foram mandados para área, sem identificação e que culminou com a morte de dois deles, antes da operação autorizada pelo Governo do Amazonas, demonstra, segundo os indígenas presentes, o descompromisso também com a vida dos policiais. “Mandaram os policiais para morrer. Se tivessem chegado com farda para fazer um trabalho legal, não teria acontecido isso”, ponderou.
Entre as perguntas feitas pelos presentes esteve a indagação sobre o uso das forças de Segurança Pública do Governo do Estado do Amazonas para atender fins político pessoais.
“Se uma pessoa se sente ameaçada ao ponto de não conseguir viver direito, que limite seu direito de ir e vir, ela pode relatar os fatos às autoridades competentes e, por ser um crime com potencial relativamente baixo, ocorrerão investigações, se for seguir o rito da Lei. Desconheço um mecanismo legal que permita disponibilizar dez policiais a uma pessoa nessas condições. A Força Estatal é para a segurança pública, privada não, mas nada impede de haver um pedido judicial para que isso aconteça”, comentou o delegado Jonathas Simas.
A presença da Força Nacional no município de Nova Olinda do Norte também foi contestada porque, segundo os representantes da comunidade, a necessidade não está na sede do município, mas ao longo dos rios Abacaxis e Mari-Mari.
“Se uma pessoa se sente ameaçada ao ponto de não conseguir viver direito, que limite seu direito de ir e vir, ela pode relatar os fatos às autoridades”
O CNDH propôs o retorno à área para verificar o que faltou ser cumprido das recomendações feitas após a primeira visita, logo no início do caso.
“Trata-se de área conflitiva que envolve interesses vários como a produção e comercialização de substâncias ilegais, caça e pesca, extração de madeira, garimpo. O CNDH apontou a necessidade de uma ação articulada entre prefeitura, governo estadual e federal para tratar dos problemas. É preciso uma intervenção articulada e profunda para preencher as diversas lacunas identificadas nas demais áreas como saúde, educação, economia, saneamento, por exemplo”, afirmou o conselheiro Marcelo Chalréo.
Foram convidados o procurador do 9ª Ofício, Rafael Silva, que informou não poder participar por questões de sigilo e por não estar mais à frente do caso. O Ministério Público Federal (MPF) ainda não informou quem assumirá em seu lugar.
A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) também não respondeu ao convite para participação no evento.