Voltar para continuar: processo de retomada indígena no Maranhão
No Maranhão, povos indígenas em retomada lutam para que o Estado reconheça seus direitos e garanta a demarcação de seus territórios
Dar continuidade a uma história que foi interrompida é um dos significados do verbo retomar, mas para os povos indígenas este conceito trata da própria vida. “Retomada é pegar de volta aquilo que tomaram de nós, retomando o que quiseram apagar da gente, os nossos valores, os nossos saberes, a nossa cultura e o nosso jeito de ser”, destaca Rosa Tremembé.
No Maranhão, os povos Akroá-Gamella, Tremembé de Raposa, Tremembé de Engenho, Anapuru Muypurá, Kari’u Kariri e Krenyê estão em busca de reconhecimento por parte do Estado. “Os Krenyê fizeram o primeiro processo de retomada e hoje estão já em seu território. A luta desses povos tem iluminado outros povos a romperem esse silenciamento”, aponta Gilderlan Rodrigues, da coordenação colegiada do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Maranhão.
A retomada é um processo de luta dos povos indígenas por suas terras, cuja ocupação era originária. Para muitos povos, esse processo está relacionado à reafirmação de identidades étnicas que foram negadas devido à pressão e à violência do Estado e da colonização. Neste movimento, são muitas as dificuldades enfrentadas por povos em retomada, como o descaso do poder público e o preconceito da sociedade.
“Somos um povo que não temos um território demarcado e por isso nós somos discriminados, invisibilizados e negados pelos nossos direitos. A gente tem que se levantar e buscar os nossos direitos”, acrescenta Rosa Tremembé.
“Esse é um processo de rompimento desse apagamento que o Estado quis impor a eles”
“São povos que estavam silenciados a muitos anos e agora eles puderam se autodeclarar, dizendo quem são e qual a sua identidade. Então, esse é um processo de rompimento desse apagamento que o Estado quis impor a eles”, enfatiza Gilderlan Rodrigues.
Durante a pandemia, os povos indígenas em retomadas sentiram-se ainda mais apagados de seus direitos quando foram excluídos da prioridade no Plano Nacional de Vacinação, por não terem suas terras demarcadas. Com muita luta e a união entre os parentes, eles conseguiram reaver este direito.
“Em 2020, decidimos lutar pela primeira vez para acessar um direito enquanto comunidade indígena: o direito à vacinação prioritária. Nessa luta, a parceria com os povos Akroá Gamella, Tremembé, Anapuru Muypurá e também a aliança com o Cimi foram decisivas para conquistarmos esse direito”, relata Lidiane Kari’u Kariri.
O processo de retomada vem ocorrendo em diversas partes do Brasil. De acordo com Rosa Tremembé, esta é uma longa jornada iniciada a partir da promulgação da Constituição Cidadã, em 1988. “A partir daí nós buscamos a garantia desses direitos, nos apresentando diante da sociedade, para que nós pudéssemos, enfim, ser visibilizados”, ressalta Rosa Tremembé.
Os indígenas em retomada, bem como indígenas com territórios já demarcados, vêm enfrentando diversas batalhas para garantir o seu espaço de existência. Projetos de Lei (PLs) como o 191/2020, que permite a mineração e a construção de hidrelétricas em terras indígenas, e o PL 490/2007, que limita as demarcações de terras, são iniciativas que acirram ataques contra os direitos dos povos indígenas.
A articulação entre os povos vem somando forças às lutas enfrentadas pelos indígenas, como por exemplo a Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais no Maranhão, que fortalece a organização dos povos na busca por seus direitos.
“Isso é importante, porque estamos nos aproximando de outros povos, e favorece o diálogo e a reflexão sobre as questões de direitos de cada um dos nossos povos que são apagados. Nós estamos todos em resistência buscando os direitos”, evidencia Rosa Tremembé.
Nesse sentido, Lidiane Kari’u Kariri explica que ações realizadas pelo Cimi Regional Maranhão também colaboram para o processo de retomada. “O Cimi continua possibilitando encontros da juventude indígena do Maranhão, o que tem se mostrado potente para fortalecer a retomada e formar jovens lideranças”, complementa.
“Avaliamos que essa caminhada tem sido importante para o Cimi por também está contribuindo com estes povos, com sua luta, para que eles possam ter seus territórios, acesso às políticas públicas de qualidade, possam ter a sua identidade retomada, tendo visibilidade para dizer ao estado que não estão extintos”, finaliza Rodrigues.
Marco temporal
O processo de repercussão geral sobre demarcação de terras indígenas que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) vai trazer uma definição da Corte sobre um dos agravantes para a luta dos povos em retomada pelo seu território: a tese ruralista do “marco temporal”.
Esta tese, que é inconstitucional, busca limitar o direito à demarcação das terras indígenas, por vincular esta garantia à presença física das comunidades e povos no território reivindicado até 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a nova Constituição brasileira.
De acordo com Lucimar Carvalho, Assessoria Jurídica do Cimi Regional Maranhão, essa tese jurídica é defendida por interesses contrários aos dos indígenas. Empresários, políticos, latifundiários/ruralistas querem continuar a avançar sobre os territórios dos povos indígenas. A tese foi retirada por esses setores do contexto do julgamento do caso Raposa Serra do Sol, em que o acórdão do STF especifica 19 condicionantes para o caso específico da demarcação da Raposa Serra do Sol.
“Além disso, a tese desconsidera todo o histórico de violência a que os indígenas foram submetidos desde o início da invasão europeia, sendo expulsos dos seus territórios de forma violenta, massacrados e com seus territórios usurpados”, acrescenta Lucimar Carvalho.
A advogada do Cimi Regional Maranhão destaca que os povos que estão em retomada de seus direitos e de seus territórios ancestrais deparam-se com vários desafios. Além do próprio racismo institucional e estrutural que quer determinar quem é ou não indígena, a demarcação dos seus territórios se torna ainda mais penoso.
“Em várias realidades, seus territórios foram quase que completamente invadidos, e os povos foram expulsos de seus locais, desentranhados de suas raízes, invisibilizados em suas identidades, negados em suas ancestralidades e suas espiritualidades e várias vezes renomeados para ‘caboclos’, dentre outras categorias”, explica Lucimar Carvalho.
O julgamento do processo de repercussão geral será retomado em 23 de junho, após ter sido suspenso pelo pedido de vistas do ministro Alexandre de Moraes.
Com um voto a favor do relator, o ministro Edson Fachin, e um voto contrário do ministro Kássio Nunes Marques, a continuidade do julgamento e a formação de uma maioria a favor do direito originário dos povos indígenas será fundamental para consolidar o respeito e a memória de milhões de indígenas que pereceram nesse longo processo de colonização, assim como é firmar o que prega a Constituição federal que reconhece o direito desses povos à terra.